terça-feira, 18 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (11c) - O príncipe corou

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

11.

continuando...

     O príncipe corou um pouco.

- Nem o pregador Bourdaloue teria poupado um homem; mas o senhor poupou um, julgando-me de modo humano! Para me punir, pois, e para lhe mostrar quanto isso me toca, não tomarei cento e cinquenta rublos. Dê-me só vinte e cinco, que serão suficientes! É tudo quanto desejo, por uns quinze dias. Não voltarei por causa de dinheiro, senão daqui a uns quinze dias. Minha intenção era dar um presentinho a Agáchka, mas ela não o merece. Oh! Que Deus o abençoe, príncipe! 

     Liébediev entrava, tendo acabado de chegar da cidade. E reparando que Keller estava com uma nota de vinte e cinco rublos na mão, amarrou a cara. Mas Keller, uma vez provido de fundos, ficou com pressa de se ir embora.
     Imediatamente se pôs Liébediev a falar mal dele.

- Você está sendo injusto, ele realmente está arrependido - observou o príncipe, depois.
- De que lhe adianta o arrependimento? É a mesma coisa que eu, ontem, a dizer: “Sou abjeto, sou abjeto!” O senhor bem sabe que isso não passa de palavras.
- Então, no seu caso também, foram apenas palavras? Pois eu pensava que...   
- Bem, ao senhor, mas ao senhor só, contarei a verdade, porque o príncipe vê através das pessoas. Palavras e ações, mentiras e verdades estão em mim de tal forma misturadas que no fundo sou sincero. A verdade e a ação consistem, em mim, em uma contrição sincera, creia ou não o senhor - juro que é assim - é a palavra e a mentira no pensamento infernal (e sempre presente) de como enganar alguém, de como, através de lágrimas, fingir arrependimento. Eis o que se dá. por Deus! Eu a outro homem não diria isto, pois ou se riria, ou me vingaria. Mas o senhor, príncipe, o senhor julga humanamente.
- Ora, muito bem! Keller também me disse isso ainda agora - exclamou o príncipe - e vocês ambos parecem orgulhosos disso! Vocês, positivamente, me surpreendem. Mas ele, ao menos, é mais sincero do que você; transformou isso em método. Bem, chega. Não franza a cara, Liébediev, e tire essa mão do coração. E que é que você me quer falar? Você não entrou aqui, à toa... 

     Liébediev careteou e deu uns pulinhos. O príncipe declarou:

- Estive esperando por você o dia inteiro, para lhe perguntar uma coisa. Diga-me a verdade certa, uma vez na vida. Você tem alguma coisa com aquela carruagem que parou aqui, ontem, ou não tem? 

     Liébediev tornou a fazer uma careta, a dar uns risinhos, a esfregar as mãos; deu até mesmo um espirro. E não havia jeito de falar. 

- Vejo que sim. 
- Mas indiretamente, indiretamente! O que estou lhe dizendo é a santa verdade! A única parte que tomei naquilo foi fazer uma certa pessoa saber a tempo exato que eu tinha determinado número de pessoas em minha casa e que “umas quantas” pessoas estavam presentes. 
- Eu sabia que você tinha mandado seu filho, lá. Ele acabou de me dizer não há muito. Mas que complicação é essa? - perguntou o príncipe impaciente.
- A intriga não é minha. Minha, não - protestou Liébediev, gesticulando - Há outros, outros, metidos nisso; e se trata mais de uma fantasia do que de uma intriga.
- Mas que significa isso? Pelo amor de Deus, explique-se. Será possível que você não compreenda que isso me diz respeito? Veja bem, estão difamando o caráter de Evguénii Pávlovitch.
- Príncipe, ilustríssimo príncipe! - recomeçou Liébediev, saltitando. - O senhor não consentiu nunca que eu dissesse a verdade toda. O senhor bem sabe disso; eu tentei mais de uma vez. O senhor jamais consentiu que eu prosseguisse...  

     O príncipe ficou parado, pensando um pouco.

- Está bem, diga então a verdade - ordenou com certo esforço, depois de uma luta severa consigo mesmo.

     E Liébediev prontamente começou: 

- Agláia Ivánovna... 
- Cale-se, cale-se! - gritou o príncipe, furioso, ficando logo vermelho de indignação e de vergonha, ao mesmo tempo. - Isso é impossível, é absurdo! Você inventou tudo isso; ou você mesmo ou algum outro maluco como você. E nunca mais me torne a falar nisso. 

     Tarde da noite, lá pelas dez horas, Kólia chegou com uma verdadeira mochila de novidades. Tais novidades eram de duas ordens: de Petersburgo e de Pávlovsk. Apressadamente relatou os principais itens das novidades de Petersburgo (principalmente as referentes a Ippolít e à cena da véspera) passando logo para as novidades de Pávlovsk, deixando claro que depois voltaria outra vez às outras. Regressara de Petersburgo havia três horas, e antes de vir falar com Míchkin estivera em casa dos Epantchín. “Está lá uma trapalhada!” Sem dúvida a base de tudo era o caso da carruagem; mas alguma coisa havia acontecido - alguma coisa que nem ele nem o príncipe sabia o que era. “Não espionei, nem fiz indagações com ninguém, naturalmente. Receberam-me, todavia, muito bem, melhor do que eu esperava: mas, quanto ao senhor, príncipe, nem uma palavra.”
     O fato mais importante e de maior interesse era que Agláia tinha brigado com todo o mundo lá, a respeito de Gánia. Não chegara a saber minúcias da briga, a não ser que fora por causa de Gánia (imagine só); que fora uma briga séria; logo, devia haver alguma coisa importante. O general aparecera atrasado e carrancudo; chegara com Evguénii Pávlovitch, que fora excelentemente acolhido e que estivera todo o tempo maravilhosamente alegre e encantador. Mas a notícia mais impressionante foi a de que Lizavéta Prokófievna muito de mansinho mandara chamar Varvára Ardaliónovna que estava noutro cômodo, sentada com as moças e, de uma vez para sempre, a pusera para fora de casa, embora de maneira muito polida. “Foi a própria Vária quem me contou”. Mas que, quando Vária saíra dos cômodos da Sra. Epantchiná e se despedira das moças, estas ignoravam a cena da proibição definitiva e que se estivesse despedindo delas pela última vez.

- Mas Varvára Ardaliónovna esteve aqui às sete horas - disse o príncipe, atônito.
- Foi posta para fora às oito horas, ou pouco antes. Estou com muita pena de Vária... E de Gánia também. Sem dúvida que os dois estavam sempre às voltas com umas intrigazinhas; não podiam passar sem isso. Nunca pude descobrir que é que ambos estavam chocando, e nem quero saber. Mas lhe asseguro, meu caro e bondoso príncipe, que Gánia não tem mau coração. Sob muitos pontos de vista é uma alma perdida, não resta dúvida, mas tem pontos, por outro lado, que merecem ser estimados; e nunca me perdoarei por o não ter compreendido antes... E agora fico sem saber se devo ir lá ou não, depois do que se passou com Vária. Verdade é que desde o começo os frequentei por mim só, separadamente; mas, ainda assim. devo agora refletir sobre minha conduta.
- Você não precisa se incomodar por causa de seu irmão - comentou o príncipe.
- Se as coisas chegaram a isto, é que a Sra. Epantchiná julgou seu irmão perigoso, o que significa que certas esperanças dele estavam sendo encorajadas de novo.
- Como? Que esperanças? - disse Kólia espantado. - Certamente não vai agora o senhor pensar que Agláia... Isto é impossível.- o príncipe ficou calado - - O senhor é terrivelmente cético, príncipe - acrescentou Kólia, dois minutos depois - - Tenho reparado que de algum tempo para cá o senhor vem ficando um grande cético; deu em não acreditar em nada e está sempre a imaginar coisas!... Será que usei a palavra “cético” corretamente, neste caso?
- Creio que sim, embora não tenha muita certeza eu próprio.
- Mas, pondo de lado a palavra “cético”, encontrei uma outra explicação! - exclamou Kólia - O senhor não é cético, o que o senhor é... é ciumento. O senhor está demoniacamente enciumado de Gánia, por causa de certa elegante senhorita!

     Dizendo isso, Kólia se levantou e começou a rir como talvez nunca tivesse rido antes. Estava radiante com a ideia de que o príncipe estivesse com ciúme de Agláia; mas parou logo que percebeu que o príncipe se tinha molestado de fato. Depois disso ficaram falando seriamente, com ânimo, durante uma hora, ou quase uma hora e meia.
     No dia seguinte teve Míchkin que passar a manhã toda em Petersburgo, a negócio urgente. Já era tarde, seriam cinco horas, quando, de volta para Pávlovsk, encontrou o General Epantchín na estação da estrada de ferro. O general pegou-o precipitadamente pelo braço, encarando-o como que preocupado, e arrastou o príncipe para um compartimento da primeira classe onde pudessem viajar juntos e sós. Ardia de impaciência para discutir alguma coisa importante.

- Para começar, caro príncipe, não esteja zangado comigo, e se da minha parte alguma coisa houve - esqueça-a. Eu devia ter ido vê-lo ontem, mas não fui porque temi que Lizavéta Prokófievna interpretasse isso a seu modo... A minha casa está simplesmente um inferno... Uma inescrutável esfinge se instalou lá; estou zonzo e em tudo isso não ligo pé com cabeça. Quanto a você, a meu ver, tem menos culpa do que qualquer de nós; embora, naturalmente, muita coisa se tenha dado por sua causa. Quer saber de uma coisa, príncipe? É bonito ser filantropo, mas com moderação. Eu gosto da caridade, dos corações bondosos, naturalmente, e respeito Lizavéta Prokófievna, mas...

     E neste estilo prosseguiu o general durante muito tempo; as suas palavras se foram tornando estranhamente incoerentes. Via-se que ele estava extremamente transtornado e que se debatia contra alguma coisa localizada muito além da sua compreensão.

- Tenho plena certeza de que o senhor nada tem com isso - conseguiu ele enfim se tornar mais claro -, mas eu lhe peço, como um amigo, que não nos visite por um certo tempo, até que os ventos mudem. E quanto a Evguénii Pávlovitch - continuou com extraordinária veemência - trata-se tudo de uma insensata calúnia, a mais difamante das maledicências! Trata-se de enredo, de intriga, de uma tentativa de destruir tudo para que briguemos com ele. E deixe que lhe diga baixo, no ouvido, que ainda não houve troca de uma só palavra entre nós e Evguénii Pávlovitch. Está compreendendo? Não existe compromisso de espécie alguma! Mas essa palavra deve ser dita e em breve, aliás. Trata-se, pois, de uma tentativa de estragar o rapaz! Mas com que fim? Para quê? Não atino! Ela é uma mulher espetacular, uma mulher excêntrica. Ando com tanto medo dela que nem tenho podido dormir. E que carruagem! - com cavalos brancos, realmente muito chique! Sim, é justamente o que em francês se chama chic! Quem lhe terá dado tudo isso? Eu me enganei, fiz mal, por Júpiter, anteontem, pois cheguei a pensar que fosse Evguénii Pávlovitch. Mas já verifiquei que não pode ser absolutamente. E se assim não é, qual o fim dela se intrometer? Aí é que está o enigma, aí é que está o mistério! Para guardar Evguénii Pávlovitch para si mesma? Mas lhe repito e estou pronto a jurar que ele nem a conhece e que aquele negócio de promissórias é pura invenção! E a insolência dela em dizer alto, daquela maneira: “Querido”, lá do outro lado da rua? Invencionice nefanda! Claro que devemos desprezar tudo isso e tratar Evguénii Pávlovitch com redobrado respeito. Foi o que eu já disse a Lizavéta Prokófievna. Mas deixe que lhe externe agora a minha opinião particular. Estou mais que convencido de que ela está fazendo tudo isso só para se vingar de mim pessoalmente, por causa do que houve, lembra-se? Apesar de em verdade eu não lhe ter feito nada. Mudo de cor, só em pensar naquilo. Não foi à toa que reapareceu por aqui. Pensei que essa mulher tinha ido embora de vez! Onde diabo se escondeu esse tal Rogójin? O senhor não saberá, por acaso? E eu que pensava que ela já era a Sra. Rogójina desde muito tempo!

     O homem estava de fato completamente desnorteado. Falou só ele, a viagem inteira, durante aquela hora toda do percurso; fazia perguntas a que ele mesmo respondia; tocava, segurava, largava a mão do príncipe, e de forma que este ficou mais do que convencido de que o general não desconfiava dele. E isso era o que importava ao príncipe. E para conclusão de tudo, acabou o general por lhe contar o que havia sobre o tio de Evguénii Pávlovitch que era o diretor de certo departamento em Petersburgo!:

“Em uma situação importantíssima, com setenta anos, um viveur, um gourmand, um velho aristocrata com hábitos... Ah! Ah! Disseram-me que lhe tinham falado de Nastássia Filíppovna e que andou atrás dela. Fui vê-lo não há muito tempo. Não me pôde receber, não estava passando bem. Mas é um velho muito rico, riquíssimo, um homem de importância e... praza a Deus, ainda há de florescer por muitos anos, mas Evguénii Pávlovitch acabará entrando na posse de todo esse dinheiro. Claro, claro... Ainda assim, tenho algum receio, certo receio muito vago... Há qualquer coisa no ar, um pressentimento que esvoaça como um corvo. Tenho certo receio, certo receio!...”

     E foi somente no terceiro dia, conforme já dissemos, que se deu a formal reconciliação dos Epantchín com Liév Nikoláievitch.

O Idiota: Segunda Parte (11c) - O príncipe corou 
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