segunda-feira, 10 de fevereiro de 2025

Marcel Proust - No Caminho de Swann (IV - nomes de terras: o nome, E, ai de mim, proibiu - b)

em busca do tempo perdido


volume I
No Caminho de Swann

ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust

nomes de terras: o nome

IV(b) 

continuando...

     E, ai de mim, proibiu também de modo absoluto, que me deixassem ir ao teatro ouvir a Berma; a artista sublime, em quem Bergotte achava gênio, fazendo-me conhecer alguma coisa que era talvez tão importante e tão belo, ter-me-ia consolado de não haver ido a Florença e a Veneza, de não ir a Balbec. Deviam contentar-se em enviar-me todos os dias aos Campos Elísios, sob a vigilância de uma pessoa que me impedisse de fatigar-me, e que no caso foi Françoise, que entrara a nosso serviço desde a morte de tia Léonie. Isso de ir aos Campos Elísios foi-me uma coisa insuportável. Se ao menos Bergotte os tivesse descrito nalgum de seus livros, por certo eu desejaria conhecê-los, como todas as coisas cujo “duplo” tinham começado por introduzir-me na imaginação. Ela as aquecia, fazia-as viver, lhes dava uma personalidade, e eu desejava reencontrá-las no mundo real; mas, naquele jardim público, nada se ligava a meus sonhos.
     Um dia, como me aborrecesse em nosso costumeiro lugar junto ao carrossel, Françoise levara-me em excursão — além da fronteira que guardam a intervalos iguais os pequenos bastiões das vendedoras de balas — naquelas regiões vizinhas mas estrangeiras, onde as caras são desconhecidas, por onde passa o carro das cabras; depois voltara para apanhar as suas coisas da cadeira junto ao maciço de loureiros; enquanto ela não vinha, eu explorava o vasto campo definhado e raso, amarelecido pelo sol, e em cujo fundo há uma fonte dominada por uma estátua, quando, da alameda, dirigindo-se a uma menina de cabelos ruivos que jogava peteca diante da fonte, uma outra, que punha o chapéu e guardava a raqueta, gritou-lhe com voz breve: “Adeus, Gilberte, vou-me embora; não te esqueças de que esta noite iremos à tua casa depois do jantar”. Esse nome de Gilberte passou por mim, evocando tanto mais a existência daquela a quem designava, visto que não a nomeava apenas como a um ausente de quem se fala, mas interpelava-a; também passou por mim em ação, por assim dizer, com uma força acrescida pela curva da sua trajetória e a proximidade de seu objetivo — transportando consigo, eu o sentia, o conhecimento, as noções que tinha daquela a quem era dirigido não eu, mas a amiga que a chamava, tudo o que, enquanto o pronunciava, ela revia, ou pelo menos possuía na memória, da sua intimidade cotidiana, das visitas que trocavam, de todo aquele desconhecido ainda mais inacessível e doloroso para mim por ser tão familiar e manejável para aquela feliz criatura, que com ele me tocava sem que eu lhe pudesse penetrar e que o lançava em pleno ar, num grito —, deixando já flutuar no espaço a emanação deliciosa (que fizera desprender-se, tocando-os com precisão, de alguns pontos invisíveis da vida da filha de Swann), da próxima noite, tal como seria, após o jantar, em casa dela, formando, passageiro celeste no meio das crianças e das criadas, uma nuvenzinha de uma cor preciosa, igual à que, arqueada acima de um belo jardim de Poussin, reflete minuciosamente como uma nuvem de ópera, cheia de cavalos e de carros, alguma aparição da vida dos deuses — lançando enfim, sobre aquele gramado ralo, no sítio em que ele era ao mesmo tempo um trecho de relva crestada e um momento da tarde da ruiva jogadora de peteca (que não cessou de arremessá-la e apará-la até que a chamasse uma governanta de pluma azul no chapéu), uma pequena faixa maravilhosa e cor de heliotrópio, impalpável como um reflexo e superposta como um tapete, sobre o qual não me cansava de passear meus passos demorados, nostálgicos e profanadores, enquanto Françoise me gritava: “Vamos! Abotoe o casaco e raspemo-nos”, quando pela primeira vez notei com irritação que a sua linguagem era vulgar e ela não tinha — que tristeza! — pluma azul no chapéu.
     Ao menos voltaria ela aos Campos Elísios? No dia imediato não estava; mas a vi nos dias seguintes; rondava todo o tempo pelo local onde ela brincava com as amigas, de sorte que uma vez em que não tinham número suficiente para uma partida de barras, ela mandou perguntar se eu queria completar o seu bando, e desde então brinquei com Gilberte sempre que ela estava presente. Mas não era todos os dias: às vezes não podia vir por causa dos estudos, do catecismo, de uma merenda, de toda aquela vida separada da minha que por duas vezes, condensada no nome de Gilberte, sentira passar tão dolorosamente por mim, na ladeira de Combray e no gramado dos Campos Elísios. Naqueles dias, avisava de antemão que não a veriam; se era por causa dos estudos dizia: “Que maçada! Não poderei vir amanhã, vocês todos vão divertir-se sem mim”, com um ar pesaroso que me consolava um pouco; mas, por outro lado, se era convidada para alguma festa e eu, ignorando-o, lhe perguntava se não viria brincar, ela respondia: “Espero que não! Creio que mamãe me deixará ir à festa de minha amiga”. Pelo menos naqueles dias, eu sabia que não a veria, mas outras vezes sua mãe a levava de improviso a fazer compras, e no dia seguinte ela dizia: “Ah!, sim, saí com mamãe”, como uma coisa muito natural e que não fosse para alguém a maior desgraça possível. Havia também os dias de mau tempo, em que a sua governanta, que temia a chuva, não queria levá-la aos Campos Elísios.
     Assim, quando o céu se apresentava duvidoso, eu desde a manhã não cessava de interrogá-lo e levava em conta os mínimos detalhes. Se via a senhora que morava em frente pôr o seu chapéu junto à janela, dizia comigo: “Aquela senhora vai sair; portanto, está fazendo um tempo em que se pode sair; por que Gilberte não poderá fazer como essa senhora?”. Mas o tempo ensombrecia, dizia minha mãe que ainda podia melhorar, que bastava para isso um raio de sol, mas que mais provavelmente choveria; e se chovesse, para que ir aos Campos Elísios? Assim, depois do almoço, os meus olhares ansiosos não mais deixavam o céu incerto e nublado. Ele permanecia sombrio. Diante da janela a sacada era cinzenta. De súbito, sobre o seu tristonho pavimento de pedra, eu não via uma cor menos baça, mas sentia como que um esforço para uma cor menos baça, a pulsação de um raio hesitante que quisesse libertar a sua luz. Um instante após, a sacada estava pálida e luminosa como uma água matinal, e mil reflexos dos ferros de suas grades tinham vindo pousar ali. Um sopro de vento os dispersava, a pedra se ensombrecera de novo, mas, como que domesticados, eles voltavam; a pedra recomeçava imperceptivelmente a clarear e, por um desses crescendos contínuos como os que, em música, no fim de uma abertura, levam uma única nota até o fortíssimo supremo, fazendo-a passar rapidamente por todos os graus intermediários, eu a via alcançar esse ouro inalterável e fixo dos belos dias, sobre o qual as recortadas sombras dos lavores de ferro se destacavam em negro como uma vegetação caprichosa, como uma tenuidade no delineamento dos menores detalhes que parecia trair uma consciência aplicada, uma satisfação de artista, e com tal relevo, tal aveludado no repouso de suas massas sombrias e felizes que na verdade aqueles reflexos largos e folhudos que repousavam naquele lago de sol pareciam saber que eram penhores de calma e de ventura.
     Hera instantânea, flora parietária e fugitiva! A mais incolor, a mais triste, pensam muitos, das que podem trepar pelo muro ou decorar a janela; mas, para mim, de todas a mais cara, desde o dia em que aparecera em nosso balcão, como a própria sombra da presença de Gilberte, que já estava talvez nos Campos Elísios e, logo que eu chegasse, me diria: “Vamos começar em seguida o jogo de barras, você está do meu lado”; hera frágil, que um sopro arrebatava, mas também em relação tão íntima não com a estação, mas com o minuto; promessa da felicidade imediata que o dia nega ou concede, e portanto da felicidade imediata por excelência, a felicidade do amor; mais suave, mais quente sobre a pedra, do que o próprio musgo; tão vivaz que lhe basta um raio para nascer, fazendo brotar a alegria, mesmo no coração do inverno.
     E até nesses dias em que desaparece qualquer outra vegetação, em que o belo ouro verde que envolve o tronco das velhas árvores fica oculto sob a neve, quando esta parava, mas o tempo continuava muito sombrio para eu esperar que Gilberte saísse, eis que de súbito, fazendo minha mãe dizer: “Olha! Acaba de clarear; quem sabe se vocês não poderiam ir mesmo aos Campos Elísios”, o sol recém-surgido, sobre o manto de neve que cobria a sacada, entrelaçava fios de ouro e bordava reflexos negros. Naquele dia não encontrávamos ninguém, ou só alguma das meninas prestes a partir, que me afiançava que Gilberte não viria. As cadeiras, abandonadas pela assembleia majestosa mas friorenta das governantas, estavam vazias. Apenas, perto do gramado, achava-se sentada uma senhora de certa idade, que vinha por qualquer tempo que fizesse sempre trajada do mesmo modo magnífico e sombrio, e a quem naquela época, se o trato fosse possível, eu teria sacrificado as maiores vantagens de minha vida futura, só para travarmos relações pessoais. Pois Gilberte ia todos os dias cumprimentá-la; ela pedia a Gilberte notícias de “seu amor de mamãe”; e parecia-me que, se a conhecesse, eu seria para Gilberte alguém muito diferente, alguém que conhecia as relações de seus pais. Enquanto os netos brincavam mais além, ela lia os Débats, a que chamava “os meus velhos Débats”[1] e, por estilo aristocrático, dizia, referindo-se ao guarda ou à alugadora de cadeiras: “Meu velho amigo o guarda”, “a alugadora de cadeiras e eu, que somos velhas amigas”. Françoise sentia muito frio para poder ficar parada, e fomos até a ponte da Concórdia ver o Sena congelado, do qual todos e até as crianças se aproximavam sem medo como de uma imensa baleia encalhada e indefesa, que fossem esquartejar. Voltávamos aos Campos Elísios; eu me consumia de dor entre os imóveis cavalos de pau e o relvado todo branco, preso na rede negra dos caminhos que haviam limpado da neve e onde a estátua agora tinha na mão uma vara adicional de gelo que parecia explicar o seu gesto. Por sua vez a velha senhora dobrou os Débats, perguntou as horas a uma ama que passava e a quem agradeceu, dizendo-lhe: “É muito amável da sua parte”; depois, pedindo ao zelador que fosse dizer a seus netos que voltassem, que ela estava com frio, acrescentou: “Será muita bondade sua. Creia que me sinto confusa”. De súbito, o ar rasgou-se: entre o teatro de fantoches e o circo, no horizonte embelecido, sobre o céu entreaberto, eu acabava de avistar, como um signo fabuloso, a pluma azul de Mademoiselle. E Gilberte já vinha correndo em disparada na minha direção, radiante e afogueada, com seu gorro de peles, animada pelo frio, a demora e o desejo do jogo; um pouco antes de alcançar-me, deixou-se deslizar sobre o gelo e, ou para conservar melhor o equilíbrio, ou porque achasse mais gracioso, ou para afetar a atitude de uma patinadora, foi de braços abertos que avançou sorrindo, como se quisesse receber-me entre eles. “Bravo! Bravo! Isso é que está bem, isso é que eu diria, como vocês, que é chique, que é fibra, se não fosse de uma outra época, do Antigo Regime”, exclamou a velha dama, tomando a palavra em nome dos Campos Elísios silenciosos, para agradecer a Gilberte por ter vindo sem deixar-se intimidar com o tempo. “Você é como eu, fiel apesar de tudo aos nossos Campos Elísios; nós somos duas valentes. Se eu dissesse que gosto dos Campos Elísios, mesmo assim? Essa neve, você vai rir de mim, essa neve me faz pensar em arminho!” E a velha dama se pôs a rir.
     O primeiro daqueles dias — aos quais a neve, imagem das potências que podiam privar-me de ver Gilberte, dava a tristeza de um dia de separação e até o aspecto de um dia de partida, porque mudava a face e quase impedia a utilização do lugar habitual de nossos únicos encontros, agora transformado, todo envolto em capas — aquele dia, no entanto, fez progredir o meu amor, pois foi como um primeiro pesar que ela houvesse partilhado comigo. Do nosso bando, só havia nós dois, e ser assim o único que estava com ela constituía não só um começo de intimidade, mas também da sua parte — como se Gilberte tivesse vindo unicamente por minha causa por um tempo daqueles — tal coisa me parecia tão comovente como se, nos dias em que fosse convidada para uma festa, tivesse renunciado a ela para vir encontrar-me nos Campos Elísios; eu adquiria mais confiança na vitalidade e futuro de nosso afeto, que permanecia vivaz no meio do entorpecimento, da solidão e da ruína das coisas ambientes; e enquanto Gilberte me metia bolas de neve no pescoço, eu sorria com ternura à sua ideia de vir, que ao mesmo tempo me parecia um sinal de predileção, ao tolerar-me como companheiro de viagem naquele país hibernal e novo, e uma espécie de fidelidade que ela me guardava no meio da desgraça. Em breve, uma após outra, como pardais hesitantes, foram chegando as suas amigas, vultos escuros contra a neve branca. Começamos a brincar e, como aquele dia tão tristemente iniciado devia acabar em alegria, quando me aproximava, antes do jogo de barras, da amiga de voz breve que eu ouvira gritar por Gilberte no primeiro dia, ela me disse: “Não, não, é sabido que você gosta mais de jogar do lado de Gilberte, e além disso ela já lhe está fazendo sinais”. Chamava-me, com efeito, para que eu fosse para a pista de neve, para o seu campo, a que o sol, emprestando-lhe os reflexos róseos, o metálico desgaste dos brocados antigos, transformava no campo do lençol de ouro.[2]
     Aquele dia que eu tanto temera foi pelo contrário um dos poucos em que não me senti muito infeliz. 
     Pois, para mim, que só pensava em nunca passar um dia sem ver Gilberte (tanto que, uma vez que a minha avó ainda não tinha regressado à hora do jantar, não pude impedir-me de refletir que, se algum carro a tivesse esmagado, eu não poderia ir por algum tempo aos Campos Elísios; não se ama a ninguém mais quando se ama), não eram, contudo, nada felizes aqueles momentos em que me achava junto dela e que desde a véspera tão impacientemente esperara, pelos quais tremera, pelos quais teria sacrificado todo o resto; e eu bem o sabia, pois eram os únicos momentos de minha vida sobre os quais concentrava uma atenção meticulosa, encarniçada, que não descobria neles um átomo de prazer.
     Todo o tempo em que me achava longe de Gilberte, tinha necessidade de a ver, porque, procurando incessantemente representar-me a sua imagem, acabava por não mais consegui-lo e por não mais saber exatamente a que correspondia o meu amor. E depois, ela nunca me havia dito que me amava. Pelo contrário, dera muitas vezes a entender que tinha amigos que preferia a mim, que eu era um bom camarada com quem brincava de bom grado, embora muito distraído e pouco aplicado ao jogo; enfim, dera-me muitas vezes demonstrações de frieza que poderiam abalar minha crença de que eu era para ela um ser diferente dos outros, se tal crença se originasse num possível amor de Gilberte por mim e não, como acontecia, no meu amor por ela, com o que se tornava muito mais resistente, pois que isso a fazia depender da própria maneira como eu era obrigado, por uma necessidade interior, a pensar em Gilberte. Mas os sentimentos que por ela experimentava, eu próprio não lhes havia ainda declarado. É verdade que em todas as páginas de meus cadernos escrevia indefinidamente o seu nome e o seu endereço, mas, à vista daquelas vagas linhas que eu traçava sem que ela por isso pensasse em mim, que a faziam ocupar em redor de mim tanto espaço aparente sem que por isso ficasse mais ligada à minha vida, sentia-me desanimado, porque não me falavam de Gilberte, que nem sequer as veria, mas de meu próprio desejo, que pareciam apresentar-me como algo de puramente pessoal, de irreal, de fastidioso e de impotente. O mais urgente era que Gilberte e eu nos víssemos e pudéssemos fazer a confissão recíproca de nosso amor, que até esse momento não teria por assim dizer começado. As diversas razões que me tornavam tão impaciente de a ver seriam menos imperiosas, sem dúvida, para um homem maduro. Acontece mais tarde que, tornando-nos peritos no cultivo de nossos prazeres, nos contentemos com aquele que sentimos ao pensar numa mulher como eu pensava em Gilberte, sem nos inquietarmos por saber se essa imagem corresponde à realidade, e também com o prazer de amar sem ter necessidade da certeza de que ela nos ama; pode ainda suceder que renunciemos ao prazer de lhe confessar nossa inclinação por ela, a fim de manter mais vívida a inclinação que ela tem por nós, imitando esses jardineiros japoneses que, para obter uma flor mais bela, lhe sacrificam várias outras. Mas no tempo em que eu amava Gilberte, julgava ainda que o amor existia realmente fora de nós; que, permitindo, quando muito, que afastássemos os obstáculos, oferecia as suas venturas numa ordem à qual não se era livre de mudar coisa alguma; parecia-me que se eu, por conta própria, houvesse substituído a doçura da confissão pelo dissimulo da indiferença, ter-me-ia privado de uma das alegrias com que mais sonhara e também fabricado, à minha guisa, um amor fictício e sem valor, sem comunicação com o verdadeiro, renunciando assim a seguir-lhe os caminhos misteriosos e preexistentes.
     Mas quando chegava aos Campos Elísios — e logo iria confrontar meu amor, para lhe fazer as necessárias retificações, com a sua causa viva, independente de mim —, desde que me via na presença daquela Gilberte Swann com quem contara para refrescar as imagens que minha memória fatigada não mais encontrava, daquela Gilberte Swann com quem ontem brincara, e que um instinto cego acabava de fazer-me saudar e reconhecer, um instinto como esse que, na marcha, nos põe um pé diante do outro antes que tenhamos tempo de pensar, logo tudo se passava como se ela e a menina que era objeto de meus sonhos fossem duas criaturas diferentes. Por exemplo, se desde a véspera trazia eu na memória dois olhos vivos em faces cheias e brilhantes, o rosto de Gilberte me oferecia agora com insistência alguma coisa de que precisamente não me havia lembrado, certo afilamento do nariz que, associando-se instantaneamente a outros traços, tomava a importância desses caracteres que em história natural definem uma espécie, e transmutava-a numa menina do gênero das de focinho pontudo. Enquanto me dispunha a aproveitar aquele almejado instante para entregar-me, sobre a imagem de Gilberte que eu preparara antes de vir e que não encontrava mais em minha cabeça, à revisão que me permitiria, nas longas horas de solidão, ter certeza de que era mesmo Gilberte que eu recordava, de que era mesmo o meu amor por Gilberte que eu aumentava pouco a pouco como uma obra em composição, ela me jogava uma bola; e como o filósofo idealista cujo corpo se dá conta do mundo exterior em cuja realidade sua inteligência não acredita, o mesmo eu que me fizera cumprimentá-la antes de a ter identificado, apressava-se em fazer-me apanhar a bola que ela me passava (como se ela fosse uma camarada com quem viera jogar, e não uma alma irmã a quem viera reunir-me), fazia-me dizer-lhe por educação, até a hora da despedida, mil frases amáveis e insignificantes, impedindo-me assim de guardar o silêncio durante o qual poderia tocar na imagem urgente e extraviada ou de lhe dizer as palavras que imprimiriam a nosso amor o progresso decisivo e que eu sempre me via obrigado a adiar para a tarde seguinte. No entanto, ainda havia algum progresso. Um dia em que fôramos com Gilberte até a tenda de nossa vendedora, sempre muito amável conosco — pois era dela que o sr. Swann comprava o seu pão de especiarias, o qual consumia em grande quantidade, como regime, por sofrer de um eczema étnico e da prisão de ventre dos Profetas —, Gilberte mostrava-me, a rir, dois meninos que eram como o pequeno colorista e o pequeno naturalista dos livros infantis. Pois um não queria saber de um pirulito vermelho porque preferia o violeta, e o outro, com lágrimas nos olhos, recusava a ameixa que a criada queria comprar, porque, acabou por dizer num tom apaixonado: “Gosto mais da outra ameixa, porque tem um bicho!”. Comprei duas bolitas de um sou. E contemplava com admiração, luminosas e cativas numa vasilha isolada, as bolitas de ágata que me pareciam uma preciosidade, porque eram sorridentes e loiras como as raparigas e porque custavam cinquenta cêntimos cada uma. Gilberte, a quem davam muito mais dinheiro que a mim, perguntou-me qual delas eu achava mais bonita. Tinham a transparência e o matiz da vida. Não desejaria o sacrifício de nenhuma. Gostaria que ela pudesse comprá-las, libertá-las todas. No entanto, designei-lhe uma que tinha a cor de seus olhos. Gilberte a apanhou, procurou-lhe o raio dourado, acariciou-a, pagou o seu resgate, mas em seguida entregou-me a sua cativa, dizendo: “Tome, é sua, guarde-a como lembrança minha”.
     De outra feita, sempre preocupado com o desejo de ouvir a Berma numa peça clássica, perguntei-lhe se ela não possuía uma brochura em que Bergotte falava de Racine, e que já não se encontrava nas livrarias. Pediu-me que lhe lembrasse o título exato, e na mesma noite lhe dirigi um telegrama, escrevendo no envelope aquele nome de Gilberte Swann que tantas vezes traçara em meus cadernos. No dia seguinte ela me trouxe, num pacote atado com fitas cor de malva e selado a lacre branco, a brochura que mandara procurar. “Veja bem que é mesmo o que me pediu”, disse ela, tirando do regalo o telegrama que eu lhe mandara. Mas no endereço daquele pneumático — que ainda ontem não era nada mais que um bilhete expresso que eu lhe escrevera, e que, depois que um mensageiro o entregara ao porteiro de Gilberte e um criado o levara até seu quarto, se havia tornado essa coisa sem preço, um dos expressos que ela recebera naquele dia — tive dificuldade em reconhecer as linhas vagas e solitárias de minha letra sob os círculos impressos que lhe apusera o correio, sob as inscrições que acrescentara a lápis um dos carteiros, signos de realização efetiva, selos do mundo exterior, roxos anéis simbólicos da vida, que pela primeira vez vinham esposar, manter, reanimar, alegrar meu sonho.

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[1] O Journal des Débats politiques et littéraires foi fundado em 1789. Jornal republicano conservador, moderado e respeitável, ele se torna “republicano e liberal” em 1895 e desaparece em 1944. [n. e.]
[2] Referência ao Camp du Drap d’Or, lugar de um célebre encontro entre o rei francês Francisco I e o rei inglês Henrique III, que tentavam consolidar uma aliança contra Carlos V. Lembre-se que o tema dessa rivalidade está presente no primeiro parágrafo do livro. [n. e.]


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