sexta-feira, 14 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (11a) - Só três dias depois

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

11.


     Só três dias depois de tudo isto foi que os Epantchín ficaram de bem outra vez com o príncipe. Este, como sempre, se considerava muito culpado, aceitando contrito o castigo, muito embora no íntimo estivesse perfeitamente convencido de que Lizavéta Prokófievna não estava propriamente zangada com ele, mas consigo mesma.
     Assim, um tão longo período de animosidade o reduziu, no começo do terceiro dia, ao mais lúgubre atarantamento. Outras circunstâncias contribuíam para isso; principalmente uma que, para a sensibilidade do príncipe, foi crescendo de importância durante aquele tríduo insuportável. (Não era de agora que ele se censurava de dois defeitos opostos: a sua excessiva presteza “insensata e despropositada” em acreditar em toda gente e, por outro lado, a sua lúgubre desconfiança de todo o mundo.) Em síntese: já no terceiro dia o tal incidente da dama espalhafatosa que interpelara Evguénii Pávlovitch estava tomando em sua imaginação proporções alarmantes e misteriosas.
     A essência de tal enigma, sem falar em outros aspectos do caso, residia para ele, Míchkin, nesta mortificante pergunta: “Era ele culpado dessa nova “monstruosidade”, ou se daria que...” Mas não tinha coragem de continuar o pensamento. Quanto às letras “N. F. B.”, não via nisso senão uma inocente jocosidade... uma brincadeira sobremodo infantil. Sim, de fato; tanto que chegaria a ser vergonhoso e até mesmo de certo modo deselegante tentar esquadrinhar isso.
     Todavia, no dia seguinte àquela cena noturna tão escandalosa e nociva, da qual se julgava a causa maior, tivera Míchkin o prazer, logo de manhã cedo, de uma visita do Príncipe Chtch... acompanhado de Adelaída. “Tinha vindo principalmente para indagar da sua saúde”. Tratava-se de um passeio matinal. Adelaída chegara até a descobrir no parque uma árvore... Sim, uma árvore maravilhosa!
     Velha, copada, de galhos retorcidos, com uma fenda enorme no tronco e já toda coberta com folhas novinhas, muito verdes. Que esplêndido motivo para uma tela! Positivamente não podia Adelaída deixar de pintar aquela árvore. De forma que não se referiam senão a isso, durante a curta visita, que apenas durou uns trinta minutos.
     Como sempre, o Príncipe Chtch... se mostrava muito cordial e amável.
     Interrogou Míchkin sobre coisas antigas referentes ao modo pelo qual haviam travado conhecimento; assim, nada foi dito a propósito dos acontecimentos da véspera.
     Mas Adelaída não era criatura para se conter. Confessou com um sorriso que tinham vindo “incógnitos”. Mas a confissão ficou apenas nisto, embora através da palavra “incógnitos” se pudesse depreender que ela e eventualmente o noivo estavam em má cotação perante os pais, ou melhor, perante a mãe. Mas nem Adelaída nem o príncipe Chtch... proferiram uma única palavra a respeito de Agláia ou mesmo do General Epantchín. E saindo, para prosseguir no passeio, tampouco instaram para que Míchkin os acompanhasse. Muito menos insinuaram que os fosse visitar a casa. Verdade é que uma frase muito sugestiva escapou dos lábios de Adelaída.
     Conversando sobre uma aquarela que estivera pintando, demonstrou, de repente, vivo desejo de mostrar-lhe. “Como é que se fará isso? Espere! Ou mando Kólia trazer-lhe ainda hoje, caso ele apareça, ou eu mesma lha trarei amanhã quando sair para dar uma volta com o príncipe, concluiu ela satisfeita por ter saído da dificuldade tão habilmente e até mesmo com ar natural em seu efeito recíproco. Por fim, quando já se despedia, o Príncipe Chtch... fez um gesto de quem quase se esquecera de uma coisa.

- Ah! Sim! Sabe o senhor por acaso quem seja aquela pessoa que falou alto, ontem, lá da carruagem?

     O Príncipe respondeu logo: 

- Foi Nastássia Filíppovna. O senhor não descobriu que era ela? Mas quem a acompanhava, não sei. 
- Ah! Sim. Já me disseram também a mesma coisa. Mas que desejaria ela dizer assim tão alto? Tratava-se, para mim, devo confessar, de um mistério... Para mim e para todos.

     E, falando, o Príncipe Chtch... mostrava extrema e visível perplexidade. Simploriamente, Míchkin explicou: 

- Referiu-se a umas promissórias de Evguénii Pávlovitch. Comunicou-lhe que, a pedido dela, Rogójin tirou esses títulos das mãos de um agiota. Que ele, Rogójin, esperará, enquanto Evguénii Pávlovitch não as puder saldar. - Eu escutei, eu escutei, meu caro príncipe. Mas não pode ser!... Evguénii Pávlovitch não pode ter assinado tais letras! Pois se ele é riquíssimo!... É verdade que se descuidou, tempos atrás, e. com efeito, eu próprio o ajudei... Mas, com a fortuna que tem. precisar passar promissórias a um agiota e estar embaraçado por isso!? É impossível! E nem pode ele estar assim em termos íntimos e amistosos com Nastássia Filíppovna. Eis o que é mais misterioso. Evguénii Pávlovitch jura que isso é algum equívoco (e eu confio nele de modo absoluto). Escute uma coisa, caro príncipe: não saberia o senhor de nada? Não ouviu por acaso qualquer referência. Ou boato? 
- Não tenho a menor noção a respeito desse mistério e lhe asseguro que estou alheio a tudo!  
- Ora, ora, príncipe, que modo estranho de responder. Quer que eu lhe seja franco? Hoje não estou conhecendo o senhor. Então acha que eu o suporia comprometido em um caso tão escabroso? O príncipe hoje não está muito feliz! Deu-lhe logo um abraço, chegando até a beijá-lo. 
- Escabroso? Como, escabroso? 
- Pois não percebe que tal pessoa quis positivamente prejudicar Evguénii Pávlovitch, atribuindo-lhe, aos ouvidos dos que saíam da varanda, fatos de que ele não participou?! Fatos que ele até ignora! - redarguiu o Príncipe Chtch..., com fisionomia severa. 

     Míchkin ficou confuso, continuando a olhar com firmeza para o seu interlocutor, como à espera de outras palavras em prosseguimento àquela observação. E vendo que tais palavras não vinham, instou, de modo indireto:

- Tal pessoa apenas se referiu a umas promissórias... Foi só sobre esse assunto de dívidas que tal pessoa quis comunicar qualquer solução... 
- Mas eu lhe pergunto... e o príncipe julgue por si mesmo... que pode haver de comum entre tal... pessoa e Evguénii Pávlovitch? E ainda mais com esse Rogójin metido no caso? Repito-lhe que a fortuna de Evguénii é enorme! Disso estou perfeitamente informado, sem contar que ainda herdará uma outra fortuna.., de um tio! Será que Nastássia Filíppovna não teria querido...

     E nisto o Príncipe Chtch... interrompeu a frase, pois evidentemente não lhe convinha conversar com o príncipe a respeito de Nastássía Filíppovna.

- Está bem... Mas, pelo menos ele a conhece... E a dedução, perante o que todos ouvimos aqui da varanda, ontem, disse Liév Nikoláievitch.
- Bom, lá isso pode ser. Creio que sim. Talvez se tenham dado há uns dois ou três anos passados... Ou melhor; Evguénii se dava com Tótskii. Não passou disso. Intimidade nunca houve. De mais a mais ela não estava aqui. Andou muito tempo não sei por onde. Muita gente que veraneia em Pávlovsk nem sabe da presença dela aqui. Eu, por exemplo, foi apenas há três dias, se tanto, que reparei nessa carruagem. 
- Que carruagem esplêndida! - disse Adelaída. Sim realmente é uma caleça muito bonita.

     E os dois noivos se despediram de maneira amistosa; até mesmo fraternal, do Príncipe Liév Nikoláievitch. 
     Mas o nosso herói emprestou a essa visita uma importância máxima. Desde a noite anterior que ele suspeitava de uma série de coisas cujo prelúdio vinha de data precedente e que atingia agora o ápice com essa visita ao encontro das suas apreensões. Percebia que o Príncipe Chtch..., ao querer interpretar o incidente, andara quase beirando a verdade determinante do mesmo, percebendo até que reinava uma intriga. (“Estou em jurar que ele percebeu tudo... mas como não ousa falar às claras, me comunicou sua desconfiança alinhavando uma interpretação vaga.”) Uma coisa era mais do que certa: os dois tinham vindo vê-lo na esperança de colher qualquer informação esclarecedora. (Pelo menos o Príncipe Chtch... viera com esse intuito.) Portanto, o consideravam incluído nessa tal intriga. Ora, se de fato Nastássia Filíppovna urdira tal estratagema e o efetivara, a dedução a tirar era esta: ela agira assim movida por um terrível propósito. Qual? Um propósito especialíssimo! “E agora como se há de fazer com que essa mulher não prossiga nisso? Não há quem seja capaz de a demover de uma resolução quando ela tem um desígnio em mente!” E o príncipe sabia disso por experiência própria. 

“Ela é louca! Louca!”

     Levara toda aquela manhã emaranhado no exame de muitos outros incidentes inexplicáveis e simultâneos, e demandando, todos eles uma imediata solução. O príncipe não podia deixar de se sentir acabrunhadíssimo. Sua atenção foi distraída um pouco pela vinda de Vera Liébediev que apareceu com Liúbotchka para visitá-lo e que, muito risonha, lhe contou uma história muito comprida. Não tardou que entrasse também a outra irmãzinha, sempre de boca aberta, a olhar muito pasmada para o príncipe; e daí a pouco surgia o filho de Liébediev, que já frequentava a escola! Este então informou que “a estrela chamada Absinto”, no Apocalipse, “e que cai sobre os cursos das águas” era, segundo a interpretação do pai. a rede de estradas de ferro espalhadas pela Europa. O príncipe não acreditou que Liébediev interpretasse assim esse trecho de versículo. tendo, em pensamento, resolvido perguntar isso depois, na primeira oportunidade.  
     Por intermédio de Vera veio a saber que Keller se encafuara placidamente na casa deles. Instalara-se no pavilhão, desde a véspera. e não dava o menor sinal de estar com vontade de se ir embora. Principalmente depois que arranjou amizade com o General ÍvoLguin. estando ambos inseparáveis. Como motivo dessa resolução dava o seu desejo de “se instruir a fundo”. À proporção que via e escutava os filhos de Liébediev, o príncipe cada vez simpatizava mais com eles. Kólia não apareceu porque logo cedinho fora a Petersburgo. O próprio Liébediev também saíra ao clarear do dia, para tratar de certos negócios seus. Mas o príncipe esperava com impaciência a visita de Gavríl Ardaliónovitch que devia vir vê-lo nesse dia, sem falta. De fato este chegou às seis da tarde, depois do jantar. O príncipe percebeu, ao primeiro relance, que se algum homem havia que devesse saber “as novidades”, era este. E como não, se na verdade dispunha de gente como a sua irmã e o cunhado, fontes esplêndidas de informações? As relações do príncipe com Gavril Ardaliónovitch eram especiais. Encarregara-o, por exemplo, de deslindar o caso de Burdóvslcii, recomendando-lhe especial interesse. Não obstante a confiança demonstrada em tal circunstância, perdurava entre ambos. devido a conjunturas anteriores, certa cerimônia, havendo assuntos sobre os quais não se abalançavam a trocar impressões. O príncipe parecia notar em Gánia, às vezes, o desejo de uma sinceridade maior e mais amistosa. Agora, por exemplo, mal acabou de entrar, todo o seu feitio dava ensejo a que Míchkin rompesse de vez com a camada de gelo que ainda os bloqueava. Mas Gavríl Ardaliónovitch estava com pressa, porque sua irmã, com quem tinha um assunto urgente a tratar, o estava esperando com as crianças de Liébediev lá no pavilhão. Por isso a visita de Gánia ao príncipe não durou mais do que vinte minutos. E se aquele contava com uma série completa de perguntas impacientes, confissões impulsivas e desabafos íntimos, se enganou tremendamente, pois o príncipe todo esse tempo permaneceu como que distraído, com o pensamento longe. Absolutamente não se deram as tais perguntas esperadas... Muito menos ainda a pergunta principal que era lógico esperar. Então Gánia resolveu adotar a maior cautela nas próprias palavras. E falou sem parar, enchendo bem aqueles vinte minutos, mantendo uma conversa viva, rápida, com muita efusão. Não tocou, absolutamente, no ponto principal.

O Idiota: Segunda Parte (11a) - Só três dias depois
O Idiota: Segunda Parte (11b) - Disse, entre outras coisas
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