terça-feira, 11 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XIX — O campo de batalha durante a noite

 Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XIX - O campo de batalha durante a noite
     
     Voltemos a esse fatal campo de batalha, que assim o exige o contexto deste livro.
     O clarão da Lua, que no dia 18 de Junho de 1815 era cheia, favoreceu a perseguição feroz de Blucher sobre os fugitivos, cujo rasto denunciava, e auxiliou a carnificina, entregando aquela desastrosa multidão ao encarniçamento da cavalaria prussiana. A noite tem às vezes nas catástrofes destas complacências trágicas. 
     Após o troar do último tiro de peça, ficou deserta a planura do Mont-Saint-Jean.
     Os ingleses ocuparam o acampamento dos franceses. É a prova habitual da vitória deitar-se o vencedor no leito do vencido. Os ingleses acamparam para além de Rossomme, avançaram os prussianos em perseguição dos vencidos. Quanto a Willington, dirigiu-se para a aldeia de Waterloo para redigir o seu relatório a lord Bathurst. 
     Se o sic vos non vobis alguma vez foi aplicável, é seguramente à ideia de Waterloo.
     Waterloo, que nada fez, que fica a meia légua do lugar da ação, que não cooperou na batalha, foi a que ficou com as honras dela. O Mont-Saint-Jean, que foi bombardeado, Hougomont, que foi incendiado, Papellote, que ficou reduzido a cinzas, Plancenoit, que foi destruído pelo fogo, Haie-Sainte, que foi tomada de assalto, Belle Alliance, que viu o abraço dos dois vencedores, essas ficaram no esquecimento; mal se sabem os nomes desses lugares. 
     Nós não somos dos que lisonjeiam a guerra. A guerra tem belezas terríveis que não temos ocultado, mas convimos também em que tem feios aspectos. Um dos mais surpreendentes é a prontidão no despojar dos mortos após a vitória. A aurora que se segue a uma batalha reflete sempre os seus clarões sobre um montão de cadáveres nus.
     Quem faz isto? Quem mancha assim o triunfo? Que mão abjeta é a que furtivamente se intromete no bolso da vitória? Quem são esses ratoneiros que se escondem por trás da glória para praticar a salvo os seus delitos? 
     Afirmam alguns filósofos, e entre outros Voltaire, que são exatamente os que fizeram a glória. São os mesmos, dizem eles, não há troca nenhuma; os que ficam em pé saqueiam os que jazem por terra. O herói do dia torna-se o vampiro da noite. Afinal de contas, o que é autor de um cadáver tem o seu tanto de direito para o roubar. Nós, porém, não o julgamos assim. Colher louros e roubar os sapatos de um morto parece uma coisa impossível para a mesma mão.
     O que é certo é que de ordinário, após os vencedores, vêm os ladrões. Ponhamos, porém, fora da questão o soldado, principalmente o soldado contemporâneo. 
     Todo o exército tem uma cauda, e é isso o que devemos acusar. Entes morcegos, meio salteadores, meio criados, todas as qualidades de vespertílio, engendradas por esse crepúsculo chamado a guerra, gente que traz farda, mas que não combate, doentes fingidos, estropiados temíveis, taberneiros de contrabando, trotando, às vezes com as mulheres, em cima de pequenos carros e roubando o que tornam a vender, mendigos que se oferecem por guias aos oficiais, moços de soldados, desertores, tudo isto acarretava outrora um exército em marcha não falamos do tempo presente de modo que a língua especial chamava-lhes «a gente de bagagem».
     Nenhum exército, nem nação, alguma, era responsável por esses entes, que falavam italiano e seguiam os alemães, que falavam francês e seguiam os ingleses. Foi por um desses miseráveis, que era espanhol, mas que falava francês, que o marquês de Fervacques, enganado pela sua algaravia picarda, e tomando-o por um dos nossos, foi morto como traidor e roubado no próprio campo de batalha, na noite que se seguiu à vitória de Cérisolles. 
     Da pilhagem nascia o ladrão. Produzia esta lepra, só curável por uma grande disciplina, a detestável máxima: viver do inimigo. Famas há que enganam, nem sempre se sabe porque foram tão populares certos generais, aliás grandes. Turenne era adorado pelos seus soldados, porque tolerava a pilhagem; a permissão do mal faz parte da bondade; a tal ponto chegava a bondade daquele general, que deixou passar o Palatinado a ferro e fogo. Na retaguarda dos exércitos viam-se sempre mais ou menos destes desbragados gatunos, consoante a maior ou menor severidade dos chefes.
     Hoche e Marceau não traziam atrás de si nem um só dos denominados «soldados da bagagem»; Wellington, de boamente lhe fazemos essa justiça, trazia-os, mas em pequeno número. 
     Contudo, na noite de 18 para 19 de Junho, os mortos de Waterloo foram despejados. Não obstou a isto a rigidez de Wellington. Havia ordem de passar pelas armas todo o que fosse apanhado em flagrante delito; a rapina, porém, é tenaz. Enquanto num canto do campo de batalha fuzilavam os gatunos colhidos na sua habitual tarefa, os outros roubavam o outro canto.
     Pela meia-noite, vagueava, ou antes, rastejava, um homem do lado da azinhaga de Ohain. Era, segundo todas as aparências, um dos que nós acabamos de caracterizar, nem inglês, nem francês, nem aldeão, nem soldado, com mais de corvo do que de homem, atraído pelo faro dos mortos, tendo por vitória o roubo, vindo a Waterloo para despojar os cadáveres. Trazia vestida uma blusa com semelhanças de capote, e parecia ao mesmo tempo inquieto e audaz, pois caminhava sempre para diante e olhava de vez em quando para trás. Que homem era aquele? Sabia talvez mais a noite a seu respeito do que o dia. Verdade é que não trazia saco, mas é certo que eram desmesuradamente grandes os bolsos do seu capote. De tempos a tempos, parava, examinava a planície em derredor como para ver se alguém o observava, curvava-se rápido, mexia em alguma coisa que jazia silenciosa e imóvel no chão, endireitava e prosseguia o seu caminho com o mesmo ar de quem se esquiva a ser visto. O modo como ele deslizava quase imperceptível nas sombras, as suas atitudes o seu gesto rápido e misterioso, assemelhavam-no a essas larvas crepusculares, que povoam as ruínas, chamadas pelas antigas lendas normandas os «Divagadores».
     Esvoaçam nos pântanos certas aves noctívagas, que apresentam o mesmo perfil daquele homem, visto por entre a obscuridade da noite. 
     Quem atentamente sondasse com os olhos a cerração que encobria os objetos, notaria, parado, a alguma distância, e como que oculto por trás da choupana situada na margem da estrada de Nivelles, que faz esquina para a estrada do Mont-Saint-Jean a Braine-l’Alleud, um pequeno carro de vivandeiro com um coberto de vime embreado, puxado por um esfaimado sendeiro, que mesmo por entre o freio ia roendo as urtigas a que podia chegar com a língua, e em cima desse carro uma mulher sentada no meio de algumas caixas e embrulhos. Talvez entre esta carroça e aquele vagabundo existisse algum laço.
     Era serena a obscuridade. Nem uma nuvem no zénith. Que importa à luz que a terra esteja vermelha? Vê-la-eis sempre branca. É isto o que podemos chamar as indiferenças do céu. Agitados pelo vento da noite, balouçavam levemente nos prados os ramos das árvores quebrados pelas balas, mas não caídos por terra e retidos pela casca. Uma ligeira viração, um como hálito agitava a ramagem das árvores, a folhagem das plantas silvestres. Diríeis, ao ver o estremecer dos arbustos, que eram almas partindo dos corpos para uma região desconhecida. 
     Ao longe ouvia-se vagamente o passo cadenciado das patrulhas, indo e vindo, e o das rondas do acampamento inglês.
     Hougomont e Haie-Sainte continuavam a arder, formando, uma a oeste, outra a este, duas grandes colunas de chamas, às quais se vinha prender, como um colar de rubis desatado, com dois carbúnculos nas extremidades, o cordão de fogueiras do acampamento inglês, estendendo-se num semicírculo imenso sobre as colinas do horizonte. 
     Nós já vos narrámos a catástrofe da azinhaga Qhain, Confrange-se o coração de terror só em pensar no modo como ali acabaram irremissivelmente tantos bravos.
     Se no mundo há coisa que aterre, se existe uma realidade que exceda as ficções de um sonho, é decerto isto: viver, ver o Sol, estar em plena posse da força viril, ter a saúde e a alegria, rir com desassombro, correr após uma glória que temos diante de nós e nos incita com o seu deslumbramento, sentir no peito um pulmão que respira, um coração que pulsa, uma vontade que raciocina; falar, esperar, pensar, amar; ter mãe, mulher e filhos, possuir a luz, de súbito, em menos de um minuto, em menos tempo do que o necessário para soltar um grito, resvalar num abismo, cair, rolar, esmagar, ser esmagado; ver espigas de trigo, flores, folhas e ramos, sem poder deitar a mão a nada, sem poder cravar as unhas na aresta do precipício, vendo inútil a espada, sentindo por baixo de si o peso dos homens e por cima o dos cavalos, debater-se em vão com os ossos quebrados por algum choque imprevisto nas trevas, sentir um calcanhar que vos deita os olhos fora, morder com raiva as ferraduras dos cavalos, sufocar, uivar, contorcer-se, sentir-se enterrado e dizer: «Ainda há pouco eu era um vivo!»
     Porém agora tudo era silêncio naquele lugar nefasto, onde as vítimas de tão lamentoso desastre fizeram ouvir o estertor da sua inconcebível angústia. A azinhaga extravasava de cavalos e cavaleiros, inextricavelmente amontoados, confundidos, emaranhados. Terrível emaranhamento! As ribanceiras do caminho desapareciam debaixo daquele montão de cadáveres que nivelava a azinhaga com a planície, rasando a aresta da ribanceira, como um alqueire de cevada bem medido. Um montão de mortos por cima, um rio de sangue em baixo, eis o que era aquele caminho na noite que se seguiu ao dia 18 de Junho de 1815 Corria o sangue até à calçada de Nivelles, onde se espraiava num largo pântano, em frente da trincheira de troncos de árvores que obstruía a estrada, no local que ainda hoje ali se mostra. Foi na parte oposta, como lembrados estarão, que teve lugar a derrota dos couraceiros. A espessura dos cadáveres era proporcional à profundidade da azinhaga. Quase no meio, porém, no sítio onde ela se tornava plana, e por onde passara a divisão de Delord, a camada dos mortos era mais delgada.
     Para esse lado, pois, se dirigia o vagabundo que acabamos de fazer entrever ao leitor, esquadrinhando aquele túmulo imenso, circunvagando a vista para todos os lados, passando uma como medonha revista a todos aqueles mortos, caminhando com os pés metidos no sangue dos vencidos e dos vencedores. 
     De repente parou. 
     A alguns passos na sua frente, no lugar em que terminava o montão de cadáveres que atulhavam a azinhaga, saía de sob aquela pilha enorme de homens e de cavalos uma mão aberta, em que batia o reflexo da lua, iluminando um objeto que, pelo seu brilho, se conhecia ser um anel de ouro.
     O homem curvou-se, esteve um momento de cócoras, e, quando se levantou, aquela mão de finado estava despojada do anel. 
     Não dissemos bem; ele propriamente não se levantou, ficou numa atitude semelhante à do veado que a perseguição da matilha gela de susto, com as costas voltadas para o montão dos mortos, de joelhos, perscrutando o horizonte, fincando-se no chão com o índex de ambas as mãos e de cabeça levantada, espreitando por cima da ribanceira da azinhaga Ações há para as quais é preciso ter as quatro pernas do chacal. 
     Depois levantou-se, como quem tinha tomado a sua resolução.
     Neste momento, porém, estremeceu, ao sentir-se agarrado pelo lado de trás e voltou- se. 
     Era a mão aberta que se tinha fechado, apertando-lhe a aba do capote que o cobria. 
     Um homem honrado gelaria de susto; aquele, porém, desatou a rir.

— Ora! — disse ele. — Cuidei que era outra coisa, e ele é só o morto! Antes me quero com uma alma do outro mundo do que com um gendarme! 

     Aquela mão, porém, desfaleceu e largou-o. Acaba rápido o esforço do túmulo. 

— E esta! — tornou o vagabundo. — Não querem ver que o diabo do morto está vivo? 

     Sempre vamos a ver.
     Curvou-se outra vez, procurou entre o montão, desviando o que lhe servia de obstáculo, pegou na mão do moribundo, agarrou-o pelo braço, livrou-lhe a cabeça, puxou o corpo para fora, e daí a alguns instantes arrastava por entre as sombras da azinhaga um homem inanimado, pelo menos desmaiado. Era um couraceiro, um oficial, mas oficial de certa graduação, debaixo de cuja couraça saía uma grande dragona dourada, mas que não tinha capacete. No rosto divisava-se-lhe uma grande cutilada, que lhe banhava todo em sangue. Contudo, parecia que não tinha membro algum fraturado, porque os mortos, por algum feliz acaso, se tal palavra aqui podemos empregar, haviam formado arco por cima dele, impedindo-o assim de ser esmagado. Os olhos tinha-os fechados.
     O vagabundo, ao ver-lhe ao peito a cruz de prata da Legião de Honra, arrancou-a, e a cruz desapareceu num dos abismos que se abriam por baixo do seu capote. 
     Após isto, apalpou-lhe o bolso da farda e tirou-lhe um relógio que lhe sentiu. Em seguida vasculhou-lhe os bolsos do colete e empolgou-lhe uma bolsa que neles encontrou. 
     Nesta fase, porém, dos socorros que ele dispensava ao moribundo, o oficial abriu os olhos e disse com voz enfraquecida:

— Obrigado.

     A precipitação dos movimentos do homem que lhe passava revista geral aos bolsos, a frescura da noite e a respiração do ar livre, tinham-no arrancado ao estado de letargia em que se achava quando o vagabundo dera com ele. 
     Este, porém, em vez de responder, levantou a cabeça. Ouvia-se na planície um rumor de passos, talvez os de alguma patrulha que se aproximava. 
     O oficial murmurou, pois ainda havia na sua voz alguma coisa da agonia:

— Quem ganhou a batalha? 
— Os ingleses — respondeu o vagabundo. 

     O oficial tornou:

— Procure-me nos bolsos, que há de encontrar uma bolsa e um relógio, e pegue neles. 

     Isto já estava feito, porém o vagabundo fez que executou a ordem do moribundo e disse: 

— Não está cá nada. 
— Então roubaram-me — replicou o oficial. — Pois tenho pena, que lhe queria dar tudo.

     A este tempo, os passos da patrulha tornavam-se cada vez mais distintos.

— Vem aí gente — disse o vagabundo, fazendo o gesto de quem se retira. 

     O oficial, porém, reteve-o, levantando o braço a custo. 

— Devo-lhe a vida. Quem é o senhor?

     O vagabundo respondeu com rapidez e em voz baixa:

— Eu era também do exército francês como o senhor. Não tenho, porém, remédio senão deixá-lo, porque, se me agarram, fuzilam-me. Salvei-lhe a vida, agora o resto arranje-o o senhor como puder. 
— Que posto tem? 
— O de sargento. 
— Como se chama? 
— Thenardier. 
— Nunca hei-de esquecer esse nome — disse o oficial. — Recorde-se sempre do meu. Chamo-me Pontmercy. 
 
continua na página 278...
______________

Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
_________________________


Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XIX — O campo de batalha durante a noite
_______________________
 
Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

Nenhum comentário:

Postar um comentário