O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
1.
Estamos sempre ouvindo queixas quanto à ausência de gente prática na Rússia. Apregoam que não nos faltam políticos aos punhados, generais às grosas e que a qualquer momento farta quantidade de homens de negócios de todas as categorias pode ser encontrada. Mas gente prática, lá isso não há - pelo menos todo o mundo se anda queixando de tal escassez. Fartamo-nos de ouvir que não há técnicos eficientes nas estradas de ferro, pelo menos em muitas linhas. Que não é possível sequer instalar e dirigir decentemente uma companhia de vapores. A todo momento ouvimos dizer que houve um encontro de trens ou que ruiu uma ponte à passagem de um comboio, de uma linha de estrada de ferro inaugurada pouco antes. Ou então se escuta comentar que um trem de ferro ficou bloqueado pelo gelo e que, devido a isso, uma viagem que mesmo no inverno dura quatro horas se atrasou cinco dias. Fala-se de centenas de toneladas de víveres apodrecendo durante dois ou três meses por dificuldade de despacho. E até se conta (muito embora pareça quase incrível) que o encarregado de um comerciante apanhou com um caixote pelas trombas somente pelo fato de ter pretendido promover um despacho de mercadorias. E que o superintendente, autor da façanha, tentou justificar essa demonstração de eficiência sob o fundamento de que perdera a paciência. Tantas são as repartições do Governo que até fazem uma pessoa cambalear ao pensar nelas. Isso de serviço público representa tal variedade de cargos que toda gente ou já ocupou um, ou ainda está ocupando, ou pretende arranjar nomeação breve. Assim, natural é que com tanta abundância de material fiquemos admirados que ainda não tenha sido possível instalar uma repartição técnica decente, de maneira a fazer correr no horário uma estrada de ferro ou funcionar direito uma linha de navegação. Tal estado de coisas sugere muitas vezes uma simples resposta - tão simples de fato que o difícil é acreditar, isso sim, na explicação. É verdade, dizem-nos, que todo o mundo na Rússia esteve, está ou pretende se empregar em repartições governamentais, e que tal sistema vem sendo seguido há mais de duzentos anos, segundo os mais rígidos padrões germânicos, isto é, de avô a neto... Mas também é verdade que isso de funcionário público é o indivíduo mais negativamente prático do mundo, e que as coisas chegaram a tal ponto que um caráter puramente teórico e a negação absoluta de qualquer conhecimento técnico vêm sendo encarados cada vez mais, mesmo nos círculos oficiais, como os atributos e prerrogativas que recomendam uma promoção. Mas nem é preciso discutir sobre funcionários; restrinjamo-nos a falar sobre homens práticos. Não resta dúvida que incompetência e completa falta de iniciativa sempre foram consideradas como principal indício de um homem prático, sendo assim ainda mesmo hoje. Mas por que nos censuramos se esta opinião já por si só constitui uma acusação?! Sempiternamente, por este mundo afora, a falta de originalidade sempre foi avaliada como a principal característica e a melhor recomendação de um homem prático, ativo e diligente, e no mínimo noventa e nove por cento da humanidade - para só avaliarmos modestamente - manteve sempre esta opinião e, no máximo, um por cento divergindo dela.
Inventores e gênios foram quase sempre considerados apenas como loucos, no
começo de suas carreiras; e não raro até ao fim delas, também. Esta é uma
observação corriqueira, familiar a toda gente. Citemos um exemplo: os bancos.
Há anos e anos que uma porção de gente deposita seu dinheiro em bancos,
muitíssimos milhões estando investidos assim, a quatro por cento. Ora muito bem.
Suponhamos que os bancos cessem de existir e que o povo seja deixado,
economicamente, sob a sua própria iniciativa pessoal. Que sucederia? A maior
parte desses milhões se perderia infalivelmente em especulações desenfreadas
ou na mão de tratantes. Assim pois, tal hábito, o dos bancos, por exemplo, está
deveras de acordo com os ditames da propriedade e da decência. Sim, se uma
absoluta incompetência e uma indecorosa falta de originalidade foram aceitas
universalmente como os atributos essenciais de um homem prático e de um
gentleman, uma repentina transformação nesse sistema seria de todo indecente e
grosseira. Qual a mãe terna e devotada que não desmaiaria e não ficaria de
cama ao ver o filho ou a filha se afastar uma polegada dessa trilha obrigatória?
“Não, melhor será que ele viva feliz e bem, embora sem originalidade, e o que
toda mãe pensa enquanto embala um berço. Já desde os mais remotos tempos
que as nossas amas cantavam ninando bebês: “Dorme, dorme, criança chorona,
que ainda te hei de ver de dragona!” Isso prova que já as nossas velhas amas
consideravam o posto de general como sendo o pináculo mais alto da felicidade
russa, e louvado seja Deus, que isso ainda continue sendo o ideal russo mais
popular de ventura pacífica e benfazeja. E, realmente quem, na Rússia, após
atravessar um curso, mesmo sem distinção, e servir durante trinta e cinco anos,
não conseguirá finalmente ser
general e não investirá uma soma decente em um banco? É assim que o russo
acaba adquirindo a reputação de homem prático e diligente, e quase sem
esforço. Entre nós a única pessoa que malogrará no intento de vir a ser general é
o homem de individualidade própria... ou, por outras palavras, o homem que não
suporta a rotina. Possível é que haja em tudo algum engano meu ou uma
exceção estatística; mas, falando de um modo geral, a verdade é esta. Assim, a
nossa sociedade tem sido perfeitamente correta na sua definição do que seja um
homem prático.
Mas muito do que aqui está é supérfluo. O que eu pretendia era simplesmente
dizer umas poucas palavras que explicassem os nossos amigos Epantchín. Tal
família, ou pelo menos os seus membros mais representativos, sofriam de uma
característica familiar específica, bem oposta às virtudes que estivemos
discutindo acima. Muito embora não se capacitassem nitidamente do fenômeno
(nem ele é tão fácil de ser compreendido), ainda assim suspeitavam
frequentemente que em sua família tudo era diferente de quanto nas outras se
encontrava. Nas outras as coisas aconteciam serenamente, já na deles os fatos se
passavam aos solavancos; os outros timbravam em seguir a rotina.., ao passo que
eles sentiam atração pelo excepcional. Toda a gente se comporta de modo
decorosamente tímido, optando eles por via bem inversa.
Lizavéta Prokófievna
era, de fato, muito propensa (demasiadamente até) a alarmar-se à toa; não que
houvesse nisso desejo veemente ou saudoso daquela timidez convencional
geralmente adotada. Mas na família talvez somente ela captasse tal ansiedade
aflitiva, pois as moças eram ainda muito novas, não obstante possuírem boa dose
de penetrante ironia; o general, esse então, conquanto arguto (o que todavia lhe
custava certo esforço), o mais que fazia era murmurar “Hum!” diante das
circunstâncias estarrecedoras, quanto ao mais confiando no expediente da
mulher. Assim, pois, a responsabilidade de tudo cabia a ela. Não se infira daí que
essa família se distinguisse por iniciativas notáveis, ou se tivesse livrado da bitola
da rotina mediante uma inclinação consciente para a originalidade, o que
significaria uma completa infração às normas das faculdades habituais. Oh!
Longe disso! De maneira alguma agiam assim mercê de um propósito
consciente. E, todavia, a despeito de tudo, a família Epantchín, apesar de
altamente respeitável, não era bem o que toda família respeitável devia ser.
Ultimamente dera Lizavéta Prokófievna em se queixar de si própria, sozinha, e
do seu “desafortunado” caráter ante tal estado de coisas, o que aumentava a sua
angústia. Dera em se culpar continuamente de ser “uma velha excêntrica e
maluca que não sabia como se comportar”, afligindo-se com
perturbações imaginárias, andando sempre em estado de perplexidade,
atarantadamente. sem saber como agir em face das mais corriqueiras
contingências. multiplicando sempre toda a sua desventura.
No começo de nossa
narrativa mencionamos já que a família Epantchín desfrutava da estima sincera
de todos. O próprio general, conquanto de origem obscura, era recebido em toda
a parte e tratado com respeito. E de fato merecia esse respeito - em primeiro
lugar como homem de fortuna e de reputação, e, em segundo lugar por ser
pessoa, muito decente, apesar de não ter, de modo algum. grande inteligência. É
que uma certa estupidez de espírito parece ser as vezes uma qualificação
necessária se não para todo homem público, ao menos para aquele que
seriamente se propõe a ganhar dinheiro. E, finalmente, o general tinha boas
maneiras, era modesto, sabia como e quando conter a língua, sem todavia
permitir que lhe pisassem nos calos; não somente era homem de posição, mas
também de bons sentimentos. O mais importante, porém, é que era fortemente
protegido. Quanto à sua mulher, como já explicamos, era de boa família, o que,
aliás, não é motivo para grande consideração entre nós a não ser que haja
poderosos amigos, no caso. De tais amigos poderosos, porém, ela soubera
adquirir um círculo razoável. Era respeitada e no fim as pessoas de importância
acabavam gostando dela, tendo sido pois natural que os demais seguissem tal
exemplo, considerando-a e recebendo-a.
Não havia dúvida que todas as
ansiedades dela pela família eram sem fundamento. Poucos motivos havia para
esses afoitamentos que eram ridiculamente exagerados. Mas é sempre a mesma
história com todos nós: se temos uma verruga na testa ou no nariz, cuidamos
sempre que ninguém tenha mais nada a fazer, no mundo, senão ficar pasmado
para a nossa verruga, achar graça nela e por causa dela nos desprezar, mesmo
que tenhamos descoberto a América. Sem dúvida Lizavéta Prokófievna era
considerada geralmente “uma excêntrica”, o que não era questão que a
impedisse de ser estimada; - mas o caso é que acabou por não acreditar mais
nessa estima, todo o seu tormento jazendo nisso.
Encarando as filhas, ela se
consumia pela suspeita de que estava arruinando o futuro delas, pois era ridícula,
insuportável, ignorando como comportar-se. E por tudo isso estava sempre
censurando as filhas e o marido, brigando com eles o dia inteiro, embora os
amasse com uma afeição apaixonada, a ponto de se sacrificar. O que mais que
tudo a incomodava era a desconfiança de que as filhas se estavam tornando
quase tão excêntricas quanto ela, e que moças de sociedade não deviam e não
podiam ser assim. “Elas estão mais é dando para niilistas, isso é que é!” - repetia
a si mesma a todo instante.
Neste ano que passou, e de
então para cá, esta melancólica noção cada vez se fixava mais em seu espírito.
“E para começar, por que é que não se casam? - não cessava de se interrogar.
“Para atormentarem a mãe fazem disso o fim e a razão de suas existências; e
isso tudo advém dessas ideias novas, desses amaldiçoados direitos da mulher!
Pois não meteu Agláia na cabeça, há seis meses, cortar o cabelo, aquele seu
magnífico cabelo? (Deus do Céu, nem mesmo eu, quando moça, tive cabelos
assim!) Estava com a tesoura na mão; tive de me ajoelhar aos pés dela... Pois
bem, fez; e fez por despeito, sem dúvida para martirizar sua mãe, pois é uma
menina ruim. voluntariosa, mimada e acima de tudo é ruim, ruim, ruim! Pois
não quis essa gorducha, a Aleksándra, seguir o exemplo da outra, e não é que
tentou cortar as tranças, e não por birra, não por capricho, e sim só por
simplicidade, por burrice, só Porque Agláia a persuadiu de que sem aqueles
balandraus dormiria melhor e se livraria de ter dor de cabeça? E o número sem
conta de pretendentes que tiveram nestes cinco anos? E olhem lá que havia uns
rapagões de primeira ordem, entre eles! Elas estão esperando o quê? Por que é
que não se casam? Simplesmente, para aborrecerem sua pobre mãe, não há
outra razão, nenhuma, absolutamente!”
continua página 295...
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