segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro - Cumprimento da promessa feita à moribunda / III — Vinho para os homens e água para os cavalos

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Terceiro — Cumprimento da promessa feita à moribunda 

III - Vinho para os homens e água para os cavalos
     
     Tinham chegado à estalagem quatro novos viajantes. 
     Cosette meditava tristemente, pois se bem que ela tivesse apenas oito anos, havia já sofrido tanto, que às vezes punha-se a refletir com o ar lúgubre de uma velha.
     A pobre criança tinha uma das pálpebras negra, de um murro que lhe dera a Thenardier, o que dava lugar a que a ama dissesse de vez em quando: «Está horrenda com o remendo preto no olho!»
     Cosette, pois, meditava em que era noite, noite fechada, que fora necessário encher de repente as garrafas e os jarros nos quartos dos passageiros recém-chegados e que já não havia água na tina.
     O que a tranquilizava alguma coisa era que em casa dos estalajadeiros não se bebia muita água. Não faltava nela gente com sede, mas era dessa sede que se dirige com mais gosto à pipa do que à tina. Pareceria um selvagem a todos aqueles homens o que pedisse um copo de água entre aqueles copos de vinho. Em certa ocasião, porém, a criança estremeceu; a estalajadeira tirou a tampa de uma caçarola que estava fervendo ao lume, depois pegou num copo e aproximou-se com desembaraço da tina, à qual desandou a torneira. 
     A criança levantara a cabeça, e seguia-lhe todos os movimentos. Da torneira apenas correu um delgado fio, que encheu o copo até meio.

— Oh, já não há água! — disse ela, e fez uma pequena pausa. A criança não respirava. 
— É o que eu digo — tornou a Thenardier, examinando o copo meio cheio — o mais que haverá é tanta como esta.

     Cosette continuou outra vez no seu trabalho, mas durante mais de um quarto de hora sentiu saltar-lhe o coração no peito com terrível violência. Contava os minutos que decorriam; desejara estar já no dia seguinte.
     De tempos a tempos, algum dos bebedores exclamava, olhando para a rua: «Irra! 
     Está escuro como um prego!» ou: «Só quem for gato é que poderá andar a esta hora pela rua sem lanterna!» E Cosette estremecia. 
     De repente, um dos feirantes ambulantes alojados na estalagem entrou e disse com voz dura:

— Ainda não deram de beber ao meu cavalo. 
— Sim, senhor, deu-se-lhe de beber — disse a Thenardier. 
— E eu digo-lhe que não — tornou o feirante. 

     Cosette saiu então de debaixo da mesa e disse:

— Oh, senhor! Olhe que o cavalo bebeu, bebeu no balde, um balde cheio; até fui eu que lhe dei de beber e falei-lhe.

     Isto não era verdade. Cosette mentia.

— Ora vejam como esta sirigaita tão pequena já sabe pregar petas como torres! — exclamou o homem. 
— Já te disse que não bebeu, minha velhaquinha! Quando não bebe, sopra cá de certo modo que eu sei.

     Cosette insistiu, acrescentando com voz abafada pela angústia e que mal se ouvia: 

— E até bebeu bastante! 
— Vamos — tornou o feirante encolerizado — deixem-se de histórias, deem de beber ao cavalo e acabemos com isto!  

     Cosette foi se meter outra vez debaixo da mesa.

— Lá isso é justo — disse a Thenardier — se o cavalo não bebeu, é preciso dar-lhe de beber. 

     Depois acrescentou, olhando em volta de si: 

— Então? Onde está este estafermo?

     E, como se baixasse, descobriu Cosette acocorada na outra extremidade da mesa, quase debaixo dos pés dos bebedores. 

— Vens daí? — exclamou a Thenardier.

     Cosette saiu da espécie de buraco onde se tinha ido esconder e Thenardier tornou:

— Senhora cadela sem nome, vá dar de beber ao cavalo. 
— Senhora, mas é que não há água nenhuma em casa — disse Cosette com voz enfraquecida.

     A estalajadeira abriu a porta da rua de par em par e acrescentou:

— Pois vai buscá-la! 

     Cosette curvou a cabeça e foi pegar num balde vazio que estava ao pé da chaminé e que era maior do que ela. A criança podia sentar-se e mover-se dentro dele à vontade. 
     A Thenardier voltou para a chaminé e provou com uma colher de pau o que estava na caçarola, murmurando ao mesmo tempo:

— Na fonte há muita. Se já se viu uma coisa assim! O que ela precisava sei eu.

     Depois meteu a mão numa gaveta onde havia algum dinheiro em cobre, pimenta e alhos. 

— Aqui tens minha lesma —, acrescentou ela — quando voltares passa pelo padeiro e traze um pão dos grandes. Aqui tens quinze soldos. 

     Cosette pegou na moeda sem dizer uma palavra e meteu-a numa algibeira que tinha no avental. 
     Em seguida ficou imóvel, com o balde na mão, diante da porta aberta. Parecia estar à espera que viesse alguém em seu socorro.

— Então, avias-te? — gritou a Thenardier.

     Cosette saiu e a porta tornou a fechar-se. 

continua na página 296...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Terceiro -  III — Vinho para os homens e água para os cavalos
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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