sábado, 22 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Terceira Parte (1b) - Até que enfim

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Terceira Parte

1.

continuando...

     Até que enfim o sol parece que ia raiar, para o seu coração materno. Até que enfim uma filha, até que enfim Adelaída se tinha arranjado. “Ao menos uma nos sai das mãos!”, dissera a Sra. Epantchiná, quando teve ensejo de se referir ao fato, em voz alta (em suas reflexões ela conversava consigo mesma com a maior das ternuras!). E como a coisa se dera bem, como calhara tudo tão direito! Até na sociedade se comentava isso com respeito. Ele era um homem de altas maneiras; um príncipe, um ricaço, um rapagão, e, o que é mais, se tratava de um casamento por amor. Que poderia ser melhor? Mas sempre tivera menos cuidados com Adelaída do que com as outras duas, muito embora suas propensões artísticas às vezes mexessem gravemente com o apreensivo coração da mãe. “Mas Adelaída tem um temperamento prazenteiro e muito juízo, e, além disso, trata-se de uma menina que irá longe, com as próprias pernas”, tal era a reflexão consoladora. Por quem ela mais receava, entre todas, era por Agláia. Relativamente à filha mais velha, Aleksándra, a mãe ainda não soubera direito se devia ter, ou não, apreensões. Muitas vezes imaginava que para essa “não restavam mais esperanças”. “Está com vinte e cinco anos, portanto acaba mais é solteirona. E com aquela beleza toda!” E pensando nela, Lizavéta Prokófievna derramava lágrimas, de noite - é a pura verdade -, enquanto Aleksándra dormia que era um regalo! Que há de ser dela? Será apenas niilista ou simplesmente uma espinoteada?” Que nem mesmo espinoteada ela era, Lizavéta Prokófievna estava farta de saber; tanto que levava muito em conta os seus julgamentos e não cessava de lhe pedir conselhos. Mas que ela era uma “água morna” em momento algum tivera dúvidas. “ Que se há de fazer com uma criatura que nem se mexe? E nem se liga que uma “água morna” seja quieta! Ah!... eu acabo tonta com estas meninas!” Lizavéta Prokófievna tinha um inexplicável sentimento (de simpatia e de comiseração por Aleksándra – mais até do que por Agláia, a quem idolatrava. Mas os piores epítetos (pelos quais demonstrava a sua maternal solicitude), ironias e apelidos, como água morna”, só alegravam Aleksándra. E a coisa chegou a tal estado que, certas vezes, casos insignificantes punham a Sra. Epantchiná terrivelmente zangada, fazendo-a chegar a um perfeito frenesi. Aleksándra, por exemplo, gostava de dormir até tarde e era dada a sonhar muito. Mas os seus sonhos eram sempre marcados por uma extraordinária inépcia e inocência, podiam ser sonhos de uma criança de sete anos. Pois essa inocência mesma dos seus sonhos tornava-se uma fonte de irritação para a mãe. Certa vez sonhou Aleksándra com nove galinhas, o que deu azo a séria briga entre a mãe e a filha. Por quê? Seria difícil explicar. Outra vez, e não se repetiu, conseguira ela sonhar com qualquer coisa que podia ser chamada original - sonhara com um monge que estava sozinho em um quarto escuro onde ela sentia medo de entrar. Tal sonho foi imediatamente transmitido à mãe, em triunfo, pelas duas irmãs a rirem; mas a mãe ainda ficou mais zangada, chamando as três de “malucas”.

- Hum! Tanto tem ela de moleirona quanto de maluca e não passa de uma galinha choca! Não há meios de espevitá-la. E não é que deu para ficar triste? Que estará ela sentindo? Que é? - ás vezes fazia essa pergunta ao marido e, como de hábito, perguntava histericamente, ameaçadoramente, exigindo uma resposta súbita. Iván Fiódorovitch dizia “Hum!”, franzia a testa, encolhia os ombros, e com um gesto descoroçoado se saía com uma frase destas: - Do que ela precisa é de marido!
- Pois que Nosso Senhor lhe conceda um que não seja como tu, Iván Fiódorovitch! - desandava Lizavéta Prokófievna, por fim, como uma bomba. - Que não seja como tu no falar nem no julgar, Iván Fiódorovitch. Que não seja um vilão grosseiro como tu, Iván Fiódorovitch... - Iván Fiódorovitch imediatamente arranjou meios de fugir, e Lizavéta Prokófievna se acalmou, depois da “explosão”. Nessa mesma noite, naturalmente se tornou, como invariavelmente se dava, atenciosa, gentil e prazenteira para com o marido, “o grosseirão” Iván Fiódorovitch, o seu bom, querido e adorado Iván Fiódorovitch, pois sempre o amara e sempre estivera apaixonada por ele, toda a vida - fato esse de que ele estava perfeitamente ciente, e pelo qual lhe dispensava ilimitado respeito. Mas a sua principal e contínua ansiedade era Agláia.   

“Ela é direitinho, direitinho eu, sob qualquer aspecto é o meu retrato”, costumava dizer a mãe consigo mesma. “Cabeçuda, um perfeito diabinho! Niilista, excêntrica, maluca e ruim, ruim, ruim! Senhor Deus, como ela vai ser infeliz!”

     Mas, como íamos dizendo, um mágico sol fulgurante tinha abrandado e iluminado tudo, de repente. Pelo espaço de quase um mês, Lizavéta Prokófievna teve uma folga em suas ansiedades. O próximo casamento de Adelaída fez com que na sociedade também se viesse a falar em Agláia. E os modos de Agláia eram tão bons, tão harmoniosos, tão vivos, tão encantadores! Um nada altiva, mas isso até lhe ia bem! Portara-se, todo esse mês, tão carinhosa, tão gentil com sua mãe! (Verdade é que era necessário ter muito cuidado, estar muito atenta a Evguénii Pávlovitch, para lhe perscrutar o ínfimo, mas Agláia nem por isso o favoreceu mais do que aos outros.) Fosse lá como fosse, como se tinha ela de repente tornado uma jovem tão radiante! E que linda estava, louvado seja Deus, que linda estava! Cada dia ficava mais bela. E nisto... Nisto aquele desventurado principezinho, aquele miserável idiotazinho, nem acabara de surgir e já tudo estava de novo uma barafunda, a casa inteira de pernas para o ar. 
     Que teria, pois, acontecido? 
     Não tinha acontecido nada a ninguém, eis a verdade. Mas Lizavéta Prokófievna possuía tal peculiaridade: armava combinações e concatenações das coisas mais triviais até chegar a ver, através da sua onipresente ansiedade, alguma coisa que a alarmasse a ponto tal que, além de a tornar doente, lhe inspirava terror totalmente exagerado e inexplicável, a todo ponto insuportável. Imagi ne-se, agora, qual não seria o seu sentimento quando, através do emaranhado de absurdos e infundados aborrecimentos, verificou qualquer coisa que realmente era importante e que desta vez sim podia com toda a seriedade causar ansiedade, hesitação e desconfiança? “E que insolência me escreverem, naquela amaldiçoada carta anônima, que aquela marafona anda em comunicação com Agláia!” Nisto pensava Lizavéta Prokófievna, durante o percurso para casa quando trouxe consigo o príncipe e mesmo depois, quando o fez sentar-se em torno da mesa redonda, com a família inteira ali reunida. 

“Como se atreveram a pensar em uma tal coisa? Se eu acreditasse em uma sílaba sequer, morreria de vergonha, e ainda bem que não mostrei a carta a Agláia! Estão querendo fazer de nós, as Epantchín, uma fábrica de gargalhadas. E a culpa toda é de Iván Fiódorovitch! Ah! Por que não fomos nós passar o verão na Ilha Ieláguin? Bem dizia eu que devíamos ir para Ieláguin! Deve ter sido essa implicante Vária quem escreveu a carta, ou... talvez... mas toda a culpa, todinha, é de Iván Fiódorovitch! Foi para dar na vista que essa marafona reergueu isso outra vez, como lembrança de suas primitivas relações, para o fazer de idiota, como já judiou dele antes, aquela vez, arrastando-o pelo nariz quando ele lhe levou as pérolas... E o máximo e o mínimo, em tudo isso, é que nos comprometeu. Sim, tuas filhas, Iván Fiódorovitch, foram metidas nisso, umas moças, umas donzelas, que frequentam a melhor sociedade, em via de se casarem; sim, elas estavam lá, estavam perto, ouviram tudo, e foram arrastadas à cena com aqueles rapazes indecorosos! Sim, tu te podes felicitar! Elas estavam lá e também ouviram! Jamais perdoarei, jamais perdoarei a este desditoso principezinho! E por que esteve Agláia com sua histeria estes três últimos dias? Por que foi que esteve a ponto até de brigar com as irmãs, até mesmo com Aleksándra cujas mãos sempre andava, antes, beijando, como se fosse Aleksándra sua mãe, tanto e tanto a respeitava? Por que se comportou ela de maneira tão enigmática com todo o mundo, estes três dias? Que tem Gavril Ardaliónovitch com isso? Por que hoje e ontem elogiou ela tanto Ívolguin e rompeu, depois, em pranto? Por que é que esse amaldiçoado “pobre cavaleiro” é citado naquela carta anônima, e por que não mostrou ela, nunca, às irmãs, a carta do príncipe?... E por que... foi que me induziu a correr à casa dele, como uma gata com ataque, e a arrastá-lo até aqui? Deus nos acuda! Eu devia estar fora do meu juízo, para poder ter feito isso! Falar a um jovem dos segredos de minha filha! E segredos que a ele dizem respeito! Deus do Céu, foi, neste caso, uma graça divina ser ele um idiota e... e... um amigo da família, se não?!... Mas será possível que Agláia se tenha deixado fascinar por um “peixe-boi” destes? Céus, que estou eu tagarelando? Arre!... Somos uma súcia de esquisitos! O que deviam era colocar-nos em uma redoma - principalmente eu - e exibir-nos a dois copeques cada um. Nunca te perdoarei isso, Iván Fiódorovitch, nunca! E por que é que ela, a minha filha, não o põe a ridículo agora? Dizia tanto que estava troçando dele e por que parou? Lá está ela, de boca aberta para ele; e nem fala nem sai de lá, planta-se, apesar de lhe ter dito que não viesse mais!... Vejam só como ele está pálido. E aquele insigne tagarela Evguénii Pávlovitch açambarcou toda a conversa. Que corda que ele tem, não pára, não deixa que ninguém se intrometa. Eu logo descobriria alguma coisa se me fosse dado converter a conversa no que eu muito bem sei!...” 

     O príncipe, de fato, estava bastante pálido, sentado lá rente à mesa redonda. E parecia bastante preocupado; momentos havia em que uma espécie de arrebatamento inundava a sua alma, sem que ele soubesse qual, e por quê. Oh! Com que cuidado, com que medo relanceava, às vezes, o olhar para um canto, lá donde uns olhos negros o estavam intencionalmente fitando! E ao mesmo tempo como o seu coração palpitava com delícia por poder estar sentado ali entre eles, de novo, por poder ouvir aquela voz familiar, depois do que ela lhe tinha escrito! Céus! Que lhe diria ela agora? Ele ainda não tinha pronunciado uma palavra e escutava com desmedida atenção a “disparada” de Evguénii Pávlovitch que raramente estava de ânimo tão disposto, feliz e excitado como aquela noite.
     O príncipe escutava-o, mas mal apreendia uma só palavra do que ele estava a contar desde muito. A exceção de Iván Fiódorovitch, que ainda não tinha voltado de Petersburgo, toda a família se achava reunida ali, como em assembleia. O Príncipe Chtch... também. Tinham já demonstrado querer sair um pouco para ouvir a banda do jardim, antes do chá. Evidentemente a conversa começara antes da chegada do príncipe. Um pouco depois Kólia fizera a sua aparição na varanda.

“Ele então é recebido aqui da mesma forma que antes”, verificou o príncipe, mentalmente.

     A vila dos Epantchín era luxuosa, construída em forma de chalé suíço, pitorescamente coberta por trepadeiras em flor e rodeada de um jardim, bem tratado. Estavam todos na varanda. como na casa do príncipe. mas a varanda aí era um pouco mais ampla e mais suntuosa. O tema da conversa parecia agradar a poucos do grupo. Tinha nascido de um acalorado argumento, e não havia dúvida de que todos gostariam bem de mudar de assunto. Mas Evguénii Pávlovitch persistia cada vez mais obstinadamente, sem se importar com a impressão que estava causando; a chegada do príncipe parece que o tornou ainda mais impetuoso; Lizavéta Prokófievna já estava de cara fechada, muito embora não o estivesse quase entendendo. Agláia, sentada para um dos lados. quase em um canto, continuava a escutar, obstinadamente silenciosa.

- Ora, mas por quem são - estava Evguéníi Pávlovitch protestando veementemente - quanto ao liberalismo, não o ataco. O liberalismo não é um pecado. É uma parte essencial de um todo que sem essa parte se espatifaria, perecendo. O liberalismo tem tanto direito a existir como o mais judicioso conservadorismo. Mas eu estou atacando o liberalismo russo! E torno a repetir que o ataco justamente pela razão de que o liberal russo não é um liberal russo, mas um liberal anti-russo. Mostrem-me um liberal russo e eu o beijarei diante de todos aqui.
- Isto é se ele deixar que o senhor o beije! - disse Aleksándra que se mostrava excepcionalmente animada, a ponto de suas faces estarem mais coradas do que habitualmente.

“Ora essa, pensou Lizavéta Prokófievna, não faz senão dormir e comer, e não há meios de ninguém a despertar, senão quando, lá de ano em ano, se levanta como se tivesse uma mola e se sai com uma destas, de tal maneira que se tem de ficar de boca aberta a olhá-la.”

O Idiota: Terceira Parte (1b) - Até que enfim
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