O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Terceira Parte
1.continuando...
Todos riram, outra vez.
- Individual, naturalmente, individual! - disseram, rindo, Aleksándra e Adelaída.
- Deixe que lhe previna de novo, Evguénii Pávlovitch - disse o Príncipe Chtch... -
que a sua brincadeira continua, e muito, chocha.
- Que é que o senhor acha,
príncipe? - prosseguiu Evguénii Pávlovitch, sem escutar, mas vigiando os olhos
com que Míchkin, muito sério e interessado, o encarava - Acha o senhor que é
um caso individual, ou genérico? E devo confessar que foi por sua causa que
pensei nisso.
- Não. Individual, não! - respondeu o príncipe, com gentileza, mas
firmemente.
- Mas, palavra de honra, Liév Nikoláievitch! - exclamou o Príncipe Chtch...,
desapontado - Pois não vê o senhor que ele o quer apanhar em falso? Ele está
troçando e quer brincar com o senhor!
- Pensei que Evguénii Pávlovitch estivesse
falando sério - respondeu Míchkin, enrubescendo e abaixando os olhos.
- Meu
caro príncipe - continuou o Príncipe Chtch... lembre-se do que estivemos a
conversar uma vez, deve haver uns três meses. Disse-me o senhor que se podiam
apontar notáveis e talentosos advogados em nossos tribunais recentemente
criados! E que muitíssimos veredictos altamente magistrais tinham sido
exarados! Quanto isso o alegrava e como eu estava satisfeito de ver esse prazer!
Dizia-me o senhor que nos tínhamos de nos orgulhar do nosso
Direito!... Logo, esta inepta defesa, este estranho argumento naturalmente, uma
casual exceção, uma entre mil certas.
O príncipe pensou um momento, e com um ar de perfeita convicção, apesar de
se pôr a falar serenamente e até um pouco tímido, respondeu:
- Apenas quis
significar que uma perversão de ideias e de concepções - conforme se expressou
Evguénii Pávlovitch - com a qual nos defrontamos muitas vezes, é, infelizmente,
muito mais a regra geral de que um caso excepcional. E tanto que se esse não
fosse um fenômeno tão geral talvez não fosse possível haver tantos crimes como
esse.
- Crimes impossíveis? Mas lhe afirmo que crimes destes e talvez até ainda
mais terríveis, existiram no passado e em todos os tempos, e não só entre nós
senão por toda a parte e, na minha opinião, ocorrerão muitas e muitas vezes
durante muito tempo. A diferença está em que havia muito menos publicidade na
Rússia, outrora, ao passo que agora se começou a falar e mesmo a escrever
sobre tais casos a ponto tal que é como se esses criminosos fossem um fenômeno
recente. Eis como advém o seu engano, engano extremamente ingênuo, príncipe,
fique sabendo - disse o Príncipe Chtch... com um sorriso irônico.
- Não deixo de reconhecer que houvesse outrora muitíssimos crimes e bem
terríveis. Estive ultimamente visitando prisões e consegui travar conhecimento
com alguns criminosos convictos. Há mesmo criminosos muito maiores do que
esse, homens que cometeram uma dúzia de assassinatos e que todavia nem
sentem o menor remorso. Mas vou dizer o que observei: reparei que o mais feroz
e impenitente assassino, apesar de tudo, sabe que é um "criminoso”, isto é,
considera em sua consciência que agiu mal, mesmo que não se arrependa.
Verifiquei tal, em um por um. Ao passo que aqueles, de que Evguénii Pávlovitch
estava falando, se recusam a se considerar criminosos, e acham que estão no seu
direito - e que agiram certo; esta é a atitude deles. E eis em que consiste a
diferença. E observe, são todos eles jovens, isto é, estão na idade em que se pode
mais fácil e inexoravelmente tombar sob a influência de ideias pervertidas.
O Príncipe Chtch... parou de sorrir, e ficou escutando Míchkin com um ar espantado. Aleksándra, que ia dizer qualquer coisa, mudou de ideia, como se um pensamento especial a tivesse detido. Evguénii Pávlovitch olhava para Míchkin com verdadeiro pasmo, sem vestígio de gracejo.
O Príncipe Chtch... parou de sorrir, e ficou escutando Míchkin com um ar espantado. Aleksándra, que ia dizer qualquer coisa, mudou de ideia, como se um pensamento especial a tivesse detido. Evguénii Pávlovitch olhava para Míchkin com verdadeiro pasmo, sem vestígio de gracejo.
- Mas, meu bom senhor, diga lá
por que o está olhando tão surpreso? - interveio Lizavéta Prokófievna,
inesperadamente - Por que cuidava que ele não
fosse tão inteligente quanto o senhor e não pudesse raciocinar como o senhor
pode?
- Nunca pensei nisso, absolutamente - disse Evguénii Pávlovitch. - Apenas, como
é que, desculpe a pergunta, já que vê tão claramente, como é que o senhor,
desculpe-me outra vez, não notou a mesma perversão de ideias e de convicções
morais naquele estranho caso.., o outro dia, lembra-se.., o caso de Burdóvskii
lembra-se? É exatamente a mesma coisa. Parece-me que naquela ocasião não
viu isso, absolutamente.
- Mas consinta que lhe diga, meu caro - interrompeu Lizavéta Prokófievna,
esquentando-se -, que todos nós notamos. Aqui estamos sentados, julgando-nos
superiores a ele. Pois recebeu uma carta de um desses daquela noite, do pior do
bloco, o escrofuloso, lembras-te, Aleksándra? E na carta pede perdão, lógico que
à sua maneira, naturalmente, e declara que rompeu com os companheiros que o
instigaram naquela ocasião, lembraste, Aleksándra? E que deposita total
confiança no príncipe. Nós, porém, não tivemos carta, embora estivéssemos de
nariz voltado para ele.
- E Ippolít acaba de se mudar para a nossa vila, também - contou Kólia.
- O quê?
Já está lá? - perguntou o príncipe, afogueado.
- Chegou logo que o senhor saiu
com Lizavéta Prokófievna. Eu o levei.
- Bem, pois eu aposto uma coisa - disse
Lizavéta Prokófievna, inflamando- se repentinamente, esquecida já de que
estivera elogiando o príncipe. - Aposto que este aqui foi vê-lo a noite passada na
sua água-furtada e lhe pediu perdão de joelhos, a fim de que esse rancoroso
espalha-brasas se pudesse mudar para a sua vila. Você não esteve lá, ontem?
Você mesmo confessou. É ou não é verdade? E não se ajoelhou?
- Não fez nada disso - gritou Kólia. - Muito ao contrário. Foi Ippolít quem segurou
a mão do príncipe ontem e a beijou duas vezes. Eu vi. Foi como a entrevista
acabou, e mais, o príncipe lhe disse apenas que ele ficaria mais
confortavelmente lá na vila, concordando ele em ir logo que se sentisse melhor.
- Kólia, não precisa você... - balbuciou o príncipe, levantando-se e pegando no
chapéu - Para que há de você estar a falar nisso? Eu...
- Onde é que vai? - perguntou
Lizavéta Prokófievna, interceptando-o.
- Não se amofine, príncipe - continuou
Kólia, vivamente - Se o senhor for lá agora o incomodará. Ele ficou a dormir,
depois da viagem. Está satisfeito e - quer saber de uma coisa, príncipe? - acho até
que será melhor o senhor não ir
vê-lo hoje, senão ele torna a ficar desapontado. Ainda esta manhã me dizia que
nunca se sentira tão forte e tão bem, nestes últimos meses, como agora. Já não
tosse nem a metade do que tossia.
Notou o príncipe que Agláia deixara o seu lugar e se aproximava da mesa. Não
teve coragem de olhá-la, mas sentiu em todo o seu ser que ela o estava olhando
naquele instante e que, decerto, o estava olhando colericamente, que devia haver
indignação em seus olhos negros e que o seu rosto devia estar vermelho.
- Mas eu acho que fez mal em o fazer vir para cá, Nikolái Ardaliónovitch, se é
que se está referindo àquele rapaz tuberculoso que chorou e que nos convidou
para o seu enterro - comentou Evguénii Pávlovitch - Ele falava com tamanha
eloquência da parede da casa fronteira à sua, que certamente morrerá de
saudades dessa parede; fique certo disso.
- Tal e qual. E brigará e romperá com o
senhor e irá embora outra vez; esse é que vai ser o fim.
- e Lizavéta Prokófievna puxou para perto de si a cesta de costuras, com um ar
de dignidade, esquecendo-se de que todo o mundo se estava preparando para ir
dar um passeio.
- Lembro-me quanto ele alardeou sobre a tal parede - recomeçou Evguénii
Pávlovitch.
- E sem aquela parede ele não conseguirá morrer eloquentemente! E o diabo é
que está ansioso por uma cena de morte com bastante retórica.
- Como? -
perguntou o príncipe, que prosseguiu: - Se o senhor não o perdoar, há de ele então
morrer sem o seu perdão.. Pois olhe, ele veio para cá, por causa das árvores.
- Oh! Quanto a mim, perdoo-lhe tudo por tudo. Pode até lhe dizer isso.
- Não é
bem essa a maneira - respondeu o príncipe, mansamente, e como que com
relutância, com os olhos fixos em um ponto do assoalho, sem os levantar - O
senhor devia estar preparado para receber o perdão dele também.
- Não vejo
porquê! Que lhe fiz eu de mal?
- Se o senhor não compreende, então... Mas o
senhor compreende; ele desejava abençoar todos e que todos o abençoassem. E
era só.
- Caro príncipe - apressou-se a se interpor o Príncipe Chtch... com certa
apreensão, e trocando olhares com alguns dos demais - não é fácil atingir o paraíso
aqui na terra, mas o senhor teima em contar encontrá-lo. O paraíso é um
negócio difícil, príncipe, muito mais difícil do que parece ao seu bom
coração. O melhor é pormos o assunto de lado, senão acabaremos nos sentindo
atrapalhados também, e então...
- Vamos Ouvir música! - aconselhou Lizavéta Prokófievna com entusiasmo,
levantando-se do seu lugar espetacularmente.
Saiu; e todos seguiram o seu
exemplo.
continua página 306...
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Leia também:
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Segunda Parte
O Idiota: Terceira Parte (1d) - Todos riram, outra vez.
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