O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
10.
Ippolít apenas umedeceu os lábios, logo depondo sobre a mesinha a xícara de chá trazida por Vera Liébediev; e ficou olhando em torno, meio confuso. Depois começou a falar, com uma espécie de precipitação súbita:
- Está vendo estas
xícaras, Lizavéta Prokófievna? Estas xícaras de porcelana chinesa... Creio que
são legítimas... Liébediev as traz guardadas a chave sempre no aparador,
expostas como em uma vitrina, como é de hábito. Fazem parte do dote trazido
pela mulher dele... Sempre guardadas! Mas agora estão aqui fora, estão sendo
usadas somente por causa da senhora... Em sua honra, tão alegre ficou ele de ver
a senhora aqui.
E foi como se esgotasse o assunto, embora ficasse com ar de
querer prosseguir.
Evguénii Pávlovitch disse ao ouvido de Míchkin:
- Envergonhou-se. Eu já
esperava por isso. É perigoso, não acha? Sinal certo de que, por despeito, tentará
fazer alguma coisa tão excêntrica que a própria generala ficará atrapalhada.
O príncipe ficou a olhar para ele de modo indagador.
- Não receia qualquer
disparate? Eu por mim não receio. Pelo contrário, até gostaria, pois na verdade
estou ansioso para que a nossa querida Lizavéta Prokófievna seja punida... e
ainda hoje, até mesmo já se for possível. E não quero sair daqui sem assistir a
isso. O senhor parece estar com febre...?
- Oh! Não se incomode. De fato, não estou bem – respondeu o príncipe, sem dar
atenção, evidenciando mesmo certa impaciência.
- É que ouviu falarem no seu
nome. - era Ippolít conversando a seu respeito, por entre risadas histéricas.
Dizia:
-
A senhora não acredita? Pois não acredite; mas o príncipe acreditaria
imediatamente e não se surpreenderia nada.
- Está ouvindo, príncipe? Ouça o que
ele está dizendo. - e Lizavéta Prokófievna se voltou para ele.
Pessoas riam, perto. Intrometido como sempre, Liébediev avançou até junto de
Lizavéta Prokófievna, muito agitado.
- Ele estava me dizendo que este palhaço
aqui, o seu proprietário, foi.., quem corrigiu para aquele cavalheiro o artigo que
leram esta noite a seu respeito. - o príncipe fitou Liébediev, com surpresa.
- Fale logo de uma vez! - exclamou Lizavéta Prokófievna batendo com o pé.
- Fale logo de uma vez! - exclamou Lizavéta Prokófievna batendo com o pé.
- Bem - balbuciou o príncipe, examinando Liébediev - vejo agora que ele o fez.
- É a santa verdade, Excelência - respondeu Liébediev firmemente, sem a menor hesitação, depondo a mão sobre o peito.
- É a santa verdade, Excelência - respondeu Liébediev firmemente, sem a menor hesitação, depondo a mão sobre o peito.
- E parece orgulhar-se disso! -
observou ela quase pulando da cadeira.
- Eu sou um homem vil - sussurrou
Liébediev, cuja cabeça pendia mais e mais à medida que com a mão ele batia no
peito.
- Que tenho eu com isso, se o senhor é uma pobre criatura? Ele pensa que
se justifica dizendo que é uma pobre criatura! E o senhor não tem vergonha,
príncipe, de tratar com gente tão à-toa? Pergunto mais uma vez. A isso não se
perdoa.
- O príncipe me perdoará! - exclamou Liébediev com ar comovido.
- Foi só por
nobreza de alma - disse Keller com voz retumbante indo até eles e se dirigindo
imediatamente a Lizavéta Prokófievna -, foi só por bondade, senhora, e para
evitar deixar mal um amigo que se tinha comprometido, que eu não disse nada,
esta noite, a respeito das correções, apesar dele ter sugerido que nos atirassem
escadas abaixo, como a senhora muito bem ouviu. Para pôr as coisas em sua
verdadeira luz, confesso que de fato recorri a ele, como a uma pessoa
competente e lhe ofereci seis rublos, não para corrigir o estilo, mas simplesmente
para me dar os faltos que, em sua grande maioria, me eram desconhecidos. As
polainas, o apetite em casa do professor suíço, os cinqüenta rublos em vez de
duzentos e cinquenta; toda a arrumação, toda ela pertence a ele. Vendeu-me as
informações por seis rublos, mas o estilo, lá isso não senhora, o estilo ele não
corrigiu.
- Devo observar - atalhou Liébediev com febril impaciência e com uma voz
arrastada, enquanto a risada crescia cada vez mais - que só corrigi a primeira
metade do artigo, porque quando chegamos ao meio não concordamos e até
brigamos por causa de um ponto; não corrigi, pois, a segunda parte, não sendo
portanto de estranhar a má gramática dessa segunda metade, e que não pode ser
à minha conta...
- E em tudo isso o que aborrece é essa parte! - observou Prokófievna. - Permita o
senhor que lhe pergunte quando foi corrigido o artigo - disse Evguénii Pávlovitch,
dirigindo-se a Keller.
- Ontem de manhã - respondeu Keiler. - Nós nos encontramos tendo cada
qual prometido, sob palavra de honra, guardar segredo.
- Isto enquanto se
arrastava diante de você com protestos de devoção. Que corja!
Não quero mais o seu Púchkin e não consentirei que sua filha venha à minha casa
visitar-me. - Lizavéta Prokófievna estava a ponto de erguer-se, mas logo se virou irritada para
Ippolít, que ria. - O senhor acha que eu vim para aqui como palhaço, seu moço?
- Deus me livre
de pensar isso! - respondeu Ippolít com um sorriso forçado - mas o que mais me
impressiona, de tudo, é a sua incrível excentricidade, Lizavéta Prokófievna. Confesso que encetei essa conversa sobre Liébedíev de propósito; eu sabia que
efeito isso teria sobre a senhora, e sobre a senhora só, pois o príncipe certamente
perdoará... e até arranjará uma desculpa para ele, em seu espírito, agora
mesmo, muito provavelmente. Não é verdade, príncipe? - faltava-lhe o ar; a sua
estranha excitação aumentava a cada palavra.
- Bem! - disse Lizavéta
Prokófievna, colericamente, admirada do tom dele. - Bem! E daí?
- Já ouvi muita coisa a respeito da senhora, em assuntos desta mesma natureza..,
e com grande prazer!... E assim fui aprendendo a respeitá-la! - continuou ele.
O que ele disse foi isso, conquanto com tais palavras quisesse significar coisa
muito diferente. Falou com uma certa ironia e ainda por cima se achava excitado
de uma forma diversa da habitual, como se nisso houvesse inquietação.
Mostrava-se confuso e perdia a cada palavra o fio do que estava dizendo. Tudo
isso, mais a sua aparência tuberculosa e aqueles seus olhos estranhamente
fulgurantes e aloucados não podiam deixar de chamar a atenção geral.
- Eu devia me surpreender, embora nada saiba a respeito do mundo (do que
estou bem ciente), não só de a senhora permanecer em nossa companhia -
apesar de não sermos companhia decente para a senhora – como também de
consentir que essas jovens escutassem um caso escandaloso, muito embora já
devam ter lido tudo isso em romances. Não sei se me explico bem... porque estou
meio zonzo, mas, seja lá como for, quem, a não ser a senhora, permaneceria
aqui... a pedido daquele garoto (sim, garoto, devo confessar) para passar a noite
conosco e tomar parte em tudo, muito embora estivesse farta de saber que no dia
seguinte se envergonharia?... (Concordo que não me estou
exprimindo lá muito direito.) Eu aprovo tudo isso, extremamente; e
profundamente respeito tudo isso, embora qualquer pessoa possa ver pela
expressão do rosto do marido da senhora quanto tudo isto lhe parece impróprio.
Eh! Eh! - cacarejou ele, atarantado de todo; e repentinamente deu em tossir tanto
que por uns dois minutos não pôde prosseguir,
- Tanto falou que perdeu o fôlego! -
pronunciou Lizavéta Prokófievna, friamente, observando-o com uma curiosidade
severa.
- Bem, meu caro camarada, já chega. Precisamos ir indo
- Permita-me
que lhe diga também, da minha parte - irrompeu irritado, perdendo a paciência,
Iván Fiódorovitch -, que meu amigo, e vizinho, e que de modo algum lhe
compete criticar Lizavéta Prokófievna em qualquer de suas ações e nem,
tampouco, se referir alto e na minha cara, ao que está escrito no meu semblante,
compreendeu o senhor? E se minha senhora permaneceu aqui - prosseguiu com
uma irritação que a cada palavra crescia mais - foi por puro espanto, senhor, e
por um interesse, compreensível hoje em dia a todos, pelo espetáculo dado pela
gente nova. Eu próprio fiquei, como quem para na rua quando vê algo que...
que... cause... curiosidade - completou Evguénii Pávlovitch.
- Excelente e verídico. - e Sua Excelência, quase perplexo pela comparação,
ficou radiante.
- Precisamente, como um caso raro. Mas, seja lá como for, o que
espanta mais do que qualquer outra coisa e me causa pena, se assim,
gramaticalmente, se pode dizer que o senhor não é capaz, seu moço, de
compreender que Lizavéta Prokófievna ainda ficou mais tempo porque o senhor
está doente - se é que realmente está desenganado - ou, melhor explicando, ficou
por compaixão, ficou por causa do seu angustiante pedido, senhor, e que,
portanto, nenhum desdouro, absolutamente nenhum, causa isso ao nome dela, ao
seu caráter, agora, ou depois! Lizavéta Prokófievna! - concluiu o general com o
rosto afogueado - Se pretende ir, despeça-se então do príncipe...
- Obrigado pela lição, general - aparteou Ippolít, falando sério e olhando-o
pensativo.
- Vamos, mamãe. Há quanto tempo já deveríamos ter ido! - disse Agláia, de
modo colérico e impaciente, erguendo-se da cadeira.
- Dois minutos mais, caro
Iván Fiódorovitch, se é que permite.
Lizavéta Prokófievna voltou-se com
dignidade para o esposo:
- Creio que ele esteja com febre e com delírio. Basta
ver-lhe os olhos. Ele não pode ficar assim. Liév Nikoláievitch, não poderia ele
passar a noite aqui,
com você, para não ter de ir para Petersburgo, de noite, nesse estado? Cher
prince, espero que não se aborreça - acrescentou, dirigindo-se ao Príncipe
Chtch... logo a seguir dizendo à filha: - Aleksándra, venha cá, endireite esse penteado, querida.
Ela própria endireitou o penteado da filha, o qual, aliás, estava perfeitamente
direito, e a beijou. Só para isso a chamara.
- Bem que eu a cuidava suscetível de
uma expansão!... – recomeçou Ippolít, despertando da sua rêverie. - Sim, era isso
que eu queria dizer. - mostrava-se satisfeito como se repentinamente se tivesse
lembrado de qualquer coisa. - Aqui Burdóvskii, sinceramente desejava proteger
a própria mãe, não é? E acontece que a desgraçou. Aqui o príncipe deseja ajudar
Burdóvskii e com toda a sinceridade lhe oferece a sua amizade, uma fortuna, e
talvez seja entre todos nós o único que não sinta aversão por ele; e todavia, estão
um diante do outro se olhando como a um inimigo! Ah! Afr Ah! Todos aqui
detestam Burdóvskii porque acham que se comportou de maneira hedionda e
incrível com sua mãe. É isso, ou não é isso? Todos aqui gostam imensamente da
beleza e da elegância das formas e é só isso o que lhes importa. É ou não é
verdade? Desde muito reparei que é isso o que importa aqui. Ora bem. deixem
que lhes diga que nenhum dos senhores aqui amou tanto sua mãe como
Burdóvskii ama a dele. Eu sei, príncipe, que o senhor, às escondidas, mandou
dinheiro para a mãe de Burdóvskii. por intermédio de Gánia, aposto até, eh, eh,
eh - ria histericamente - e aposto agora como Burdóvskii o vai acusar de
indelicadeza e falta de respeito para com a mãe dele. Juro que assim será. Ah!
Ah Ah! A essa altura ficou, de novo, sufocado e tossiu.
- Bem, é tudo? Agora,
chega. Já disse tudo o que tinha a dizer? Bem, agora vá dormir; está com febre -
interrompeu-o Lizavéta Prokófievna, impaciente, com os olhos arregalados para
ele.
- Meu Deus! Ele ainda quer falar mais!
- O senhor está rindo, não é? Por que é que o senhor continua a rir de mim?
Reparo que o senhor está sempre a rir de mim - disse Ippolít virando-se para
Evguénii Pávlovitch, irritadíssimo. Este, realmente, estava rindo.
- Eu só queria
lhe perguntar, Sr. ... Ippolít... desculpe-me, esqueci o seu nome.
- Sr. Tieriéntíev -
disse o príncipe.
- Sim, Tieriéntiev. Obrigado, príncipe. Já me fora mencionado antes, mas me
esqueci... Eu queria perguntar-lhe, Sr. Tieriéntíev, se é verdade o que ouvi dizer:
que o senhor acha que lhe bastará falar. de uma janela, pelo espaço
apenas de um quarto de hora, para que eles concordem com o senhor e o sigam
imediatamente.
- É muito possível que eu tenha falado assim - respondeu Ippolít, procurando
lembrar-se.
- Com certeza falei - acrescentou logo, ficando ainda mais sequioso e olhando
para Evguénii Pávlovitch. - Por quê? E daí?
- Absolutamente por nada. Eu só
queria saber para orientação minha.
Evguénii Pávlovitch ficou calado, mas
Ippolít continuou a olhá-lo com um ar impaciente de espera.
- Bem, vocês acabaram? - perguntou Lízavéta Prokófievna - Acabem logo com
isso, amigos; ele já devia estar deitado. Ou vocês acham que ainda não
acabaram? - estava irritadíssima.
- Sinto-me tentado a acrescentar - prosseguiu Evguénii Pávlovitch, sorrindo - que
tudo quanto ouvi de seus companheiros, Sr. Tieriéntiev, e tudo quanto o senhor
disse ainda agora, com um talento inconfundível, advém, na minha opinião, da
teoria da vitória do direito antes de tudo, à parte tudo e com exclusão de tudo e
talvez mesmo antes de saber em que consista esse direito. Mas talvez eu esteja
enganado.
- Claro que está enganado. Não chego mesmo a compreendê-lo. Adiante!
Houve
um sussurro em um dos cantos. O sobrinho de Liébediev estava cochichando
qualquer coisa.
- Ora, é pouca coisa mais - continuou Evguénii Pávlovitch. - Só quero observar
com isto que, sob esse ponto de vista, se pode facilmente saltar para o direito da
força, o direito do braço individual, da vontade pessoal, como já tantas vezes tem
acontecido na história do mundo. Proudhon chegou ao direito da força. Na guerra
americana muitos dos liberais mais avançados se declararam do lado dos
plantadores, sob a base de que os negros são negros, e inferiores à raça branca e,
por conseguinte, que o direito da força estava do lado dos brancos...
- Pois bem! Portanto o senhor não nega que a força seja direito?
- E que mais? Só
me resta dizer que os senhores são lógicos. Eu só queria observar que do direito
da força ao direito dos tigres e dos crocodilos, mesmo para o direito dos Danílóv
e Górskii, não há mais do que um passo.
- Não sei. E que mais?
Ippolít mal escutava o que Evguénií Pávlovitch dizia e respondia “Pois
bem!” e “Que mais?” mais como cacoete apanhado em argumentos do que por
atenção ou curiosidade.
- Nada mais... É tudo.
- Não pense, porém, que estou zangado com o senhor - concluiu Ippolít,
inesperadamente. E, sem saber o que estava fazendo, lhe estendeu a mão, a
sorrir.
Evguénii Pávlovitch primeiramente ficou surpreendido; depois, com a maior
seriedade, tocou a mão que lhe era oferecida como se estivesse aceitando uma
desculpa.
- Devo ajuntar - ponderou com o mesmo modo equivocamente respeitoso - a
minha gratidão para com o senhor pela atenção com que me escutou, pois,
segundo inúmeras vezes observei, os nossos liberais são incapazes de permitir que
alguém mais tenha uma convicção própria sem que logo se defronte com o
antagonista desdenhoso, ou coisa pior.
- Nisso tem o senhor perfeitamente razão - observou o General Epantchín.
E
cruzando as mãos atrás das costas se retirou com ar aborrecido para os degraus
da varanda, onde bocejou, cheio de tédio.
- Bem, desta vez, basta, meu amigo -
anunciou Lízavéta Prokófievna -, pois até você? - disse, referindo-se a Evguénii
Pávlovitch.
- Já é tarde - ponderou Ippolít, levantando-se de modo preocupado, e
quase alarmado, olhando em volta com um ar perplexo. - Detive-os tanto tempo.
Quis dizer tudo... Eu pensava que todos pela última vez.., foi tudo imaginação...
continua página 265...
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O Idiota: Segunda Parte (10a) - Ippolít apenas umedeceu os lábios
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