sábado, 15 de fevereiro de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Segunda Parte (11b) - Disse, entre outras coisas

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Segunda Parte

11.

continuando...

     Disse, entre outras coisas, que Nastássia Filíppovna estava em Pávlovsk havia somente uns quatro dias, mas que já atraía as atenções gerais. Que se instalara com Dária Aleksiéievna em uma pequena casa desgraciosa na Rua dos Marinheiros, mas que a sua carruagem era talvez a mais luxuosa de Pávlovsk. Que a não largava uma chusma de seguidores, velhos e moços, sua carruagem sendo acompanhada muitas vezes por homens a cavalo. Que ela, Nastássia Filíppovna, continuava muito caprichosa na escolha de amigos, recebendo somente aqueles com os quais simpatizava. Que ainda assim se estava formando um verdadeiro regimento à sua volta, dispondo até de campeões caso precisasse. Que certo senhor que morava em uma vila de veraneio já brigara com uma senhorita de quem era formalmente noivo. E que um general escorraçara o filho, pelo mesmo motivo. Que ela aparecia constantemente pelas ruas guiando a parelha, e que a acompanhava uma jovem encantadora de uns dezesseis anos no máximo, parenta longe de Dária Aleksiéievna. Que essa jovem cantava muito bem, de maneira que a casa, de noite, atraía as atenções gerais. Que, no entanto, Nastássia Filíppovna se comportava com extrema conveniência, vestindo-se sem alarde e com extraordinário bom gosto, a ponto de todas as damas invejarem sua elegância, sua beleza e sua carruagem.

- O excêntrico incidente de ontem - aventurou Gánia - foi decerto premeditado. Ninguém podia esperar por uma coisa dessas, dada a compostura que até então manteve: para se descobrir nela defeito ou falta, só procurando muito ou inventando. Mas não deve haver gente tão baixa assim para se encarregar disso - concluiu ele, certo de que o príncipe lhe iria perguntar por que chamara ao incidente da véspera de “premeditado” e por que não haveria gente tão baixa assim para agir contra ela.

     Gánia espraiou-se quanto a Evguénii Pávlovitch sem que nada lhe fosse perguntado a tal respeito; e o mais estranho é que entrou em tal assunto sem o menor pretexto. Na opinião dele, Evguénii Pávlovitch antes não conhecia Nastássia Filíppovna e, mesmo agora a devia conhecer muito por alto, pois lhe tinha sido apresentado eventualmente havia uns quatro dias apenas ao sair a passeio, não tendo ido, provavelmente, vez alguma à casa dela. Quanto às promissórias, havia algum fundamento; Gánia nem tinha dúvida. A fortuna de Evguénii Pávlovitch era de fato vultosa, mas certos negócios ligados à sua propriedade estavam realmente confusos. E ao chegar a este ponto deveras interessante, Gánia parou. Assim pois, relativamente ao escândalo da véspera feito por Nastássia Filíppovna, não fez ele nenhum outro comentário além do que acima foi exposto.
     Finalmente apareceu Varvára Ardaliónovna, procurando Gánia. Ficou só um minuto; participou (sem ter sido perguntada) que Evguénii Pávlovitch fora, aquele dia, a Petersburgo e talvez ficasse lá até o dia seguinte. Que Ptítsin, seu marido, também estava em Petersburgo, provavelmente por causa dos negócios de Evguénii Pávlovitch; sabia disso muito por alto. E ao se ir acrescentou que Lizavéta Prokófievna estivera todo o dia com o diabo no corpo; e que, o que era pior, Agláia brigara com a família inteira, não apenas com o pai e a mãe, mas até com as irmãs, “o que constituía um péssimo sinal”.
     Depois de lhe terem dado, assim meramente de passagem, este último retalho de notícias (que era de extrema importância para o príncipe) irmão e irmã lá se foram. E Gánia não pronunciou uma só palavra a respeito do caso do “filho de Pavlíchtchev”. E assim agira, decerto, por falsa delicadeza, para poupar os sentimentos do príncipe. Ainda assim, o príncipe lhe agradeceu, mais uma vez, a maneira cuidadosa pela qual se conduzira no caso, ficando contentíssimo de se ver sozinho, afinal
     Deixou a varanda, atravessou a estrada e entrou parque adentro. Precisava pensar muito antes de decidir certo passo. E nem tal “passo” era dos que se possam dar a esmo, e sim dos que só se devem dar depois de madura deliberação.
     Veio-lhe então uma terrível vontade de deixar tudo e de voltar para o lugar de onde tinha vindo: ir indo, até chegar a qualquer região remota; ir, imediatamente, sem sequer dizer adeus a quem quer que fosse. Um pressentimento lhe veio de que se permanecesse ali, poucos dias que fosse, seria arrastado a esse mundo, irrevogavelmente, e que estragaria a sua vida dentro disso, para sempre. Mas nem dez minutos duraram tais considerações. Logo caiu em si e verificou que lhe seria “impossível” ir embora, que isso seria quase covardia. Tantas e tais eram as dificuldades que se lhe antolhavam quanto lhe cabia o dever de solvê-las ou, no mínimo, de fazer tudo quanto pudesse para solvê-las.
     Absorvido em tais pensamentos regressou a casa depois de um passeio de menos de um quarto de hora.
     E nesse momento se sentia profundamente infeliz. Liébediev ainda não regressara; por isso foi que lá pela noitinha Keller conseguiu irromper diante do príncipe entornando confidências e confissões, apesar de não estar bêbado. Declarou francamente que estava ali, diante de Míchkin, para lhe contar toda a sua vida e que fora para fazer isso que ficara em Pávlovsk. Não houve a menor possibilidade de o príncipe se livrar dele. Nada o induziria a ir embora. Keller ali estava preparado para um discurso interminável, engrolando incoerências. Mas, sem mais aquela, quase logo depois das primeiras palavras, passou logo do preâmbulo à conclusão, anunciando que “tinha perdido a tal ponto qualquer traço de moralidade (e apenas por falta de crença no Todo-Poderoso!) que se tornara até gatuno”.

- Pode o senhor imaginar uma coisa destas?
- Escute, Keller. Se eu estivesse em seu lugar só haveria de confessar isso em caso de muita necessidade – começou o príncipe. - Mas talvez você faça coisas assim contra si mesmo, de propósito!
- Ao senhor, só, só ao senhor, e isso mesmo para promover o meu aperfeiçoamento. A mais ninguém. Morrerei levando o meu segredo para a tumba. Mas, príncipe, se soubesse, se pudesse vir a ver quão difícil é hoje em dia se arranjar dinheiro! Como há de uma pessoa arranjá-lo, permita que lhe pergunte? A resposta é a mesma: “Traga ouro e diamantes e lhe daremos alguma coisa por eles!” Aí está por que eu não o arranjo. Pode o senhor imaginar uma coisa destas? Perdi o meu caráter, acabei por perdê-lo de tanto esperar, esperar. “Pode-me dar alguma coisa por esmeraldas?”, perguntei então. “Claro, por esmeraldas também”, disse o homenzinho. “Bravos, então está bem”, disse eu! E, pondo o meu chapéu, raspei-me, apostrofando-os: “O que vocês são, são uns canalhas. Danem-se! Sim, por Júpiter!”
- E você tinha esmeraldas, mesmo?
- Lérias! Ó príncipe, que ideia doce, inocente, pastoral, digo até mesmo cândida, que o senhor tem da vida!

     O príncipe acabou sentindo não propriamente pena desse homem, mas indisposição por causa dele. Ocorreu-lhe ajudar de qualquer forma essa criatura, mediante alguma boa influência. Não, no caso, influência sua, pois não se considerou capaz de poder exercê-la, por muitos motivos; não que deixasse de confiar em si mesmo, ruas devido ao seu feitio sui generis de encarar as coisas. E assim o foi aturando, uma vez vencido o desejo de se ver livre dele. Keller, com extraordinária presteza, confessou ações sobre as quais pareceria inconcebível que alguém quisesse conversar. A cada nova história asseverava que positivamente estava arrependido e “cheio de lágrimas”, mas, falando, via- se que estava orgulhoso de as ter cometido. E se tornou tão absurdo que, por fim, tanto ele como o príncipe se riam a perder.

- A grande coisa é que você tem uma espécie de confiança infantil, e uma extraordinária franqueza – disse no fim, o príncipe - E, quer saber, isso faz com que muita, muita coisa lhe seja perdoada!
- Eu tenho alma nobre, nobre e cavalheiresca! - confirmou Keller enternecido - Mas quer saber de uma coisa, príncipe, tudo isso não passa de sonho, ou - como direi? - de bravata; e sempre dá em nada. E por que será? Não compreendo!
- Não descoroçoe! Agora se pode dizer, com certeza, que você me fez um relato total de tudo. Parece-me que até será impossível acrescentar qualquer coisinha mais ao que você me disse, não é?
- Impossível? - exclamou Keller, quase com ar aflito - Oh, príncipe, como o senhor interpreta, de uma maneira completa, à la Suisse, a natureza humana!
- Acha então possível acrescentar mais alguma coisa? - indagou o príncipe, com um espanto acanhado - Ora, diga lá, Keller, que é que deseja de mim e por que foi que veio a mim com essa confissão?
- Do senhor? O que desejo? Em primeiro lugar, causa prazer assistir à sua simplicidade; dá gosto sentar e ficar ouvindo o senhor. A gente vê logo que tem diante de si uma pessoa virtuosa, nem há dúvida; e, em segundo lugar, em segundo lugar... - e ficou confuso.
- Quem sabe se você não queria me pedir dinheiro emprestado? - foi-lhe ao encontro do pensamento o príncipe com ar grave e singelo, um pouco timidamente, até.

     Keller não pôde deixar de ficar sobressaltado. Assestou imediatamente, cheio de admiração, o olhar no rosto do príncipe e arrumou com o punho fechado, violentamente, sobre a mesa. 

- Ora aí está como se derruba um sujeito, de um golpe só! Palavra de honra, príncipe, que simplicidade, que inocência, coisa nunca vista nem mesmo na Idade do Ouro! Como de uma vez só o senhor traspassa o âmago de um sujeito, como uma flecha, com sua tão profunda observação psicológica! Mas, com licença, Alteza! Isto requer, está a pedir uma explicação, pois estou traspassado... Naturalmente, em todo este meu ímpeto, o meu intento era pedir-lhe dinheiro emprestado. Mas o senhor me perguntou como se não achasse repreensível, como se fosse uma coisa mais que lógica.
- Sim... de você só podia ser mesmo assim.  
- E isso não o aborrece?
- Não!... Por quê?
- Escute, príncipe. Tenho estado por aqui, desde ontem; primeiro, uma deferência toda especial para com o arcebispo francês Bourdaloeu - estive saboreando-o em casa de Liébediev até às três da madrugada; e em segundo lugar, e esse é que é o principal (e agora solenemente lhe faço o juramento de que estou a dizer a santa verdade!) fui ficando porque eu desejava, em lhe fazendo uma completa e sincera confissão - como direi? - promover o meu aperfeiçoamento. E pensando nisso adormeci, banhado em lágrimas, lá pelas quatro da madrugada. Acreditará o senhor na palavra de homem de honra, se eu disser que logo que caí no sono, sinceramente cheio por dentro, e - como direi? - por fora, de lágrimas (sim, eu estava soluçando deveras, lá disso me recordo eu!), um pensamento infernal me sobreveio? “E por que, uma vez tudo feito e dito, não lhe pedir dinheiro emprestado, depois da minha confissão?” E o caso foi que preparei a minha confissão - como direi? - assim à guisa de um fricassé, tendo lágrimas como molho, para calçar o caminho com aquelas lágrimas de modo a abrandá-lo e sacar-lhe cento e cinquenta rublos. Não acha o senhor que isso foi vil?  
- O mais provável é que isso não se tenha dado assim; o mais certo deve ter sido que ambas as coisas vieram ao mesmo tempo. Os dois pensamentos lhe acudiram juntos. Aliás, isso acontece muitas vezes. Comigo se dá isso constantemente. Parece-me, porém, que seja um mau sinal. E quer saber de uma outra coisa, Keller? Não me farto de me repreender por isso. Você deve ter estado a falar como se fosse eu, ainda agora. Às vezes chego a imaginar que todo o mundo seja assim - continuou o príncipe com ar sério e de profundo interesse - tanto que eu estava começando a desculpar-me, pois é extremamente difícil Lutar contra esses pensamentos duplos. Eu tenho tentado. Só Deus sabe como eles nascem e surgem no espírito. Mas você chama a isso simplesmente vilania! Agora comecei a ter medo desses pensamentos, outra vez. Seja lá como for, não sou seu juiz. Mas, a meu ver, não se pode chamar isso de vilania, apenas. Que acha você? Você estava agindo fraudulentamente para obter o meu dinheiro com Lágrimas; mas, ao mesmo tempo, você jura que também havia um outro motivo para a sua confissão. Logo havia tanto um motivo honroso, como um outro, mercenário. Quanto ao dinheiro, você precisa dele para viver dissolutamente, não é? Por conseguinte, depois de uma tal confissão isso naturalmente é fraqueza. É afinal como há de você desistir de viver dissolutamente, de uma hora para outra? É impossível, eu sei. Que fazer, então? O melhor é deixar isso com a sua consciência. Que acha?

     E o príncipe olhou Keller com grande interesse. O problema das idéias duplas tinha evidentemente ocupado o seu espírito por algum tempo.

- Esplêndido! Palavra que não percebo por que. afinal de contas, chamam o senhor de idiota! – exclamou Keller.

O Idiota: Segunda Parte (11b) - Disse, entre outras coisas
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