segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XVIII — Recrudescência do direito divino

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XVII - Recrudescência do direito divino

     Terminando a ditadura, desmoronou-se um sistema completo da Europa.
     O império ocultou-se numa sombra que se assemelhou à do mundo romano agonizante. Tornou a ver-se o abismo como no tempo dos bárbaros Somente a barbárie de 1815, a que é necessário nomear pelo seu nome próprio, contrarrevolução, tinha pouco fôlego, cansou depressa e parou repentinamente. O império foi, confessemo-lo, chorado por olhos heroicos. Se a glória reside na espada feita ceptro, o império fora a própria glória. Derramara sobre a terra toda a luz que a tirania pode dar, luz sombria.
     Digamos mais; luz escura. Comparada com a do dia, é trevas. Esta desaparição da noite produziu o efeito de um eclipse. 
     Luís XVIII voltou a Paris. As danças de 8 de Julho apagaram os entusiasmos de 20 de Março. O corso tornou-se a antítese do bearnês. Nas Tulherias flutuou a bandeira branca. O desterro entronizou-se. A mesa de abeto de Hartwel tomou lugar diante da poltrona ornada de flores de lis de Luís XVIII Falou-se de Bouvines e de Fontenoy, como casos da véspera, porque Austerlitz envelhecera O altar e o trono fraternizaram majestosamente. Uma das formas mais incontestáveis da salvação da sociedade no século XIX, estabeleceu-se na França e no continente A Europa adoptou o laço branco.
     Trestaillon tornou-se célebre. A divisa non pluribus impar reapareceu nos raios da pedra que figuravam um sol na fachada do quartel do cais do Orsay, Onde tinha havido uma guarda imperial passou a haver uma casa vermelha. O arco do Carrousel, todo carregado de vitórias mal conduzidas, não se reconheceu no meio de tantas novidades: e um pouco envergonhado, talvez, de Marengo e de Arcole, tirou-se do aperto com a estátua do duque de Angoulême. O cemitério da Madalena, temível vala comum de 93, cobriu-se de mármore e de jaspe, porque se encontravam nele os ossos de Luís XVI e de Maria Antonieta. No fosso de Vincennes surgiu da terra um cipreste sepulcral, recordando que o duque de Enghien fora morto no mesmo dia em que Napoleão fora coroado. Pio VII, que fizera esta sagração tão próxima daquela morte, abençoou tranquilamente a queda como abençoara a elevação. Houve em Schoenbrunn uma pequena sombra, de quatro anos de idade, a quem se tornou sedicioso chamar rei de Roma. E todas estas coisas se fizeram, os reis voltaram aos seus tronos e o senhor da Europa foi metido numa gaiola, o antigo regime tornou-se novo, e toda a sombra e toda a luz da terra mudou de lugar, porque na tarde de um dia de Verão houve um pastor que, num bosque, disse a um prussiano: «Vá por aqui e não por ali»
     Aquele 1815 foi uma espécie de tristonho Abril. As velhas realidades mórbidas e venenosas revestiram-se de aparências novas A mentira desposou 1789 e o direito divino mascarou-se com uma Carta, as ficções tornaram-se constitucionais, os preconceitos, as superstições e as traições, com o art.º 14.º no coração, envernizaram-se de liberalismo. Mudança de pele das serpentes. 
     O homem fora ao mesmo tempo engrandecido e deprimido por Napoleão. O ideal, sob o reinado da matéria esplêndida, recebeu o nome extraordinário de ideologia. Grave imprudência dum grande homem, escarnecer do futuro Todavia, os povos, esse alimento da artilharia tão apaixonado do artilheiro, procuravam-no com os olhos. Onde estará ele? O que fazia?

— Napoleão morreu —, dizia um transeunte a um inválido de Marengo e Waterloo. 
— Morto, ele! — exclamou o soldado. — Conhecia-o bem! 

     As imaginações edificavam o homem esmagado. 
     O futuro da Europa, depois de Waterloo, foi tenebroso; sentiu-se nela por muito tempo, um enorme vácuo com o desaparecimento de Napoleão. 
     Os reis colocaram-se neste vácuo. A velha Europa aproveitou-se disso para se reformar, e operou-se nela uma Santa Aliança. Bela Aliança, dissera antecipadamente o campo fatal de Waterloo.
     Em presença e na frente desta antiga Europa recomposta, esboçaram-se os contornos duma França nova. O futuro, escarnecido pelo imperador, teve o seu momento de entrada, e trazia na fronte a estrela da Liberdade. Os olhos ardentes das gerações novas voltaram-se para ele. Coisa singular: apaixonaram-se ao mesmo tempo pela futura Liberdade e pelo passado Napoleão. A derrota engrandecera o vencido, Bonaparte por terra pareceu mais alto do que Napoleão de pé.
     Os que tinham triunfado, sentiram medo. A Inglaterra mandou-o guardar por Hudson Lowe, e a França mandou-o espreitar por Montchenu. Os seus braços cruzados tornaram-se a inquietação dos tronos. Alexandre denominava-o sua insônia. Este susto provinha da quantidade de revolução que ele continha em si; e é isto que explica e desculpa o liberalismo bonapartista. Aquele fantasma fazia tremer o velho mundo.
     Os reis não puderam reinar à sua vontade com o rochedo de Santa Helena no horizonte. 
     Enquanto Napoleão agonizava em Longwood, apodreceram tranquilamente os sessenta mil homens caídos no campo de Waterloo, e espalhou-se pelo mundo o que quer que era da paz que eles gozavam. O congresso de Viena assegurou os tratados dessa paz em 1815 e a Europa chamou a isso Restauração. 
     Eis o que é Waterloo. 
     Mas, que importa isto ao infinito? Toda essa tempestade, a guerra, a paz, toda essa grande sombra, não perturbou um momento a luz do olho imenso, em cuja presença o pulgão saltando de um a outro raminho de ervas iguala a águia voando de um a outro campanário nas torres de Nossa Senhora.

continua na página 272...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XVIII — Recrudescência do direito divino
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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