em busca do tempo perdido
volume I
No Caminho de Swann
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
nomes de terras: o nome
IV(b)
continuando...
E, ai de mim, proibiu também de modo absoluto, que me deixassem ir ao teatro ouvir a Berma; a artista sublime, em quem Bergotte achava gênio, fazendo-me conhecer alguma coisa que era talvez tão importante e tão belo, ter-me-ia consolado de não haver ido a Florença e a Veneza, de não ir a Balbec. Deviam contentar-se em enviar-me todos os dias aos Campos Elísios, sob a vigilância de uma pessoa que me impedisse de fatigar-me, e que no caso foi Françoise, que entrara a nosso serviço desde a morte de tia Léonie. Isso de ir aos Campos Elísios foi-me uma coisa insuportável. Se ao menos Bergotte os tivesse descrito nalgum de seus livros, por certo eu desejaria conhecê-los, como todas as coisas cujo “duplo” tinham começado por introduzir-me na imaginação. Ela as aquecia, fazia-as viver, lhes dava uma personalidade, e eu desejava reencontrá-las no mundo real; mas, naquele jardim público, nada se ligava a meus sonhos.
ao senhor gaston calmette
como um testemunho de profundo e afetuoso reconhecimento
— marcel proust
nomes de terras: o nome
continuando...
E, ai de mim, proibiu também de modo absoluto, que me deixassem ir ao teatro ouvir a Berma; a artista sublime, em quem Bergotte achava gênio, fazendo-me conhecer alguma coisa que era talvez tão importante e tão belo, ter-me-ia consolado de não haver ido a Florença e a Veneza, de não ir a Balbec. Deviam contentar-se em enviar-me todos os dias aos Campos Elísios, sob a vigilância de uma pessoa que me impedisse de fatigar-me, e que no caso foi Françoise, que entrara a nosso serviço desde a morte de tia Léonie. Isso de ir aos Campos Elísios foi-me uma coisa insuportável. Se ao menos Bergotte os tivesse descrito nalgum de seus livros, por certo eu desejaria conhecê-los, como todas as coisas cujo “duplo” tinham começado por introduzir-me na imaginação. Ela as aquecia, fazia-as viver, lhes dava uma personalidade, e eu desejava reencontrá-las no mundo real; mas, naquele jardim público, nada se ligava a meus sonhos.
Um dia, como me aborrecesse em nosso costumeiro lugar junto ao carrossel, Françoise
levara-me em excursão — além da fronteira que guardam a intervalos iguais os
pequenos bastiões das vendedoras de balas — naquelas regiões vizinhas mas
estrangeiras, onde as caras são desconhecidas, por onde passa o carro das cabras; depois
voltara para apanhar as suas coisas da cadeira junto ao maciço de loureiros; enquanto ela
não vinha, eu explorava o vasto campo definhado e raso, amarelecido pelo sol, e em
cujo fundo há uma fonte dominada por uma estátua, quando, da alameda, dirigindo-se a
uma menina de cabelos ruivos que jogava peteca diante da fonte, uma outra, que punha
o chapéu e guardava a raqueta, gritou-lhe com voz breve: “Adeus, Gilberte, vou-me
embora; não te esqueças de que esta noite iremos à tua casa depois do jantar”. Esse nome
de Gilberte passou por mim, evocando tanto mais a existência daquela a quem
designava, visto que não a nomeava apenas como a um ausente de quem se fala, mas
interpelava-a; também passou por mim em ação, por assim dizer, com uma força
acrescida pela curva da sua trajetória e a proximidade de seu objetivo — transportando
consigo, eu o sentia, o conhecimento, as noções que tinha daquela a quem era dirigido
não eu, mas a amiga que a chamava, tudo o que, enquanto o pronunciava, ela revia, ou
pelo menos possuía na memória, da sua intimidade cotidiana, das visitas que trocavam,
de todo aquele desconhecido ainda mais inacessível e doloroso para mim por ser tão
familiar e manejável para aquela feliz criatura, que com ele me tocava sem que eu lhe
pudesse penetrar e que o lançava em pleno ar, num grito —, deixando já flutuar no
espaço a emanação deliciosa (que fizera desprender-se, tocando-os com precisão, de
alguns pontos invisíveis da vida da filha de Swann), da próxima noite, tal como seria,
após o jantar, em casa dela, formando, passageiro celeste no meio das crianças e das
criadas, uma nuvenzinha de uma cor preciosa, igual à que, arqueada acima de um belo
jardim de Poussin, reflete minuciosamente como uma nuvem de ópera, cheia de cavalos
e de carros, alguma aparição da vida dos deuses — lançando enfim, sobre aquele
gramado ralo, no sítio em que ele era ao mesmo tempo um trecho de relva crestada e um
momento da tarde da ruiva jogadora de peteca (que não cessou de arremessá-la e apará-la
até que a chamasse uma governanta de pluma azul no chapéu), uma pequena faixa
maravilhosa e cor de heliotrópio, impalpável como um reflexo e superposta como um
tapete, sobre o qual não me cansava de passear meus passos demorados, nostálgicos e
profanadores, enquanto Françoise me gritava: “Vamos! Abotoe o casaco e raspemo-nos”, quando pela primeira vez notei com irritação que a sua linguagem era vulgar e ela
não tinha — que tristeza! — pluma azul no chapéu.
Ao menos voltaria ela aos Campos Elísios? No dia imediato não estava; mas a vi nos
dias seguintes; rondava todo o tempo pelo local onde ela brincava com as amigas, de
sorte que uma vez em que não tinham número suficiente para uma partida de barras, ela
mandou perguntar se eu queria completar o seu bando, e desde então brinquei com
Gilberte sempre que ela estava presente. Mas não era todos os dias: às vezes não podia
vir por causa dos estudos, do catecismo, de uma merenda, de toda aquela vida separada
da minha que por duas vezes, condensada no nome de Gilberte, sentira passar tão
dolorosamente por mim, na ladeira de Combray e no gramado dos Campos Elísios.
Naqueles dias, avisava de antemão que não a veriam; se era por causa dos estudos dizia:
“Que maçada! Não poderei vir amanhã, vocês todos vão divertir-se sem mim”, com um
ar pesaroso que me consolava um pouco; mas, por outro lado, se era convidada para
alguma festa e eu, ignorando-o, lhe perguntava se não viria brincar, ela respondia:
“Espero que não! Creio que mamãe me deixará ir à festa de minha amiga”. Pelo menos
naqueles dias, eu sabia que não a veria, mas outras vezes sua mãe a levava de improviso
a fazer compras, e no dia seguinte ela dizia: “Ah!, sim, saí com mamãe”, como uma coisa
muito natural e que não fosse para alguém a maior desgraça possível. Havia também os
dias de mau tempo, em que a sua governanta, que temia a chuva, não queria levá-la aos
Campos Elísios.
Assim, quando o céu se apresentava duvidoso, eu desde a manhã não cessava de
interrogá-lo e levava em conta os mínimos detalhes. Se via a senhora que morava em
frente pôr o seu chapéu junto à janela, dizia comigo: “Aquela senhora vai sair; portanto,
está fazendo um tempo em que se pode sair; por que Gilberte não poderá fazer como
essa senhora?”. Mas o tempo ensombrecia, dizia minha mãe que ainda podia melhorar,
que bastava para isso um raio de sol, mas que mais provavelmente choveria; e se
chovesse, para que ir aos Campos Elísios? Assim, depois do almoço, os meus olhares
ansiosos não mais deixavam o céu incerto e nublado. Ele permanecia sombrio. Diante da
janela a sacada era cinzenta. De súbito, sobre o seu tristonho pavimento de pedra, eu não
via uma cor menos baça, mas sentia como que um esforço para uma cor menos baça, a
pulsação de um raio hesitante que quisesse libertar a sua luz. Um instante após, a sacada
estava pálida e luminosa como uma água matinal, e mil reflexos dos ferros de suas
grades tinham vindo pousar ali. Um sopro de vento os dispersava, a pedra se
ensombrecera de novo, mas, como que domesticados, eles voltavam; a pedra recomeçava
imperceptivelmente a clarear e, por um desses crescendos contínuos como os que, em
música, no fim de uma abertura, levam uma única nota até o fortíssimo supremo,
fazendo-a passar rapidamente por todos os graus intermediários, eu a via alcançar esse
ouro inalterável e fixo dos belos dias, sobre o qual as recortadas sombras dos lavores de
ferro se destacavam em negro como uma vegetação caprichosa, como uma tenuidade no
delineamento dos menores detalhes que parecia trair uma consciência aplicada, uma
satisfação de artista, e com tal relevo, tal aveludado no repouso de suas massas sombrias
e felizes que na verdade aqueles reflexos largos e folhudos que repousavam naquele
lago de sol pareciam saber que eram penhores de calma e de ventura.
Hera instantânea, flora parietária e fugitiva! A mais incolor, a mais triste, pensam
muitos, das que podem trepar pelo muro ou decorar a janela; mas, para mim, de todas a
mais cara, desde o dia em que aparecera em nosso balcão, como a própria sombra da
presença de Gilberte, que já estava talvez nos Campos Elísios e, logo que eu chegasse,
me diria: “Vamos começar em seguida o jogo de barras, você está do meu lado”; hera
frágil, que um sopro arrebatava, mas também em relação tão íntima não com a estação,
mas com o minuto; promessa da felicidade imediata que o dia nega ou concede, e
portanto da felicidade imediata por excelência, a felicidade do amor; mais suave, mais
quente sobre a pedra, do que o próprio musgo; tão vivaz que lhe basta um raio para
nascer, fazendo brotar a alegria, mesmo no coração do inverno.
E até nesses dias em que desaparece qualquer outra vegetação, em que o belo ouro
verde que envolve o tronco das velhas árvores fica oculto sob a neve, quando esta
parava, mas o tempo continuava muito sombrio para eu esperar que Gilberte saísse, eis
que de súbito, fazendo minha mãe dizer: “Olha! Acaba de clarear; quem sabe se vocês
não poderiam ir mesmo aos Campos Elísios”, o sol recém-surgido, sobre o manto de
neve que cobria a sacada, entrelaçava fios de ouro e bordava reflexos negros. Naquele
dia não encontrávamos ninguém, ou só alguma das meninas prestes a partir, que me
afiançava que Gilberte não viria. As cadeiras, abandonadas pela assembleia majestosa
mas friorenta das governantas, estavam vazias. Apenas, perto do gramado, achava-se
sentada uma senhora de certa idade, que vinha por qualquer tempo que fizesse sempre
trajada do mesmo modo magnífico e sombrio, e a quem naquela época, se o trato fosse
possível, eu teria sacrificado as maiores vantagens de minha vida futura, só para
travarmos relações pessoais. Pois Gilberte ia todos os dias cumprimentá-la; ela pedia a
Gilberte notícias de “seu amor de mamãe”; e parecia-me que, se a conhecesse, eu seria
para Gilberte alguém muito diferente, alguém que conhecia as relações de seus pais.
Enquanto os netos brincavam mais além, ela lia os Débats, a que chamava “os meus
velhos Débats”[1] e, por estilo aristocrático, dizia, referindo-se ao guarda ou à
alugadora de cadeiras: “Meu velho amigo o guarda”, “a alugadora de cadeiras e eu, que
somos velhas amigas”. Françoise sentia muito frio para poder ficar parada, e fomos até
a ponte da Concórdia ver o Sena congelado, do qual todos e até as crianças se
aproximavam sem medo como de uma imensa baleia encalhada e indefesa, que fossem
esquartejar. Voltávamos aos Campos Elísios; eu me consumia de dor entre os imóveis
cavalos de pau e o relvado todo branco, preso na rede negra dos caminhos que haviam
limpado da neve e onde a estátua agora tinha na mão uma vara adicional de gelo que
parecia explicar o seu gesto. Por sua vez a velha senhora dobrou os Débats, perguntou as
horas a uma ama que passava e a quem agradeceu, dizendo-lhe: “É muito amável da sua
parte”; depois, pedindo ao zelador que fosse dizer a seus netos que voltassem, que ela
estava com frio, acrescentou: “Será muita bondade sua. Creia que me sinto confusa”. De
súbito, o ar rasgou-se: entre o teatro de fantoches e o circo, no horizonte embelecido,
sobre o céu entreaberto, eu acabava de avistar, como um signo fabuloso, a pluma azul de
Mademoiselle. E Gilberte já vinha correndo em disparada na minha direção, radiante e
afogueada, com seu gorro de peles, animada pelo frio, a demora e o desejo do jogo; um
pouco antes de alcançar-me, deixou-se deslizar sobre o gelo e, ou para conservar melhor
o equilíbrio, ou porque achasse mais gracioso, ou para afetar a atitude de uma
patinadora, foi de braços abertos que avançou sorrindo, como se quisesse receber-me
entre eles. “Bravo! Bravo! Isso é que está bem, isso é que eu diria, como vocês, que é
chique, que é fibra, se não fosse de uma outra época, do Antigo Regime”, exclamou a
velha dama, tomando a palavra em nome dos Campos Elísios silenciosos, para agradecer
a Gilberte por ter vindo sem deixar-se intimidar com o tempo. “Você é como eu, fiel
apesar de tudo aos nossos Campos Elísios; nós somos duas valentes. Se eu dissesse que
gosto dos Campos Elísios, mesmo assim? Essa neve, você vai rir de mim, essa neve me
faz pensar em arminho!” E a velha dama se pôs a rir.
O primeiro daqueles dias — aos quais a neve, imagem das potências que podiam
privar-me de ver Gilberte, dava a tristeza de um dia de separação e até o aspecto de um
dia de partida, porque mudava a face e quase impedia a utilização do lugar habitual de
nossos únicos encontros, agora transformado, todo envolto em capas — aquele dia, no
entanto, fez progredir o meu amor, pois foi como um primeiro pesar que ela houvesse
partilhado comigo. Do nosso bando, só havia nós dois, e ser assim o único que estava
com ela constituía não só um começo de intimidade, mas também da sua parte — como
se Gilberte tivesse vindo unicamente por minha causa por um tempo daqueles — tal
coisa me parecia tão comovente como se, nos dias em que fosse convidada para uma
festa, tivesse renunciado a ela para vir encontrar-me nos Campos Elísios; eu adquiria
mais confiança na vitalidade e futuro de nosso afeto, que permanecia vivaz no meio do
entorpecimento, da solidão e da ruína das coisas ambientes; e enquanto Gilberte me
metia bolas de neve no pescoço, eu sorria com ternura à sua ideia de vir, que ao mesmo
tempo me parecia um sinal de predileção, ao tolerar-me como companheiro de viagem
naquele país hibernal e novo, e uma espécie de fidelidade que ela me guardava no meio
da desgraça. Em breve, uma após outra, como pardais hesitantes, foram chegando as
suas amigas, vultos escuros contra a neve branca. Começamos a brincar e, como aquele
dia tão tristemente iniciado devia acabar em alegria, quando me aproximava, antes do
jogo de barras, da amiga de voz breve que eu ouvira gritar por Gilberte no primeiro
dia, ela me disse: “Não, não, é sabido que você gosta mais de jogar do lado de Gilberte,
e além disso ela já lhe está fazendo sinais”. Chamava-me, com efeito, para que eu fosse
para a pista de neve, para o seu campo, a que o sol, emprestando-lhe os reflexos róseos,
o metálico desgaste dos brocados antigos, transformava no campo do lençol de
ouro.[2]
Aquele dia que eu tanto temera foi pelo contrário um dos poucos em que não me
senti muito infeliz.
Pois, para mim, que só pensava em nunca passar um dia sem ver Gilberte (tanto
que, uma vez que a minha avó ainda não tinha regressado à hora do jantar, não pude
impedir-me de refletir que, se algum carro a tivesse esmagado, eu não poderia ir por
algum tempo aos Campos Elísios; não se ama a ninguém mais quando se ama), não
eram, contudo, nada felizes aqueles momentos em que me achava junto dela e que desde
a véspera tão impacientemente esperara, pelos quais tremera, pelos quais teria sacrificado
todo o resto; e eu bem o sabia, pois eram os únicos momentos de minha vida sobre os
quais concentrava uma atenção meticulosa, encarniçada, que não descobria neles um
átomo de prazer.
Todo o tempo em que me achava longe de Gilberte, tinha necessidade de a ver,
porque, procurando incessantemente representar-me a sua imagem, acabava por não
mais consegui-lo e por não mais saber exatamente a que correspondia o meu amor. E
depois, ela nunca me havia dito que me amava. Pelo contrário, dera muitas vezes a
entender que tinha amigos que preferia a mim, que eu era um bom camarada com quem
brincava de bom grado, embora muito distraído e pouco aplicado ao jogo; enfim, dera-me muitas vezes demonstrações de frieza que poderiam abalar minha crença de que eu
era para ela um ser diferente dos outros, se tal crença se originasse num possível amor
de Gilberte por mim e não, como acontecia, no meu amor por ela, com o que se tornava
muito mais resistente, pois que isso a fazia depender da própria maneira como eu era
obrigado, por uma necessidade interior, a pensar em Gilberte. Mas os sentimentos que
por ela experimentava, eu próprio não lhes havia ainda declarado. É verdade que em
todas as páginas de meus cadernos escrevia indefinidamente o seu nome e o seu
endereço, mas, à vista daquelas vagas linhas que eu traçava sem que ela por isso pensasse
em mim, que a faziam ocupar em redor de mim tanto espaço aparente sem que por isso
ficasse mais ligada à minha vida, sentia-me desanimado, porque não me falavam de
Gilberte, que nem sequer as veria, mas de meu próprio desejo, que pareciam apresentar-me como algo de puramente pessoal, de irreal, de fastidioso e de impotente. O mais
urgente era que Gilberte e eu nos víssemos e pudéssemos fazer a confissão recíproca de
nosso amor, que até esse momento não teria por assim dizer começado. As diversas
razões que me tornavam tão impaciente de a ver seriam menos imperiosas, sem dúvida,
para um homem maduro. Acontece mais tarde que, tornando-nos peritos no cultivo de
nossos prazeres, nos contentemos com aquele que sentimos ao pensar numa mulher
como eu pensava em Gilberte, sem nos inquietarmos por saber se essa imagem
corresponde à realidade, e também com o prazer de amar sem ter necessidade da certeza
de que ela nos ama; pode ainda suceder que renunciemos ao prazer de lhe confessar
nossa inclinação por ela, a fim de manter mais vívida a inclinação que ela tem por nós,
imitando esses jardineiros japoneses que, para obter uma flor mais bela, lhe sacrificam
várias outras. Mas no tempo em que eu amava Gilberte, julgava ainda que o amor
existia realmente fora de nós; que, permitindo, quando muito, que afastássemos os
obstáculos, oferecia as suas venturas numa ordem à qual não se era livre de mudar coisa
alguma; parecia-me que se eu, por conta própria, houvesse substituído a doçura da
confissão pelo dissimulo da indiferença, ter-me-ia privado de uma das alegrias com que
mais sonhara e também fabricado, à minha guisa, um amor fictício e sem valor, sem
comunicação com o verdadeiro, renunciando assim a seguir-lhe os caminhos
misteriosos e preexistentes.
Mas quando chegava aos Campos Elísios — e logo iria confrontar meu amor, para
lhe fazer as necessárias retificações, com a sua causa viva, independente de mim —,
desde que me via na presença daquela Gilberte Swann com quem contara para refrescar
as imagens que minha memória fatigada não mais encontrava, daquela Gilberte Swann
com quem ontem brincara, e que um instinto cego acabava de fazer-me saudar e
reconhecer, um instinto como esse que, na marcha, nos põe um pé diante do outro antes
que tenhamos tempo de pensar, logo tudo se passava como se ela e a menina que era
objeto de meus sonhos fossem duas criaturas diferentes. Por exemplo, se desde a
véspera trazia eu na memória dois olhos vivos em faces cheias e brilhantes, o rosto de
Gilberte me oferecia agora com insistência alguma coisa de que precisamente não me
havia lembrado, certo afilamento do nariz que, associando-se instantaneamente a outros
traços, tomava a importância desses caracteres que em história natural definem uma
espécie, e transmutava-a numa menina do gênero das de focinho pontudo. Enquanto me
dispunha a aproveitar aquele almejado instante para entregar-me, sobre a imagem de
Gilberte que eu preparara antes de vir e que não encontrava mais em minha cabeça, à
revisão que me permitiria, nas longas horas de solidão, ter certeza de que era mesmo
Gilberte que eu recordava, de que era mesmo o meu amor por Gilberte que eu
aumentava pouco a pouco como uma obra em composição, ela me jogava uma bola; e
como o filósofo idealista cujo corpo se dá conta do mundo exterior em cuja realidade
sua inteligência não acredita, o mesmo eu que me fizera cumprimentá-la antes de a ter
identificado, apressava-se em fazer-me apanhar a bola que ela me passava (como se ela
fosse uma camarada com quem viera jogar, e não uma alma irmã a quem viera reunir-me), fazia-me dizer-lhe por educação, até a hora da despedida, mil frases amáveis e
insignificantes, impedindo-me assim de guardar o silêncio durante o qual poderia tocar
na imagem urgente e extraviada ou de lhe dizer as palavras que imprimiriam a nosso
amor o progresso decisivo e que eu sempre me via obrigado a adiar para a tarde
seguinte. No entanto, ainda havia algum progresso. Um dia em que fôramos com
Gilberte até a tenda de nossa vendedora, sempre muito amável conosco — pois era dela
que o sr. Swann comprava o seu pão de especiarias, o qual consumia em grande
quantidade, como regime, por sofrer de um eczema étnico e da prisão de ventre dos
Profetas —, Gilberte mostrava-me, a rir, dois meninos que eram como o pequeno
colorista e o pequeno naturalista dos livros infantis. Pois um não queria saber de um
pirulito vermelho porque preferia o violeta, e o outro, com lágrimas nos olhos,
recusava a ameixa que a criada queria comprar, porque, acabou por dizer num tom
apaixonado: “Gosto mais da outra ameixa, porque tem um bicho!”. Comprei duas
bolitas de um sou. E contemplava com admiração, luminosas e cativas numa vasilha
isolada, as bolitas de ágata que me pareciam uma preciosidade, porque eram sorridentes
e loiras como as raparigas e porque custavam cinquenta cêntimos cada uma. Gilberte, a
quem davam muito mais dinheiro que a mim, perguntou-me qual delas eu achava mais
bonita. Tinham a transparência e o matiz da vida. Não desejaria o sacrifício de nenhuma.
Gostaria que ela pudesse comprá-las, libertá-las todas. No entanto, designei-lhe uma que
tinha a cor de seus olhos. Gilberte a apanhou, procurou-lhe o raio dourado, acariciou-a,
pagou o seu resgate, mas em seguida entregou-me a sua cativa, dizendo: “Tome, é sua,
guarde-a como lembrança minha”.
De outra feita, sempre preocupado com o desejo de ouvir a Berma numa peça
clássica, perguntei-lhe se ela não possuía uma brochura em que Bergotte falava de
Racine, e que já não se encontrava nas livrarias. Pediu-me que lhe lembrasse o título
exato, e na mesma noite lhe dirigi um telegrama, escrevendo no envelope aquele nome
de Gilberte Swann que tantas vezes traçara em meus cadernos. No dia seguinte ela me
trouxe, num pacote atado com fitas cor de malva e selado a lacre branco, a brochura que
mandara procurar. “Veja bem que é mesmo o que me pediu”, disse ela, tirando do
regalo o telegrama que eu lhe mandara. Mas no endereço daquele pneumático — que ainda
ontem não era nada mais que um bilhete expresso que eu lhe escrevera, e que, depois
que um mensageiro o entregara ao porteiro de Gilberte e um criado o levara até seu
quarto, se havia tornado essa coisa sem preço, um dos expressos que ela recebera
naquele dia — tive dificuldade em reconhecer as linhas vagas e solitárias de minha letra
sob os círculos impressos que lhe apusera o correio, sob as inscrições que acrescentara a
lápis um dos carteiros, signos de realização efetiva, selos do mundo exterior, roxos
anéis simbólicos da vida, que pela primeira vez vinham esposar, manter, reanimar,
alegrar meu sonho.
continua na página 255...
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Leia também:
Volume 1
No Caminho de Swann (IV - nomes de terras: o nome, E, ai de mim, proibiu - b)
Volume 2
Volume 3
Volume 4
Volume 5
Volume 6
Volume 7
________________
[1] O Journal des Débats politiques et littéraires foi fundado em 1789. Jornal republicano
conservador, moderado e respeitável, ele se torna “republicano e liberal” em 1895 e
desaparece em 1944. [n. e.]
[2] Referência ao Camp du Drap d’Or, lugar de um célebre encontro entre o rei
francês Francisco I e o rei inglês Henrique III, que tentavam consolidar uma aliança
contra Carlos V. Lembre-se que o tema dessa rivalidade está presente no primeiro
parágrafo do livro. [n. e.]
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