Elias Canetti
MASSAS FESTIVAS
Uma quinta espécie de massa, eu a caracterizaria como a massa festiva. Num espaço limitado, tem-se uma grande variedade de coisas, e as muitas pessoas que se movem no interior dessa área determinada podem, todas elas, compartilhar do que ali está. Os produtos, quaisquer que sejam eles, são expostos em grandes montes. Uma centena de porcos jazem atados numa fileira. Montanhas de frutas são empilhadas. Preparada em portentosos recipientes, a bebida mais apreciada espera por seus degustadores. Disponível tem-se mais do que todos juntos seriam capazes de consumir, e, afim de consumi-lo, mais e mais pessoas vão chegando. Enquanto ainda houver algo, elas se servirão; é como se a coisa jamais tivesse um fim. Há mulheres em profusão para os homens, e homens em profusão para as mulheres. Nada nem ninguém os ameaça; nada os compele à fuga; a vida e o prazer estão assegurados por toda a duração da festa. Muitas proibições e separações estão suspensas; aproximações deveras incomuns são permitidas e favorecidas. Para o indivíduo, a atmosfera não é de descarga, mas de descontração. Inexiste uma meta que seja a mesma para todos e que todos tenham de alcançar em conjunto. A própria festa é a meta, e esta já se atingiu. A densidade é bastante grande; a igualdade, por sua vez, é em boa parte aquela do arbítrio e do prazer. As pessoas se movem não com as outras, mas por entre as outras. As coisas que ali jazem aos montes e das quais as pessoas se servem constituem parte essencial da densidade: são o seu cerne. Elas são reunidas primeiro, e somente então é que os homens reúnem-se em torno delas. Anos podem ser necessários até que tudo esteja ali, e as pessoas podem ter suportado uma longa privação em troca dessa breve fartura. Vivem, porém, voltadas para esse momento, e o produzem como uma meta deliberada. Pessoas que em geral raramente se veem são solenemente convidadas em grupos. A chegada dos diversos contingentes é vigorosamente marcada, intensificando aos saltos a alegria geral.
Intervém nesse estado o sentimento de que, desfrutando
conjuntamente dessa festa, está-se cuidando para que muitas outras
ocorram no futuro. Por meio de danças rituais e representações
dramáticas, recordam-se ocasiões anteriores de natureza semelhante. A
tradição formada por estas está contida no presente da festa em curso. Quer as pessoas comemorem o promotor primordial dessas festas, o
mítico causador de todas as maravilhas de que os homens se
comprazem, os antepassados ou, como nas sociedades posteriores e mais
frias, apenas os ricos donatários — seja como for, uma futura repetição
de ocasiões semelhantes parece garantida. As festas chamam outras festas,
e, graças à densidade de coisas e pessoas, a vida se multiplica.
____________________
Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Massa (Massas Festivas)
____________________
ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
Nenhum comentário:
Postar um comentário