sábado, 1 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (9b) - Estava em uma terrível excitação

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

9.

continuando

     Estava em uma terrível excitação. Atirou a cabeça para trás. ameaçadoramente e, com os olhos em chama, e um ar ativo e feroz desafio, encarou um por um, já não podendo distinguir amigos de inimigos. Atingira aquele auge de ódio longamente contido mas por fim irreprimível em que a avidez pelo conflito imediato e pelo ataque súbito cria, em dada pessoa, o impulso que tudo comanda. Aqueles que conheciam a Sra. Epantchiná logo sentiram que lhe sobreviera algo fora do comum. Iván Fiódorovitch disse no dia seguinte ao Príncipe Chtch...: “Ela tem desses ataques de vez em quando, mas acessos como o de ontem jamais lhe vêm a não ser de três em três anos. No máximo!” - acrescentou enfaticamente. - Chega, Iván Fiódorovitch. Deixa-me sozinha - gritou Lizavéta Prokófievna. - Tira esse braço daí, não me ofereças o braço. Ou achas que me vais conduzir para fora? És o marido, o chefe da família, mas só me pegarias pela orelha e me levarias lá para fora se eu fosse néscia demais para te obedecer e seguir. Devias mais é pensar em tuas filhas, isso sim! Agora já sabemos o caminho sem ti. Tive vergonha suficiente para me conter um ano. Espera, não vês que tenho de agradecer ao príncipe? Muito obrigada, príncipe, pelo divertimento. Permaneci de propósito para ouvir o que esses rapazes diziam. E é uma desgraça! Uma desgraça! Que caos, que infâmia! Pior do que um sonho. Há muita gente como eles? É? Fique quieta, Agláia! Deixe-me, Aleksándra, vocês não têm nada com isto! Saia da minha frente, Evguénii Pávlovitch, não me incomode!... Então, meu caro, você lhe está pedindo desculpas? - dirigia-se agora a Míchkin. - “A culpa foi minha”, diz ele, “de ousar vos oferecer uma fortuna...” E, escute aqui, de que é que você se está rindo aí, seu fanfarrão? - apontava para o sobrinho de Liébediev. - “Nós recusamos a fortuna”, diz o outro. “Nós exigimos, não pedimos!” Como se não soubessem que amanhã este idiota se porá de rastros para lhes oferecer sua amizade e seu dinheiro, outra vez. É, ou não é, você aí?

- É, sim, senhora! - disse o príncipe, com voz tênue e humilde.
- Ouviram? Vocês já contavam com isso! - e voltada para Doktorénko: - É o mesmo que o dinheiro já estar no bolso de vocês! E aí está por que vocês tentam impressionar-nos... Não, meu rico tipo, não me venha com manhas, eu o conheço... estou vendo o seu jogo... 
- Lizavéta Prokófievna! - exclamou o príncipe.
- Vamos embora, Lizavéta Prokófievna, já é tempo de nos irmos, e levemos o príncipe conosco - disse o Príncipe Chtch... procurando sorrir, para aparentar calma.
 
     As moças estavam de pé, ao lado, meio espantadas; o General Epantchín permanecia boquiaberto; os demais presentes, admirados. Os que se achavam mais para o lado de fora cochichavam entre si, sorrindo às escondidas. A cara de Liébediev estava estarrecida, em uma expressão de perfeito êxtase.

- Caos e infâmia podem ser encontrados em qualquer lugar, senhora! - disse o sobrinho de Liébediev, nem com isso perdendo o embaraço em que estava. 
- Ruim, assim, não! Ruim assim, como entre os senhores, não, caro senhor - retorquiu Lizavéta Prokófievna em um ar de vingança histérica. - Larguem-me! - gritava para os que tentavam persuadi-la - Ora, pois não disse você ainda agora, Evguénii Pávlovitch, que até um advogado, no tribunal, declarara ser muito natural que um pobre sangre seis pessoas? Isso significa o fim de tudo; nunca ouvi tamanha coisa. Está tudo mais do que claro agora! E este sujeito gago, quem não vê que mataria qualquer um? (e apontava para Burdóvskii, que a ficou fitando atarantadamente). Estou pronta a apostar que ele matará alguém! Talvez, de fato, não aceite o seu dinheiro, talvez não queira os seus dez mil rublos, talvez não o aceite por causa da consciência; mas irá à noite matar você e tirar o dinheiro do cofre; e fará isso por causa da consciência. Então não será desonestidade, para ele. Será apenas uma erupção de “nobre indignação”, será um “protesto”, ou Deus sabe o quê... Arre! Tudo está de pernas para o ar, tudo está de cambalhotas! Uma rapariga cresce em casa e repentinamente, no meio da rua, se mete em um fiacre, dizendo: “Mamãezinha, no outro dia me casei com um tal Kárlitch, ou Ivánitch, adeusinho!” E está direito, um comportamento desta ordem, respondam?! É natural, demonstra respeito? A questão “mulher”? Este fedelho - apontou para Kólia - ainda no outro dia estava argumentando sobre o significado da questão “mulher”. Mesmo que a mãe seja maluca, qualquer de vocês tem de se comportar como um ser humano, perante ela. Por que chegar a casa com a cabeça no ar? “Abra caminho, não vê que estou entrando? Restitua-nos os nossos direitos e não dê um pio sequer! Preste-nos toda espécie de respeito, como até aqui nunca nos foi prestado e nós a trataremos pior do que ao mais ínfimo lacaio”. Exigem justiça, repisam em seus direitos, e ainda o caluniam como pérfidos no artigo de um jornaleco. “Exigimos, não pedimos e não lhe dispensaremos gratidão porque o senhor está agindo em satisfação à própria consciência!” Isso é raciocínio de gente? Pois bem, se vocês lhe não demonstram gratidão, o príncipe lhes pode responder que também não a dispensa a Pavlíchtchev, porque Pavlíchtchev também agiu direito em satisfação à sua consciência. E vocês bem sabem que estão contando justamente com a gratidão dele por Pavlíchtchev! Ele não lhes pediu dinheiro emprestado, não lhes deve nada; com que é então que vocês estão contando, senão com a sua gratidão? E como é então que vocês repudiam isso? Lunáticos Encaram a sociedade como selvagem e inumana, porque ela expõe a donzela seduzida à vergonha; mas se vocês cuidam que a sociedade é inumana, devem vocês também pensar que a pobre moça sofre pela censura da sociedade! E, se assim é, por que a expõem vocês à sociedade, através dos jornais, e acham que ela não deva sofrer? Lunáticos! Ordinários! Não acreditam em Deus, não creem em Cristo! Ora, vocês, estão tão comidos pelo orgulho e pela vaidade que acabarão se entredevorando, eis o que desde já lhes profetizo. Não é isso caos, infâmia e pandemônio! E depois de tudo ainda esta desventurada criatura precisa lhes ir pedir perdão, também! Há mais gente como vocês? E de que é que se estão rindo? De eu não ter me sabido conter e explodir contra vocês? Sim, explodi sim, e agora não há outro jeito! Que é que está arreganhando os dentes, você aí, seu “limpa-chaminés”? - apontou para Ippolít. - Está quase a botar a alma pela boca e ainda tenta corromper os outros! Foi você quem pôs a perder este fedelho aqui - apontava para Kólia - que não faz outra coisa senão besteiras por sua causa; você lhe prega ateísmo, você que não crê em Deus, você que não está ainda assim tão velho para uma surra! Você não se enxerga? Então, vai procurá-los, amanhã, Príncipe Liév Nikoláievitch? - perguntou ela, de novo, ao príncipe, com a respiração suspensa.
-Vou. 
- Então não quero mais saber de você. - virou-se, para se ir, mas tornou a voltar. - E irá ver este ateu, também? - apontou para Ippolít. - Tem a coragem de se rir de mim? - gritou ela, em um verdadeiro berro, e avançou para Ippolít, não suportando seu esgar sarcástico. 
- Lizavéta Prokófievna! Lizavéta Prokófievna! Lizavéta Prokófievna! - ouviu-se de todos os lados, ao mesmo tempo.
- Mãe, isso é vergonhoso! - disse Agláia, alto.
- A Senhorita Agláia Ivánovna não se inquiete - respondeu Ippolít, calmamente.

     Lizavéta Prokófievna tinha-se arremessado contra ele e lhe segurara o braço. E, por qualquer motivo inexplicável, ainda o estava segurando com força. Ficou diante dele, com os olhos coléricos presos nele.

- Não se inquiete, a sua mamãe já se dará conta de que não pode atacar um agonizante... Se ela quer que eu explique por que me ri, eu explico. E terei muito gosto se ela me der permissão para isso. - nisto começou a tossir terrivelmente, e não podia parar.

- Ele está a morrer e ainda quer pronunciar discursos - gritou Lizavéta Prokófievna largando-lhe o braço e olhando quase com terror para o sangue que ele limpava dos lábios. - Você não tem de falar nada. Deve mais é ir se deitar.
- É o que farei - respondeu Ippolít, em uma voz rouca, muito baixa, quase um sussurro. - Assim que chegar a casa me deitarei... Nestes quinze dias vou morrer, já sei. B... já me disse isso na semana passada. De maneira que, se me permite, lhe quero dizer umas palavras, ao nos separarmos.
- Está maluco? Deixe de bobagem! Precisa mais é de enfermeira; agora não é hora de falar. Vá já para a cama!
- Se me meto na cama nunca mais me levantarei até morrer - disse Ippolít, sorrindo. - Ontem, por exemplo, pensei em me deitar não me levantar mais; mas decidi deixar isso para até depois de amanhã, caso pudesse me aguentar nas pernas... e assim poder vir eles até aqui... O que há é que me sinto terrivelmente cansado.
- Sente-se, sente-se, por que há de estar de pé? Tem uma cadeira aqui! - e Lizavéta Prokófievna correu e lhe ajeitou ela própria uma cadeira.
- Mas a senhora também vai se sentar, diante de mim, e nós vamos conversar, Lizavéta Prokófievna; faço questão disso, agora... - e sorriu outra vez. - Pense bem, esta é a última vez que saio a apanhar ar e ver gente. Em quinze dias certamente estarei debaixo da terra. De modo que será uma espécie de despedida à humanidade e à natureza. Não sou lá muito sentimental, a senhora já deve ter reparado, mas estou bastante contente que tudo isso se passe em Pávlovsk; aqui, seja lá como for, ainda se podem ver as árvores cheias de folhas.
- Você não pode falar agora - insistiu Lizavéta Prokófievna cada vez mais sobressaltada – Está mais é com febre. Esteve para aí a dar guinchos e agora nem pode tomar a respiração! Está sufocado! Isso passa, em um minuto.
- Por que teima a senhora em contrariar o meu último desejo? Quer saber de uma coisa? Há muito tempo que eu sonhava em vir a conhecê-la Lizavéta Prokófievna. Kólia me falava tanto na senhora! Ele foi o único que não me largou a mão... A senhora é uma criatura original, uma criatura excêntrica e quer saber de uma coisa, eu já estava gostando da senhora, mesmo.
-Deus meu! E não é que estive a ponto de agredi-lo?
- Foi Agláia Ivánovna quem não deixou. Não estou enganado não é? Esta é Sua filha Agláia Ivánovna? É tão bonita que logo, à primeira vista, adivinhei que era ela, apesar de nunca a haver visto, Que ao menos me seja dado olhar para uma mulher bonita pela última vez na minha vida. - e Ippolít sorriu com uma espécie de sorriso crispado e sem graça. - O príncipe está aqui, e o marido da senhora; todo o mundo. Por que não consente no meu derradeiro desejo?
- Vejam uma cadeira! - gritou Lizavéta Prokófievna; ela mesma porém, agarrou a primeira que estava à mão e se sentou defronte de Ippolít. - Kólia - ordenou ela -, você hoje deve ir com ele, deve levá-lo. E amanhã certamente, irei eu até lá...
- Se a Senhora dá licença, vou pedir ao príncipe uma xícara de chá... Sinto- me muito cansado. É verdade Lizavéta Prokófievna ainda há pouco, creio eu, a senhora deu a entender que queria levar o príncipe a tomar chá em sua casa; em vez disso, fique conosco um pouco mais; o príncipe nos fará servir chá a todos, aqui. Desculpe esta minha ideia... Mas como sei que a senhora é de boa índole e o Príncipe também como, afinal, de boa índole somos todos...

     O príncipe apressou-se em dar ordens nesse sentido. Liébediev saiu quase a voar, precipitadamente da sala; Vera acompanhou-o.

- Então, está bem - decidiu repentinamente a generala. - Pode falar, mas fale devagar, sem se excitar. Você, afinal, abrandou o meu coração. Príncipe, o senhor não merece que eu tome chá aqui. Mas.., seja. Ficarei; não pensem que me vou desculpar perante quem quer que seja! Absolutamente! Era só o que faltava! Ainda assim, príncipe, peço perdão se ralhei com o senhor; vá lá por esta vez. Mas não estou prendendo ninguém - voltou-se com uma expressão de extraordinária raiva para o esposo e as filhas, como se a tivessem desconsiderado. Eu sei voltar para casa sozinha.

     Mas não a deixaram acabar. Prontamente todos a rodearam. O príncipe logo começou a insistir com todos para que ficassem para o chá, pedindo desculpas por não ter pensado nisso antes. Até o General Epantchín assumiu um ar cordial, chegando a murmurar algo convincente; e perguntou a Lizavéta Prokófievna se na varanda estaria muito frio para ela. Esteve quase a indagar de Ippolít quanto tempocursara a Universidade, por um nada deixando de o fazer. Evguénii Pávlovitch e o Príncipe Chtch... tornaram-se inesperadamente em extremo cordiais e bem-humorados. Uma expressão de prazer começou a se misturar à de espanto nos rostos de Adelaída e Aleksándra; de fato todos pareciam radiantes por ter acabado o paroxismo de Lizavéta Prokófievna. Somente Agláia continuava amuada lá no seu canto, sentada a pouca distância. odos resolveram ficar; ninguém quis ir embora, nem mesmo o General Ívolguin, depois que Liébediev lhe segredou qualquer coisa decerto não muito agradável, apenas se retirando para um canto. O príncipe estendeu o seu convite a Burdóvskii e aos amigos deste, sem exceção. Balbuciaram, com ar constrangido, que esperariam por Ippolít e logo se retiraram para a ponta extrema da varanda, onde sentaram enfileirados. Provavelmente o chá já tinha sido providenciado, antes, por Liébediev, pois foi trazido quase imediatamente. Soaram as onze horas.

O Idiota: Segunda Parte (9b) - Estava em uma terrível excitação
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