O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Segunda Parte
11.
continuando...
Disse, entre outras coisas, que Nastássia Filíppovna estava em Pávlovsk havia somente uns quatro dias, mas que já atraía as atenções gerais. Que se instalara com Dária Aleksiéievna em uma pequena casa desgraciosa na Rua dos Marinheiros, mas que a sua carruagem era talvez a mais luxuosa de Pávlovsk. Que a não largava uma chusma de seguidores, velhos e moços, sua carruagem sendo acompanhada muitas vezes por homens a cavalo. Que ela, Nastássia Filíppovna, continuava muito caprichosa na escolha de amigos, recebendo somente aqueles com os quais simpatizava. Que ainda assim se estava formando um verdadeiro regimento à sua volta, dispondo até de campeões caso precisasse. Que certo senhor que morava em uma vila de veraneio já brigara com uma senhorita de quem era formalmente noivo. E que um general escorraçara o filho, pelo mesmo motivo. Que ela aparecia constantemente pelas ruas guiando a parelha, e que a acompanhava uma jovem encantadora de uns dezesseis anos no máximo, parenta longe de Dária Aleksiéievna. Que essa jovem cantava muito bem, de maneira que a casa, de noite, atraía as atenções gerais. Que, no entanto, Nastássia Filíppovna se comportava com extrema conveniência, vestindo-se sem alarde e com extraordinário bom gosto, a ponto de todas as damas invejarem sua elegância, sua beleza e sua carruagem.
- O excêntrico incidente de ontem -
aventurou Gánia - foi decerto premeditado. Ninguém podia esperar por uma
coisa dessas, dada a compostura que até então manteve: para se descobrir nela
defeito ou falta, só procurando muito ou inventando. Mas não deve haver gente
tão baixa assim para se encarregar disso - concluiu ele, certo de que o príncipe
lhe iria perguntar por que chamara ao incidente da véspera de “premeditado” e
por que não haveria gente tão baixa assim para agir contra ela.
Gánia espraiou-se
quanto a Evguénii Pávlovitch sem que nada lhe fosse perguntado a tal respeito; e
o mais estranho é que entrou em tal assunto sem o menor pretexto. Na opinião
dele, Evguénii Pávlovitch antes não conhecia Nastássia Filíppovna e, mesmo
agora a devia conhecer muito por alto, pois lhe tinha sido apresentado
eventualmente havia uns quatro dias apenas ao sair a passeio, não tendo ido,
provavelmente, vez alguma à casa dela. Quanto às promissórias, havia algum
fundamento; Gánia nem tinha dúvida. A fortuna de Evguénii Pávlovitch era de
fato vultosa, mas certos negócios ligados à sua propriedade estavam realmente
confusos. E ao chegar a este ponto deveras interessante, Gánia parou. Assim pois,
relativamente ao escândalo da véspera
feito por Nastássia Filíppovna, não fez ele nenhum outro comentário além do
que acima foi exposto.
Finalmente apareceu Varvára Ardaliónovna, procurando Gánia. Ficou só um
minuto; participou (sem ter sido perguntada) que Evguénii Pávlovitch fora,
aquele dia, a Petersburgo e talvez ficasse lá até o dia seguinte. Que Ptítsin, seu
marido, também estava em Petersburgo, provavelmente por causa dos negócios
de Evguénii Pávlovitch; sabia disso muito por alto. E ao se ir acrescentou que
Lizavéta Prokófievna estivera todo o dia com o diabo no corpo; e que, o que era
pior, Agláia brigara com a família inteira, não apenas com o pai e a mãe, mas
até com as irmãs, “o que constituía um péssimo sinal”.
Depois de lhe terem dado,
assim meramente de passagem, este último retalho de notícias (que era de
extrema importância para o príncipe) irmão e irmã lá se foram. E Gánia não
pronunciou uma só palavra a respeito do caso do “filho de Pavlíchtchev”. E
assim agira, decerto, por falsa delicadeza, para poupar os sentimentos do
príncipe. Ainda assim, o príncipe lhe agradeceu, mais uma vez, a maneira
cuidadosa pela qual se conduzira no caso, ficando contentíssimo de se ver
sozinho, afinal
Deixou a varanda, atravessou a estrada e entrou parque adentro.
Precisava pensar muito antes de decidir certo passo. E nem tal “passo” era dos
que se possam dar a esmo, e sim dos que só se devem dar depois de madura
deliberação.
Veio-lhe então uma terrível vontade de deixar tudo e de voltar para o lugar de
onde tinha vindo: ir indo, até chegar a qualquer região remota; ir, imediatamente,
sem sequer dizer adeus a quem quer que fosse. Um pressentimento lhe veio de
que se permanecesse ali, poucos dias que fosse, seria arrastado a esse mundo,
irrevogavelmente, e que estragaria a sua vida dentro disso, para sempre. Mas
nem dez minutos duraram tais considerações. Logo caiu em si e verificou que lhe
seria “impossível” ir embora, que isso seria quase covardia. Tantas e tais eram as
dificuldades que se lhe antolhavam quanto lhe cabia o dever de solvê-las ou, no
mínimo, de fazer tudo quanto pudesse para solvê-las.
Absorvido em tais
pensamentos regressou a casa depois de um passeio de menos de um quarto de
hora.
E nesse momento se sentia profundamente infeliz. Liébediev ainda não
regressara; por isso foi que lá pela noitinha Keller conseguiu irromper diante do
príncipe entornando confidências e confissões, apesar de não estar bêbado.
Declarou francamente que estava ali, diante de Míchkin, para lhe contar toda a
sua vida e que fora para fazer isso que ficara em Pávlovsk. Não houve a menor
possibilidade de o príncipe se livrar dele. Nada o
induziria a ir embora. Keller ali estava preparado para um discurso
interminável, engrolando incoerências. Mas, sem mais aquela, quase logo depois
das primeiras palavras, passou logo do preâmbulo à conclusão, anunciando que
“tinha perdido a tal ponto qualquer traço de moralidade (e apenas por falta de
crença no Todo-Poderoso!) que se tornara até gatuno”.
- Pode o senhor imaginar
uma coisa destas?
- Escute, Keller. Se eu estivesse em seu lugar só haveria de
confessar isso em caso de muita necessidade – começou o príncipe. - Mas talvez
você faça coisas assim contra si mesmo, de propósito!
- Ao senhor, só, só ao
senhor, e isso mesmo para promover o meu aperfeiçoamento. A mais ninguém.
Morrerei levando o meu segredo para a tumba. Mas, príncipe, se soubesse, se
pudesse vir a ver quão difícil é hoje em dia se arranjar dinheiro! Como há de
uma pessoa arranjá-lo, permita que lhe pergunte? A resposta é a mesma: “Traga
ouro e diamantes e lhe daremos alguma coisa por eles!” Aí está por que eu não o
arranjo. Pode o senhor imaginar uma coisa destas? Perdi o meu caráter, acabei
por perdê-lo de tanto esperar, esperar. “Pode-me dar alguma coisa por
esmeraldas?”, perguntei então. “Claro, por esmeraldas também”, disse o
homenzinho. “Bravos, então está bem”, disse eu! E, pondo o meu chapéu, raspei-me, apostrofando-os: “O que vocês são, são uns canalhas. Danem-se! Sim, por
Júpiter!”
- E você tinha esmeraldas, mesmo?
- Lérias! Ó príncipe, que ideia doce, inocente, pastoral, digo até mesmo cândida,
que o senhor tem da vida!
O príncipe acabou sentindo não propriamente pena desse homem, mas
indisposição por causa dele. Ocorreu-lhe ajudar de qualquer forma essa criatura,
mediante alguma boa influência. Não, no caso, influência sua, pois não se
considerou capaz de poder exercê-la, por muitos motivos; não que deixasse de
confiar em si mesmo, ruas devido ao seu feitio sui generis de encarar as coisas. E
assim o foi aturando, uma vez vencido o desejo de se ver livre dele. Keller, com
extraordinária presteza, confessou ações sobre as quais pareceria inconcebível
que alguém quisesse conversar. A cada nova história asseverava que
positivamente estava arrependido e “cheio de lágrimas”, mas, falando, via- se
que estava orgulhoso de as ter cometido. E se tornou tão absurdo que, por fim,
tanto ele como o príncipe se riam a perder.
- A grande coisa é que você tem uma
espécie de confiança infantil, e uma extraordinária franqueza – disse no fim, o
príncipe - E, quer saber, isso faz com que muita, muita coisa lhe seja perdoada!
- Eu tenho alma nobre, nobre e cavalheiresca! - confirmou Keller
enternecido - Mas quer saber de uma coisa, príncipe, tudo isso não passa de
sonho, ou - como direi? - de bravata; e sempre dá em nada. E por que será? Não
compreendo!
- Não descoroçoe! Agora se pode dizer, com certeza, que você me fez um relato
total de tudo. Parece-me que até será impossível acrescentar qualquer coisinha
mais ao que você me disse, não é?
- Impossível? - exclamou Keller, quase com
ar aflito - Oh, príncipe, como o senhor interpreta, de uma maneira completa, à
la Suisse, a natureza humana!
- Acha então possível acrescentar mais alguma
coisa? - indagou o príncipe, com um espanto acanhado - Ora, diga lá, Keller, que
é que deseja de mim e por que foi que veio a mim com essa confissão?
- Do
senhor? O que desejo? Em primeiro lugar, causa prazer assistir à sua
simplicidade; dá gosto sentar e ficar ouvindo o senhor. A gente vê logo que tem
diante de si uma pessoa virtuosa, nem há dúvida; e, em segundo lugar, em
segundo lugar... - e ficou confuso.
- Quem sabe se você não queria me pedir dinheiro emprestado? - foi-lhe ao
encontro do pensamento o príncipe com ar grave e singelo, um pouco
timidamente, até.
Keller não pôde deixar de ficar sobressaltado. Assestou imediatamente, cheio de
admiração, o olhar no rosto do príncipe e arrumou com o punho fechado,
violentamente, sobre a mesa.
- Ora aí está como se derruba um sujeito, de um golpe só! Palavra de honra,
príncipe, que simplicidade, que inocência, coisa nunca vista nem mesmo na
Idade do Ouro! Como de uma vez só o senhor traspassa o âmago de um sujeito,
como uma flecha, com sua tão profunda observação psicológica! Mas, com
licença, Alteza! Isto requer, está a pedir uma explicação, pois estou traspassado...
Naturalmente, em todo este meu ímpeto, o meu intento era pedir-lhe dinheiro
emprestado. Mas o senhor me perguntou como se não achasse repreensível,
como se fosse uma coisa mais que lógica.
- Sim... de você só podia ser mesmo
assim.
- E isso não o aborrece?
- Não!... Por quê?
- Escute, príncipe. Tenho estado por aqui, desde ontem; primeiro, uma deferência
toda especial para com o arcebispo francês Bourdaloeu - estive saboreando-o em
casa de Liébediev até às três da madrugada; e em segundo lugar, e esse é que é o
principal (e agora solenemente lhe faço o juramento de
que estou a dizer a santa verdade!) fui ficando porque eu desejava, em lhe
fazendo uma completa e sincera confissão - como direi? - promover o meu
aperfeiçoamento. E pensando nisso adormeci, banhado em lágrimas, lá pelas
quatro da madrugada. Acreditará o senhor na palavra de homem de honra, se eu
disser que logo que caí no sono, sinceramente cheio por dentro, e - como direi? -
por fora, de lágrimas (sim, eu estava soluçando deveras, lá disso me recordo
eu!), um pensamento infernal me sobreveio? “E por que, uma vez tudo feito e
dito, não lhe pedir dinheiro emprestado, depois da minha confissão?” E o caso foi
que preparei a minha confissão - como direi? - assim à guisa de um fricassé,
tendo lágrimas como molho, para calçar o caminho com aquelas lágrimas de
modo a abrandá-lo e sacar-lhe cento e cinquenta rublos. Não acha o senhor que
isso foi vil?
- O mais provável é que isso não se tenha dado assim; o mais certo deve ter sido
que ambas as coisas vieram ao mesmo tempo. Os dois pensamentos lhe
acudiram juntos.
Aliás, isso acontece muitas vezes. Comigo se dá isso constantemente. Parece-me,
porém, que seja um mau sinal. E quer saber de uma outra coisa, Keller? Não me
farto de me repreender por isso. Você deve ter estado a falar como se fosse eu,
ainda agora. Às vezes chego a imaginar que todo o mundo seja assim - continuou
o príncipe com ar sério e de profundo interesse - tanto que eu estava começando
a desculpar-me, pois é extremamente difícil Lutar contra esses pensamentos
duplos. Eu tenho tentado. Só Deus sabe como eles nascem e surgem no espírito.
Mas você chama a isso simplesmente vilania! Agora comecei a ter medo desses
pensamentos, outra vez. Seja lá como for, não sou seu juiz. Mas, a meu ver, não
se pode chamar isso de vilania, apenas. Que acha você? Você estava agindo
fraudulentamente para obter o meu dinheiro com Lágrimas; mas, ao mesmo
tempo, você jura que também havia um outro motivo para a sua confissão. Logo
havia tanto um motivo honroso, como um outro, mercenário. Quanto ao dinheiro,
você precisa dele para viver dissolutamente, não é? Por conseguinte, depois de
uma tal confissão isso naturalmente é fraqueza. É afinal como há de você desistir
de viver dissolutamente, de uma hora para outra? É impossível, eu sei. Que fazer,
então? O melhor é deixar isso com a sua consciência. Que acha?
- Esplêndido! Palavra
que não percebo por que. afinal de contas, chamam o senhor de idiota! –
exclamou Keller.
continua página 280...
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O Idiota: Segunda Parte (11b) - Disse, entre outras coisas
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