O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
3. A cena havida com o general em outras circunstâncias teria dado em nada. Ele
tivera, antes, muitas vezes, explosões de mau gênio, desta mesma qualidade,
embora muito espaçadas umas das outras. E, falando de um modo geral, era um
homem de boa índole e até de disposição bondosa. Lutara, mais de cem vezes,
com os maus hábitos que se vinham assenhoreando dele nos últimos anos. Caía
sempre em si, recordando-se que era um chefe de família, queria reconciliar-se
com a esposa, e não era raro derramar lágrimas sinceras de arrependimento.
Respeitava e venerava mesmo Nina Aleksándrovna por lhe haver perdoado
muito e por amá-lo sabendo embora que ele se tornara uma figura grotesca e
degradada. Pena era que os bem intencionados esforços do seu coração para
dominar as suas falhas durassem tão pouco. E o pior era que o general tinha um
caráter demasiadamente “impulsivo”. Não conseguindo suportar durante muito
tempo o vazio da sua vida, relegado em casa como mero penitente, acabava
sempre por se revoltar. Era presa de paroxismos e de excitação dos quais ele
próprio não cansava de se repreender intimamente, conquanto isso pouco
adiantasse.
Brigava, punha-se a discutir, empregando uma exótica eloquência e
uma retórica exagerada, insistindo em querer ser tratado com o maior respeito e
consideração, acabando, quase sempre, por abandonar a casa, às vezes até por
dias e dias seguidos. Nesses dois últimos anos tinha apenas uma vaga ideia das
coisas domésticas, só sabendo delas “por ouvir dizer”. Desistira de aprofundar a
curiosidade em tais casos, não sentindo mais o menor impulso para tal.
Desta vez, porém, a explosão do general assumira excepcional desespero porque,
no fundo, a causa e a razão eram graves. Todos pareciam estar cientes de certa
coisa, mas se sentiam temerosos de aludir a ela. O general apresentara- se de um
modo formal perante a família, ou, mais propriamente, perante Nina
Aleksándrovna, havia três dias. Mas não se apresentara, como das outras vezes,
humilde e arrependido. A reaparição, desta vez, estava marcada, ao contrário,
por uma irritabilidade que se evidenciava na sua loquacidade, nos seus
movimentos, no modo de defrontar os demais, de cabeça erguida e além disso violento, fosse quem fosse que encontrasse, muito embora, como sempre,
descambando, nas disputas, para assuntos inadequados e impróprios, não
sendo possível a ninguém atingir o fundo daquilo que o atormentava.
Não que, lá
uma vez ou outra, não se mostrasse prazenteiro. A maior parte do tempo, porém,
vivia taciturno, parecendo, todavia, nem ele mesmo saber sobre que fato
meditava tanto. Se, por exemplo, se metia em uma conversa onde se falasse de
Míchkin, dos Epantchín, de Liébediev, não era raro, sem mais aquela,
interromper as perguntas ou as respostas, permanecendo com um sorriso vago,
sem se dar conta que estava a sorrir ou que jaziam à espera da sua resposta.
Levara a noite anterior gemendo e se lastimando, cansando assim Nina
Aleksándrovna que passara toda a noite acordada a preparar-lhe fomentações.
Mas, ao amanhecer, caíra em um sono profundo, a ponto de dormir quatro horas
seguidas. Mas acordara com um ataque violentíssimo e desordenado de
hipocondria cujo remate lógico fora uma briga com Ippolít e “uma maldição
sobre esta casa” (como dera, ultimamente, em dizer à toa). Também haviam
reparado que, durante esses três últimos dias, dera em ter acessos de amor
próprio, o que o tornou, de um modo mórbido, suscetível a ofender-se por
nonadas, levando Kólia a reiteradamente explicar à mãe que isso era falta de
bebida, ou talvez, até, uma “espécie de saudade” de Liébediev, de quem o
general se tinha tornado excessivamente amigo, de tempos para cá. Mas que
fazer, se justamente três dias antes brigara sem mais aquela com Liébediev,
separando-se dele como uma fúria?
Pois se até com Míchkin houvera uma cena, a ponto de Kólia ter ido pedir
esclarecimentos! Disso resultara Kólia suspeitar que o príncipe sabia de alguma
coisa que não queria dizer, tendo Gánia feito a mesma suposição, com muita
possibilidade de acerto. Chegara a haver uma conversa entre Ippolít e Nina
Aleksándrovna e era de estranhar que esse vingativo rapaz chamado tão
francamente por Gánia de “traficante de escândalos”, tivesse tido a prudência de
não iniciar Kólia em segredos funestos. Era muito provável que Ippolít não fosse
o malicioso e sórdido “cachorro” que Gánia descrevera à irmã. Ou a sua malícia
era de outra maneira, não tão acessível à primeira vista? Mas era provável que
tivesse informado Nina Aleksándrovna dos seus reparos e averiguações, só para
lhe “quebrar o coração”...
Não nos esqueçamos que as causas das ações
humanas são, de hábito, incomensuravelmente mais complexas e variadas do
que as subsequentes explicações que delas damos. Estas últimas podem ser
definidas de maneira mais singela. O melhor caminho, para um contador de
histórias, é restringir-se ele à simples narrativa dos fatos. E esta será a linha que
adotaremos no resto da narrativa da atual
catástrofe da vida do general. Fazemos isso, porque inevitavelmente devemos
conceder mais espaço e atenção do que originariamente tínhamos deliberado
para este personagem de importância aparentemente secundária em nossa
história.
Esses acontecimentos se tinham sucedido uns aos outros, na ordem seguinte:
Quando Liébediev voltou, naquele dia mesmo, com o general, de Petersburgo,
onde fora procurar Ferdichtchénko, nada dissera de particular a Míchkin. Não
estivesse o príncipe preocupado e com o tempo absorvido em outras impressões
de grande importância, teria percebido logo que, durante dois dias, Liébediev, em
vez de lhe vir dar qualquer explicação, pelo contrário, e por qualquer motivo,
evitava encontrar-se com ele. Quando o príncipe pôde, afinal, volver a sua
atenção para o assunto, se surpreendeu de se haver esquecido que nesses três dias
tinha encontrado Liébediev naqueles seus habituais e antigos estados de bem
aventurança de espírito sempre em companhia do general. Não podiam passar
nunca um sem o outro, um só momento que fosse. Muitas vezes ouvira o príncipe
os sons da ruidosa e precipitada conversa, seguidos de alegres disputas, no andar
de cima. Certa vez, mesmo, as apojaturas de uma canção marcial báquica
romperam repentina e inopinadamente em seus ouvidos, logo reconhecendo o
basso profondo do general. Mas a canção parara antes do final. Depois, em uma
outra hora, se seguira uma palestra extremamente animada e por sinal que
tipicamente de bêbados. Seria até fácil conjeturar que os amigos se estavam a
abraçar, acabando, porém, um deles, por chorar. Arrematara tudo uma briga
violenta, a que sucedera súbito silêncio, logo depois. Agora, por causa disso,
parecia preocupado, e como o príncipe geralmente precisava ausentar-se de
casa, só voltando tarde, sempre lhe comunicavam, depois, que Kólia andara à
sua procura. Mas quando sucedia encontrarem-se, Kólia parecia não ter nada de
particular para lhe contar, a não ser que “não estava satisfeito” com o general,
nem com os seus modos, “atualmente”. “Eles andam sempre juntos,
embebedam-se em uma taverna, saem abraçados, brigam em plena rua.
Pregam partidas um ao outro e não se podem separar”. Quando o príncipe lhe
fez ver que antes era a mesma coisa, todos os dias, Kólia ficou como se quisesse
dar uma outra explicação recente, mas acabou por não poder explicar a causa de
uma presente intranquilidade.
Na manhã que seguira à noite da cantiga e da briga, ia o príncipe saindo
de casa, cerca das onze horas, quando esbarrou com o general que entrava e que
lhe pareceu muito excitado e lastimavelmente esbodegado.
- Desde muito tenho
buscado a honra de encontrá-lo, honradíssimo Liév Nikoláíevitch. Desde muito!
- apertou a mão do príncipe com tanta firmeza que quase o machucou – Desde
muito, muito tempo.
O príncipe convidou-o a sentar-se um pouco.
- Não, não me sentarei. Não quero
retê-lo. Virei uma outra vez. Terei, então, o ensejo de congratular-me com o
senhor, a proposito do estado de graça do seu coração boníssimo.
- Qual estado de graça do meu coração? - o príncipe ficou desconcertado, pois, como quase toda gente em situação
especial igual à sua, supunha que a ninguém era dado adivinhar ou compreender
nada do seu íntimo.
- Não se incomode! Não se incomode! Não ferirei os seus mais delicados
sentimentos. Já conheço isso e sei o que isso é, quando uma outra pessoa
intromete o nariz, como se costuma dizer... onde não é chamado. Sinto isso cada
manhã. Vim, por causa de um outro negócio muito importante. Um negócio
muito importante, príncipe.
O príncipe tornou a pedir-lhe que se sentasse e deu o exemplo, sentando- se
primeiro.
- Por um segundo, vá lá. Vim, para me aconselhar. Eu já não tenho,
naturalmente, nenhum alvo na vida; mas como me respeito a mim mesmo, e
como admiro o espírito prático no que aliás o russo só dá provas de deficiência...
Desejo recolocar-me, bem como a minha esposa e meus filhos, em uma
situação... Príncipe, preciso de seus conselhos! - o príncipe aplaudiu
calorosamente tais intenções. - Bem, tudo isto não foi mais do que uma série de
disparates que me pus a dizer-lhe, príncipe... - interrompeu o general,
subitamente, mudando para outro assunto. - O que eu desejava dizer, era outra
coisa, e essa, importante. Simplesmente lhe desejo explicar, Liév Nikoláievitch,
como a um homem em cuja sinceridade de coração e nobreza de sentimentos
tenho a mais completa confiança, que... que... As minhas palavras surpreendem
no, príncipe?
O príncipe observava o seu visitante, se não com surpresa, ao
menos com extrema atenção e curiosidade.
O velho estava um tanto pálido; de instante em instante os seus lábios se
repuxavam e as suas mãos não podiam ficar quietas. Tendo ficado sentado
menos do que dez minutos, ainda assim por duas vezes se levantou, por qualquer
motivo, e outras tantas se tornou a sentar, obviamente não prestando a menor
atenção no que estava dizendo e fazendo. Havia alguns livros sobre a mesa:
tomou um deles, e, sempre a falar, abriu-o, deu uma olhadela a uma página,
fechou-o imediatamente e o repôs sobre a mesa, alcançou um outro livro, que
nem abriu, ficando a segurá-lo todo o tempo, com a mão direita, agitando-o no
ar, conforme a gesticulação.
- E basta! - gritou, subitamente. - Vejo que estive a
incomodá-lo tremendamente.
- Oh, de maneira nenhuma! Faça o favor de prosseguir. Muito pelo contrário.
Estou escutando e procurando adivinhar em que lhe possa ser útil.
- Príncipe,
anseio ganhar por mim próprio, uma situação de respeito... Estou ansioso...
quero... respeitar-me... a mim, e... aos meus direitos!
- Um homem animado por
tal desejo já é digno de respeito, só por essa razão.
Como pudera o príncipe usar, ali, de uma expressão de almanaque, dizendo
aquela frase que aparece nos guias de bom-tom? Naturalmente porque lhe veio a
firme convicção de que isso produziria um excelente efeito. Adivinhara,
instintivamente, que qualquer frase redonda, mas agradável, pronunciada no
momento exato, teria imediatamente uma influência não só irresistível como
também calmante no espírito desse homem, especialmente na situação em que
desconfiava achar-se o general. Fosse como fosse, só poderia mandar embora
uma tal visita depois de lhe iluminar o coração! E esse era o problema.
A frase envaideceu e comoveu o General Ívolguin, agradando-o muito. E
imediatamente ficou derretido, mudando para o tom de outrora; e começou a
desembuchar toda uma explicação entusiástica. Mas, conquanto se esforçasse
por ouvir com a maior atenção, Míchkin não logrou entender absolutamente
nada. Nesses dez minutos o general falou veementemente, aos atropelos, como
se lhe fosse impossível despejar como queria a aluvião de pensamentos com a
necessária pressa. Positivamente lhe apareceram lágrimas nos olhos, lá para o
fim, muito embora não dissesse nada, a não ser orações e sentenças sem começo
nem fim, que se atropelavam umas sobre as outras!
- Agora, chega. Já me
compreendeu. Estou satisfeito - concluiu, levantando-se logo.- Um oração como o seu não pode deixar de compreender um homem que
sofre. Príncipe, o senhor é idealmente generoso. Que valem os demais homens,
diante do senhor? Mas é moço, e eu o abençoo. O simples e o complexo, em tudo
isto, é que vim pedir-lhe uma entrevista, um encontro, uma hora certa, para uma
conversa importante comigo, e na qual repousa toda a minha esperança. Não
solicito mais do que amizade e simpatia, príncipe. E esta sofreguidão de amizade
e simpatia que há no meu coração nunca a pude governar, príncipe.
- E por que não imediatamente? Estou pronto a ouvi-lo.
- Não, príncipe, não! - interrompeu ardorosamente o general - Agora, não! Agora seria um sonho vão!
É muito, muito importante! A hora dessa conversação será a hora de um
irrevogável destino. Será a minha hora! E eu não desejaria que nos fosse dado
termos de interromper um momento tão sagrado por causa de qualquer eventual
arrivista, qualquer sujeito impudente! E que abundância não há, caro príncipe, de
tais indivíduos!
continua página 438...
_____________________
Leia também:
_____________________
Leia também:
Segunda Parte
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (3a) - A cena havida com o general
___________________
___________________
Nenhum comentário:
Postar um comentário