sábado, 1 de fevereiro de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - Waterloo / XVII — Deve achar-se que Waterloo foi bom?

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Primeiro — Waterloo

XVII Deve achar-se que Waterloo foi bom?
     
     Existe uma escola liberal assaz respeitável que não odeia Waterloo. Não pertencemos a ela. Para nós, Waterloo não é mais do que a data estupefata da liberdade. Que uma tal águia saia de semelhante ovo, é, sem dúvida, uma coisa imprevista.     
     Waterloo, examinando-se do ponto culminante da questão, é intencionalmente uma vitória contra-revolucionária. É a Europa contra a França, Petersburgo, Berlim e Viena contra Paris. Paris, é o statu quo contra a iniciativa, é o 14 de Julho de 1789, atacado através de 20 de Março de 1815, é o «toca a postos» das monarquias contra a indomável sublevação francesa. Aniquilar, enfim, este grande povo, cuja erupção durava havia vinte e seis anos, era o grande sonho Solidariedade dos Brunswick, dos Nassau, dos Romanoff, Hohenzollern e Habsburgs com os Bourbons.
     Waterloo conduz pela mão o direito divino. É verdade que tendo o império sido despótico, devia a realeza, pela reação das coisas, ser forçosamente liberal, e que Waterloo, ainda que contra a vontade e com grande pesar dos vencedores, saiu uma ordem de coisas constitucional. É que a revolução não pode ser verdadeiramente vencida e que, sendo providencial e absolutamente fatal, reaparece sempre, antes de Waterloo, em Bonaparte derrubando os velhos tronos, depois de Waterloo, em Luís XVIII, outorgando e sofrendo a carta. Bonaparte põe um postilhão sobre o trono de Nápoles e um sargento sobre o da Suécia, querendo provar a igualdade. Luís XVIII, em Saint Ouen, assina em contrário a declaração dos direitos do homem. Quereis explicar-vos o que é a revolução, chamai-lhe progresso; quereis saber o que é o progresso, chamai-lhe Amanhã. Amanhã leva irresistivelmente a cabo a obra começada hoje. É extraordinário, mas nunca deixa de chegar ao seu fim. Emprega Wellington em fazer de Foy, que não era mais do que um soldado, um orador Foy cai em Hougomout e ergue-se na tribuna. É assim que procede o progresso. Para um tal operário não há ferramenta má. Adapta ao seu trabalho divino, sem se perturbar, o homem, que galgou os Alpes, e o bom velho e doente Eliseu. Serve-se tanto do gotoso como do conquistador; deste no exterior, do primeiro no interior.
     Waterloo, obstando por uma vez a demolição dos tronos europeus pela espada, não teve por efeito senão continuar o trabalho revolucionário por outro lado. Os acutiladores acabaram: chegou a vez aos pensadores. O século que Waterloo pretendia fazer parar, passou-lhe por cima e continuou o seu caminho. Esta sinistra vitória foi vencida pela liberdade. 
     Em suma, e incontestavelmente, o que triunfava em Waterloo, o que se sorria por trás de Wellington, o que lhe dava todos os bastões de marechal da Europa, compreendendo, segundo dizem, o marechal de França, o que fazia rolar alegremente as carretas de terra cheias de ossadas para elevar o cabeço do leão, o que triunfantemente escrevia sobre o pedestal a data: 18 de Junho de 1815, o que animava Blucher a acutilar a derrota, o que do alto da planície de Mont-Saint-Jean se debruçava sobre a França como sobre uma presa, era a contrarrevolução.
     Era a contrarrevolução que murmurava a infame palavra: desmoronamento. 
     Chegada a Paris viu a cratera de perto, sentiu que a cinza lhe queimava os pés e modificou-se. Segurou-se, balbuciando uma Carta. 
     Não vejamos em Waterloo senão o que ele foi. De liberdade intencional, nada. A contrarrevolução era involuntariamente liberal, do mesmo modo que, por um fenômeno correspondente, Napoleão era revolucionário. O dia 18 de Junho de 1815 apeou Robespierre do cavalo em que montava.

continua na página 269...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Primeiro - XVII — Deve achar-se que Waterloo foi bom?
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 

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