domingo, 16 de fevereiro de 2025

Marcel Proust - À Sombra das Moças em Flor (Ao Redor da Sra. Swann - n)

em busca do tempo perdido

volume II
À Sombra das Moças em Flor

Primeira Parte
Ao Redor da Sra. Swann


(n)

continuando...

     Experimentei a mesma surpresa que se sente quando se abre a correspondência da duquesa de Orléans, nascida princesa paladina. E a princesa Mathilde, animada de sentimentos tão franceses, sentia-os expressar com rudeza honesta, como a da Alemanha de antigamente e que herdara sem dúvida de sua mãe wurtemburguesa. Sua franqueza um tanto grosseira e quase masculina, adoçada quando ela sorria, por um lango italiano. E o conjunto desta numa toalete de tal modo à maneira do Segundo Império que, embora certamente a usasse apenas para ser fiel às modas de que gostara, parecia que a intenção de não cometer um histórico erro de cor e de corresponder à expectativa dos que dela esperavam a evocação de uma outra época. Em segredo, pediu que lhe perguntasse se havia conhecido Musset.

- Muito pouco, senhor. - deu ela, fingindo-se aborrecida, e de fato era por gracejo que tratava senhor, sendo tão íntima dele - Tive-o certa vez para jantar. Convidara-o para às sete horas. Às sete e meia, como ainda não tivesse chegado, fomos para mesa. Ele chegou às oito, cumprimentou-me, sentou-se, não abriu a boca, e foi ao jantar sem que eu tivesse ouvido o som de sua voz. Estava caindo de vergonha. Aquilo não me animou a continuar. 

     Eu e Swann estávamos um tanto à parte. 

- Espero que esta pequena assembleia não se prolongue - disse-me ele -, porque as plantas dos pés vão doer. Também não sei por que minha mulher alimenta a conversa. Depois, ela é que vai se queixar de estar cansada e eu não posso mais fazer essas paradas em pé.

     Com efeito, a Sra. Swann, que obtivera a informação dos Bontemps, dizia à princesa que o governo, enfim compreendendo sua grosseria, decidira enviar-lhe um convite para que assistisse na tribuna à visita, que Nicolau devia fazer aos Inválidos, dois dias depois. Mas a princesa que, às aparências, apesar do seu séquito, composto principalmente de artistas de letras, continuara a ser no fundo, e de cada vez que precisava agir, a Napoleão:

- Sim, madame, recebi o convite esta manhã e o mandei ao ministro, que deve tê-lo consigo agora. Disse-lhe que não precisava de convite para ir aos Inválidos. Se o governo deseja que eu vá, não estarei numa tribuna e sim, no nosso subterrâneo, onde fica o túmulo do Imperador. Não preciso de convites para tanto. Tenho minhas chaves. Entro como quiser. O governo não precisa me dizer se deseja que eu vá ou não. Mas, se eu for, será para ficar lá embaixo ou em parte alguma. 

     Naquele instante fomos saudados, eu e a Sra. Swann por um rapaz que lhe deu bom-dia sem parar e que eu não sabia se ela conhecia. Contestando uma pergunta que lhe fiz, a Sra. Swann me disse que ele lhe fora apresentado pela Sra. Bontemps, e que era agregado ao gabinete do ministro, coisa que eu ignorava. De resto, não devia vê-lo com frequência ou então não quisera tocar no seu nome, Bloch, que devia julgar pouco chique pois disse que se chamava Sr. Moreul. Assegurei-lhe que estava confundindo, que ele se chamava Bloch. A princesa recolheu a cauda do vestido, que se desenrolava para trás e que a Sra. Swann contemplava com admiração. 

- É justamente uma pele que me enviou o imperador da Rússia - disse a princesa - e, como fui visitá-lo há pouco, coloquei-a para lhe mostrar que podia servir de mantô. 
- Parece que o príncipe Luís Napoleão se engajou no exército russo; a princesa vai ficar desolada por não tê-lo mais junto a si - disse a Sra. Swann, que não reparava nos sinais de impaciência do marido. 
- Para que precisava ele disso? É como lhe disse: "Não é motivo para fazeres semelhante coisa o fato de teres um militar na família" - respondeu a princesa, fazendo com essa brusca simplicidade uma alusão a Napoleão I. 

     Swann já não se aguentava.

- Madame, eu é quem vou bancar a Alteza e pedir permissão para nos despedirmos, porém minha esposa esteve muito doente e não quero que ela fique muito tempo imóvel. 

     A Sra. Swann repetiu a reverência e a princesa teve para todos nós um sorriso divino que pareceu ter trazido do passado, dos encantos de sua juventude, dos saraus de Compiegne e que correu, intacto e doce, pelo rosto há pouco rabugento, e depois se afastou seguida das duas damas de companhia que só tinham feito, como intérpretes, como amas-secas ou enfermeiras, pontuar nossa conversação de frases insignificantes e de explicações inúteis. 

- Você deveria ir inscrever seu nome na casa dela, um dia destes - disse-me a Sra. Swann - Não se dobra a ponta do cartão para tais royautés, como dizem os ingleses, mas ela o convidará se você se inscrever.

     Às vezes, nesses últimos dias de inverno, nós entrávamos, antes de ir passear, numa das pequenas exposições que se abriam na época e onde Swann, colecionador de marca, era saudado com especial deferência pelos negociantes de quadros em cujo estabelecimento elas ocorriam. E, nesses dias ainda frios, meus velhos anseios de partir para o Sul e para Veneza eram despertados por essas salas onde uma primavera já adiantada e um sol ardente punham reflexos violáceos nos Al Pilles rosados e davam a transparência carregada da esmeralda ao Grande Canal. Se o tempo estava feio, íamos ao concerto ou ao teatro e, a seguir, lanchar numa Casa de chá. Quando a Sra. Swann queria me dizer algo que não desejava fosse compreendido pelas pessoas das mesas vizinhas, ou até pelos garçons que nos serviam, falava-me em inglês como se se tratasse de uma língua conhecida apenas por nós dois. Ora, todo mundo sabia inglês, só eu é que ainda não o aprendera e era obrigado a dizê-lo à Sra. Swann para que ela parasse de fazer, a propósito das pessoas as que bebiam chá ou sobre as que o traziam, reflexões que eu adivinhava bem descorteses sem compreendê-las e sem que a pessoa visada perdesse a frase.
     Uma vez, a propósito de uma sessão matinal de teatro, Gilberte estava com profundo espanto. Era exatamente no dia em que me falara antes do aniversário da morte de seu avô. Eu e ela devíamos, com sua governanta, ir ouvir uma ópera e Gilberte se vestira com a intenção de ir a essa execução conservando o ar de indiferença que costumava mostrar para as coisas que íamos fazer, dizendo que podia ser qualquer coisa com tanto que me agradasse e fosse agradável a seus pais. Antes do almoço, sua mãe nos chamou à parte para falar que seu pai ficara aborrecido por nos ver ir ao concerto naquele dia. Acho muito natural. Gilberte ficou impassível, mas fez-se pálida de uma cólera que não pôde ocultar e não disse mais uma palavra. Quando o Sr. Swann voltou, levou-o para a outra extremidade do salão e segredou-lhe ao ouvido. Gilberte o levou para a peça ao lado. Ouviram-se vozes exaltadas. Por todo o barulho podia-se acreditar que Gilberte, tão submissa, tão terna, tão sensata, resistia ao pedido do pai num dia daqueles e por um motivo tão insignificante. Por fim saiu dizendo-lhe:

- Sabes o que te disse. Agora, podes fazer o que quiseres. 

     O rosto de Gilberte permaneceu contraído durante todo o almoço depois do qual fomos para o seu quarto. Depois, de repente, sem hesitação e como se tivesse tido por um só momento, gritou: 

 Duas horas! Mas você sabe que o concerto começa às duas e meia.- e disse à governanta que se apressasse. 

- Mas - disse eu - isso não aborrece o seu pai? 
- De jeito nenhum. 
- Entretanto, ele temia que isso parecesse estranho, por causa do aniversário. 
- E que me importa o que os outros pensem? Acho ridículo que se preocupe com os outros em matéria de sentimento. A gente sente para si e não para o público. Para Mademoiselle, que tem tão poucas distrações, é uma festa o concerto; não vou privá-la dele para dar satisfações ao público. E pegou o chapéu. 
- Mas Gilberte - observei, agarrando-a pelo braço - não se trata de dar satisfações ao público, é para atender a seu pai. 
- Você não vai me fazer advertências, espero - retrucou ela como que libertando-se vivamente.

     Favor ainda mais precioso que me levarem ao Jardim da Aclimação era ir ao concerto, os Swann não me excluíam sequer de sua amizade por Bergotte; estivera na origem do encanto que eu lhes achara quando, antes mesmo de conhecer Gilberte, pensava que sua intimidade com o velho divino faria dela, mais apaixonante das amigas caso o desdém que lhe inspirava não fosse barrado a esperança de que alguma vez ela me levasse a visitar as cidades que ele amava. Ora, um dia a Sra. Swann me convidou para um grande almoço. Eu não sabia quais deveriam ser os convidados. Ao chegar, fiquei desconcertado no vestíbulo por um incidente que me intimidou. Raramente a Sra. Swann deixava de adotar os costumes tidos por elegantes durante uma temporada e que, não chegando a manter-se, são logo abandonados (como, muitos anos antes, tivera o seu hansom cab, ou mandara imprimir, num convite para almoço, que era para um personagem mais ou menos importante). Muitas vezes tais costumes nada tinham de misterioso e não exigiam iniciação. Foi assim que, medíocre inovação daqueles anos, importada da Inglaterra, Odette encomendara para o marido cartões de visita em que o nome de Charles Swann era precedido de um Mr. Depois da primeira visita que lhe fizera, a Sra. Swann deixara em minha casa um desses cartões, como dizia. Jamais ninguém me mandara cartões de visita; senti tanto orgulho, tanta emoção e tanto reconhecimento que, reunindo todo o dinheiro que possuía, encomendei uma corbelha magnífica de camélias e mandei à Sra. Swann. Roguei a meu pai que mandasse um cartão à casa dela, mas antes mandando imprimir às pressas alguns em que seu nome fosse precedido de um Mr. Ele não acedeu a nenhum de meus rogos; fiquei desesperado durante alguns dias e depois me perguntei se ele não tinha tido razão. Mas o uso do Mr., apesar de inútil, era evidente. O mesmo não ocorria com outro que me foi revelado no dia daquele almoço, mas sem o seu significado. No momento em que ia passar da antecâmara para o salão, o mordomo me entregou um envelope delgado e comprido no qual estava escrito meu nome. Surpreso, agradeci, enquanto olhava o envelope. Não sabia o que fazer com ele, como um estrangeiro com um desses pequenos instrumentos que se dão aos convivas nos jantares chineses. Vi que estava fechado, receei ser indiscreto abrindo-o em seguida e o coloquei no bolso com ar entendido. A Sra. Swann me escrevera uns dias antes para que fosse almoçar "em família". No entanto estavam presentes 16 pessoas, entre as quais ignorava absolutamente que se encontrasse Bergotte. A Sra. Swann, que acabava de me "nomear", como dizia, à várias delas, de repente, logo após meu nome, da mesma forma como o acabara de falar (e como se fôssemos somente dois convidados do almoço que deviam estar mutuamente satisfeitos em se conhecer), pronunciou o nome do suave Cantor de cabelos brancos. Este nome de Bergotte me fez estremecer como o estampim de um revólver que houvessem descarregado em mim; mas instintivamente, para mostrar presença de espírito, cumprimentei-o; à minha frente, como esses Westi-digitadores que a gente percebe estarem intactos e de sobrecasaca no meio da fumaça de um tiro, de onde sai voando uma pomba, meu cumprimento era atribuído por um homem jovem, rude, pequenino, robusto e míope, de nariz vermelho em forma de concha de caramujo e de barbicha preta. Sentia-me mortalmente, pois o que acabava de ser reduzido a pó não era apenas o langoroso velho, qual nada mais restava, era igualmente a beleza de uma obra imensa que eu pudera acolher no organismo desfalecente e sagrado que, como um templo construído expressamente para ela; mas à qual nenhum espaço se via nesse corpo atarracado, cheio de vasos, de ossos, de gânglios, do homem achatado e de barbicha preta que estava diante de mim. Todo o Bergotte mesmo havia lenta e delicadamente elaborado, gota a gota, como a transparente beleza de seus livros, esse Bergotte, de um só golpe mais que qualquer utilidade, já que era preciso conservar o nariz em cara acima da barbicha preta; assim como de nada serve a solução que tínhamos encomendado um problema cujo enunciado lêramos de forma incompleta, e sem levar que o total devia dar uma certa cifra. O nariz e a barbicha eram elemento e tanto mais incômodos que, obrigando-me a reedificar inteiramente a imagem de Bergotte, pareciam ainda implicar, produzir, secretar incessantemente um tipo de espírito ativo e satisfeito consigo mesmo, o que não era corretamente o espírito de nada que tinha a ver com a espécie de inteligência espalhada naquele que eu tão bem conhecia; penetrados de uma suave e divina sabedoria deles, eu jamais teria chegado àquele nariz de caracol; mas, partindo de que não dava a impressão de se inquietar, mostrava-se altivo e caprichoso numa direção totalmente diversa da obra de Bergotte, e parece-me que uma mentalidade de engenheiro, apressado, do tipo daqueles que se bem um cumprimento, julgam ser correto dizer:

- "Obrigado, e o senhor?" caso lhe peçam notícias e, se lhes declaram terem ficado contentes em corresponder de modo abreviado que acham elegante, inteligente e que evita perda de tempo precioso em fórmulas vãs: 
-"Igualmente". 

     Indubitavelmente, são nomes de desenhistas fantasiosos que nos dão, de pessoas e países, e pouco parecidos que muitas vezes sentimos uma espécie de assombro porque temos ante nós, em vez do mundo imaginado, o mundo visível (que, a mundo verdadeiro, pois nossos sentidos já não têm muito mais que a imagem, o dom da semelhança, tanto que os desenhos por fim aproximativos; que obter da realidade são pelo menos tão diversos do mundo visto como esse mundo imaginado). Mas, para Bergotte, o incômodo do nome previamente diante do que me causava a obra conhecida, à qual via-me forçado como um balão, o homem de barbicha, sem saber se conservaria a força. Parecia, no entanto, que fora ele mesmo quem escrevera os livros que amara, pois, quando a Sra. Swann julgou falar-lhe de meu gosto por eles, não mostrou nenhum espanto que o dissessem a ele e não ao outro; não me pareceu indicar que se tratava de um equívoco; porém, estufando a que pusera em honra a todos os convidados, com um corpo ávido pelo que se aproximava, tendo sua atenção ocupada por outras realidades impossíveis apenas como a um episódio encerrado de sua vida anterior e como se aludido a uma roupa de duque de Guise que tivesse usado em certo baile a fantasia, que ele sorriu, reportando-se à ideia de seus livros, os quais logo diminuíram de valor para mim (arrastando em sua queda todo o valor do belo, do universo, da vida) até não passarem de mero divertimento do homem de barbicha. Dizia comigo que ele devia ter se aplicado a escrevê-los, mas que, se tivesse vivido em uma ilha cercada de bancos de ostras perlíferas, teria se dedicado com o mesmo sucesso ao comércio de pérolas. Sua obra já não me parecia tão inevitável. E então indaguei-me se a originalidade verdadeiramente prova que os grandes escritores sejam deuses a reinar cada qual em um reino que só a eles pertence, ou então senão existe em tudo isso um pouco de fingimento, se as diferenças entre as obras não seriam o resultado do trabalho, ao invés de uma diferença radical de essência entre as diversas personalidades.
     Nesse meio tempo passara-se à mesa. Ao lado de meu prato encontrei um cravo cujo talo estava envolto em papel prateado. Fiquei menos embaraçado que diante do envelope entregue no vestíbulo e que já esquecera de todo. O costume, entretanto tão novo para mim, me pareceu mais inteligível quando vi todos os convidados masculinos pegarem um cravo idêntico, que acompanhava os talheres, e o colocarem na botoeira da sobrecasaca. Procedi como eles com aquele ar natural de um livre-pensador na igreja, que não conhece a missa mas se ergue quando todos se levantam e põe-se de joelhos um pouco depois de todos fazerem o mesmo. Um outro costume desconhecido e menos efêmero desagradou-me um tanto mais. Ao lado do meu prato havia outro menor, cheio de uma substância escura que eu não sabia ser caviar. Ignorava o que fazer com aquilo, mas estava resolvido a não comê-lo.
     Bergotte não se sentava longe de mim; ouvia perfeitamente o que ele dizia. Compreendi então a impressão do Sr. de Norpois. Tinha, na verdade, uma voz estranha; nada altera tanto as qualidades materiais da voz como ter um conteúdo de pensamento; a sonoridade dos ditongos, a energia das labiais, tudo isto é influenciado por ele. E também a dicção. A sua parecia-me inteiramente diversa de sua forma de escrever, e até as coisas que dizia eram diferentes das que se achavam em suas obras. Porém, a voz saída de uma máscara sob a qual não é suficiente para nos fazer reconhecer um rosto que vimos primeiro a descoberto no estilo. Em certos momentos da conversa, quando Bergotte costumava falar de um modo que só parecia afetado e desagradável ao Sr. de Norpois, custou-me descobrir uma correspondência exata com as partes de seus livros em que a forma se tornava tão poética e musical. Então ele via, naquilo que falava, uma beleza plástica independente do significado das frases, e, como a palavra humana está relacionada com a alma, porém sem expressá-la como faz o estilo, Bergotte dava a impressão de falar quase a atender ao sentido, salmodiando certos termos e como se perseguisse através uma única imagem, tecendo-os sem intervalos como um mesmo som, com a mesma harmonia cansativa. De modo que um recitativo pretensioso, enfático e monótono era o sinal da qualidade estética de suas frases e o efeito, na sua conveniente mesma força que produzia em seus livros a sequência das imagens, assim, tanto mais me custava perceber que o que ele dizia, nesses instantes parecia ser de Bergotte precisamente por ser o verdadeiro Bergotte. Era o desenvolvimento de ideias exatas, não incluídas naquele "gênero Bergotte" que todos os cronistas se haviam apropriado; e aquela dessemelhança - percebida e confusa através da conversação, como uma imagem por trás de enfumaçado - era provavelmente um outro aspecto do fato de que, lendo a página de Bergotte, ela nunca era semelhante ao que teria escrito quaisquer vulgares imitadores que, entretanto, no jornal e no livro, ornavam tantas imagens à Ia Bergotte. Tal diferença de estilo decorria de que "o Bergotte'' acima de tudo um elemento precioso e genuíno, oculto no âmago de cada um depois, extraído dele por aquele grande escritor devido a seu gênio, extravagante era o objetivo do suave Cantor e não o de "fazer Bergotte".
     Para falar a verdade o fazia malgrado seu, porque era Bergotte, e, nesse sentido, toda beleza da nova obra era a pequena quantidade de Bergotte oculta numa coisa. Mas se, devido a isso, cada uma dessas belezas era aparentada à outra reconhecível, permanecia no entanto particular, como a descoberta quando exposto à luz do dia; nova, por conseguinte diversa do que se denominou ''gênero Bergotte", que era uma vaga síntese dos Bergottes já encontrados por ele, os quais não permitiam de forma alguma que nenhum homem adivinhasse o que Bergotte descobriria em outro local. O mesmo se dá aos grandes escritores: a beleza de suas frases é imprevisível, como é mulher que ainda não se conhece; ela é criação, visto aplicar-se a um objeto no qual estão pensando e não a si mesma e que ainda não exprimi o autor de suas memórias de hoje, querendo, sem dar muito a entender, faz Saint-Simon, a rigor poderá escrever a primeira linha do retrato de Villar um homem corpulento e moreno... com uma fisionomia viva, franca, que impressionava, mas que o determinismo poderá lhe fazer encontrar a segunda linha que é verdadeiramente um tanto amalucada. A verdadeira variedade dá plenitude de elementos reais e inesperados, no ramo carregado de flores surge, contra toda expectativa, da sebe primaveril que parecia já super compasso que a imitação puramente formal da variedade (e pode-se fazer o raciocínio quanto a todas as demais qualidades do estilo) apenas fazia-me, isto é, o extremo oposto da variedade, e os imitadores só podem dar a lembrança da legítima variedade àqueles que não a souberam cometer nas obras dos mestres.
     E assim - da mesma maneira como a dicção de Bergotte teria encantado se ele próprio não passasse de um amador que recitasse - Bergotte, em vez de estar ligada ao pensamento de Bergotte em trabalhado por relações vitais que o ouvido não identificava de imediato -, assim também, porque Bergotte aplicava tal pensamento com precisão à realidade que lhe agradava, sua linguagem tinha algo de positivo, de muito substancioso, que decepcionava os que esperavam ouvi-lo falar somente da "torrente eterna das aparências" e dos "misteriosos frêmitos da beleza". Enfim, a qualidade sempre rara e nova daquilo que escrevia traduzia-se em sua conversa por uma forma tão sutil de abordar um assunto, negligenciando todos os seus aspectos já conhecidos, que dava a impressão de pegá-lo por um lado menor, estar enganado, fazer paradoxos, e assim suas ideias pareciam quase sempre confusas pois cada um considera claras as ideias que estão no mesmo grau de confusão que as próprias. Aliás, se toda novidade tem como condição a prévia eliminação do lugar-comum a que estávamos habituados e que nos parecia a realidade mesma, toda nova conversação, bem como toda pintura e toda música originais, parecerá sempre alambicada e cansativa. Baseia-se em figuras a que não estamos acostumados, o interlocutor só nos parece falar por metáforas, o que cansa e dá impressão de falta de verdade. (No fundo, as próprias formas antigas de linguagem foram outrora imagens difíceis de acompanhar quando o ouvinte não conhecia ainda o universo que pintavam. Mas há muito tempo imaginamos que era o universo real, e nos baseamos nele.) Assim, quando Bergotte, o que hoje entretanto me parece bem simples, dizia de Cottard que era um mergulhador em busca de equilíbrio, ou de Brichot, que à ele lhe dá mais trabalho fazer o penteado do que à Sra. Swann, pois, duplamente preocupado com seu perfil e sua reputação, era necessário que a todo instante o arranjo de sua cabeleira lhe desse ao mesmo tempo o aspecto de um leão e de um filósofo, as pessoas logo sentiam-se fatigadas e gostariam de assentar o pé em algo mais concreto, dizia-se, para significar mais habitual. As palavras irreconhecíveis saídas da máscara que estava à minha frente, eram mesmo do escritor que eu admirava, mas não teriam sabido inserir-se em seus livros à maneira de um puzzle que se encaixa em outros; estavam em um plano diverso e necessitavam de uma transposição mediante a qual, num dia em que repetia comigo frases que ouvira Bergotte dizer, encontrei nelas toda a estrutura de seu estilo escrito, cujas diversas peças pude reconhecer e nomear naquele discurso falado que me parecera tão diferente.
     Sob um ponto de vista mais acessório, a maneira especial, um pouco intensa e minuciosa demais, que possuía de pronunciar determinadas palavras, certos adjetivos que voltavam com frequência em sua conversação e que não dizia sem uma certa ênfase, ressaltando todas as sílabas e fazendo cantar a última (como no caso da palavra visage, que usava sempre no lugar de figure, e à qual acrescentava um grande número de vv, de ss, de gg, todos parecendo explodir de sua mão nesses momentos), correspondia exatamente ao belo local em que, na sua fala, ele punha em evidência essas palavras prediletas, precedidas de uma espécie de margem e compostas de tal ordem, no número total da frase, que era-se obrigado a conta-la em toda a sua "quantidade", sob pena de incidir na mesma medida. Entretanto, não se achava na linguagem de Bergotte certas formas que nos seus livros, como nos de outros autores, modifica muitas vezes a aparência das palavras. É que, sem dúvida, provém de grandes profundidades; conduz seus raios até nossas palavras nas horas em que, abertos à conversação, estamos até certo ponto fechados para nós mesmos. Em certo aspecto, havia mais entonações, mais acento, em seus livros que em acento independente da beleza do estilo, que o próprio autor sem dúvida percebeu, pois não é separável de sua mais íntima personalidade. Era esse nos momentos em que nos seus livros Bergotte era totalmente natural; dava ritmo às palavras muitas vezes bem insignificativas que escrevia. Fala percebida no texto, nada aí o indica e, no entanto, ele se ajunta por si frases, não é possível dizê-las de outra forma; era o que havia de mais comum, todavia, de mais profundo no escritor, e aquilo é que daria o testemunho, natureza eu diria se, apesar de todas as durezas que exprimira, ele era sua forma de todas as sensualidades, sentimental.
     Certas particularidades de elocução, que existiam no estado vestígios na conversação de Bergotte, não lhe pertenciam como coisa pois, quando mais tarde conheci seus irmãos e irmãs, encontrei-as nele acentuadas. Era algo brusco e rouco nas últimas palavras de uma frase enfraquecido e agonizante no final de uma sentença triste. Swann, que Mestre quando era criança, disse-me que, naquele tempo, ouvia-se e bem como na de seus irmãos e irmãs, tais inflexões de algum modo alternadamente gritos de alegria violenta, murmúrios de lenta melancolia na sala em que brincavam todos juntos, ele fazia o seu papel melhor que ninguém em seus concertos, sucessivamente ensurdecedores e desfalecentes. Por pior que seja, todo esse rumor que se evola dos seres é fugidio. Porém não ocorreu assim com a pronúncia da família Bergotte. Por ser difícil entender, mesmo nos Mestres Cantores, como pode um artista, uma música ouvindo o gorjeio dos pássaros, Bergotte, no entanto, transpunha em sua prosa esse modo de prolongar-se nas palavras que se repetem e ações de alegria ou se esgotam em suspiros indolentes. Há em seus livros noções de frases onde a acumulação de sonoridades se prolonga, como verdadeiros acordes da abertura de uma ópera que não pode acabar e repete sua cadência suprema antes que o maestro deponha a batuta, e nas quais mais tarde um equivalente musical dos metais fonéticos da família Bergotte à ele, a partir do momento em que os transportou para seus livros inconscientemente de utiliza-los em seu discurso. No dia em que havia de escrever e, com muito maior razão mais tarde, quando o conheci, desse orquestrar para sempre.
     Esses jovens Bergottes, o futuro escritor e seus irmãos e irmãs, sem dúvida não eram superiores, pelo contrário, aos jovens mais finos, mais espirituosos, que achavam os Bergottes muito ruidosos e até mesmo um tanto vulgares, trepidantes nos seus gracejos que caracterizavam o "gênero" meio pretensioso, meio cúpido, da casa. Mas o gênio e até o grande talento decorrem menos de elementos intelectuais e de refinamento social superiores aos de outrem, que da faculdade de transformá-los, de transpô-los. Para aquecer um líquido com uma lâmpada elétrica, não é o caso de se ter a mais forte lâmpada possível, porém uma cuja corrente possa deixar de iluminar, ser desviada e fornecer calor em vez de luz. Para passear nos ares, não é preciso dispor do mais possante automóvel, e sim de um automóvel que, sem continuar a correr no solo e cortando com uma vertical a linha que seguia, seja capaz de converter em força ascensional a sua velocidade horizontal. Da mesma forma, aqueles que produzem obras geniais não são os que vivem no ambiente mais delicado, que têm a mais brilhante conversação, a mais extensa cultura, mas aqueles que tiveram a força de, cessando de viver bruscamente para si mesmos, tornar sua personalidade semelhante a um espelho, de tal forma que sua vida, aliás por mais medíocre que possa ser do ponto de vista mundano e até, num certo sentido, intelectualmente falando, nele se reflita, consistindo o gênio no poder refletor e não na qualidade intrínseca do espetáculo refletido.

continua na página 58...
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