quinta-feira, 5 de junho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (3a) - A cena havida com o general

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
3.


      A cena havida com o general em outras circunstâncias teria dado em nada. Ele tivera, antes, muitas vezes, explosões de mau gênio, desta mesma qualidade, embora muito espaçadas umas das outras. E, falando de um modo geral, era um homem de boa índole e até de disposição bondosa. Lutara, mais de cem vezes, com os maus hábitos que se vinham assenhoreando dele nos últimos anos. Caía sempre em si, recordando-se que era um chefe de família, queria reconciliar-se com a esposa, e não era raro derramar lágrimas sinceras de arrependimento.
     Respeitava e venerava mesmo Nina Aleksándrovna por lhe haver perdoado muito e por amá-lo sabendo embora que ele se tornara uma figura grotesca e degradada. Pena era que os bem intencionados esforços do seu coração para dominar as suas falhas durassem tão pouco. E o pior era que o general tinha um caráter demasiadamente “impulsivo”. Não conseguindo suportar durante muito tempo o vazio da sua vida, relegado em casa como mero penitente, acabava sempre por se revoltar. Era presa de paroxismos e de excitação dos quais ele próprio não cansava de se repreender intimamente, conquanto isso pouco adiantasse.
     Brigava, punha-se a discutir, empregando uma exótica eloquência e uma retórica exagerada, insistindo em querer ser tratado com o maior respeito e consideração, acabando, quase sempre, por abandonar a casa, às vezes até por dias e dias seguidos. Nesses dois últimos anos tinha apenas uma vaga ideia das coisas domésticas, só sabendo delas “por ouvir dizer”. Desistira de aprofundar a curiosidade em tais casos, não sentindo mais o menor impulso para tal.
     Desta vez, porém, a explosão do general assumira excepcional desespero porque, no fundo, a causa e a razão eram graves. Todos pareciam estar cientes de certa coisa, mas se sentiam temerosos de aludir a ela. O general apresentara- se de um modo formal perante a família, ou, mais propriamente, perante Nina Aleksándrovna, havia três dias. Mas não se apresentara, como das outras vezes, humilde e arrependido. A reaparição, desta vez, estava marcada, ao contrário, por uma irritabilidade que se evidenciava na sua loquacidade, nos seus movimentos, no modo de defrontar os demais, de cabeça erguida e além disso violento, fosse quem fosse que encontrasse, muito embora, como sempre, descambando, nas disputas, para assuntos inadequados e impróprios, não sendo possível a ninguém atingir o fundo daquilo que o atormentava.
     Não que, lá uma vez ou outra, não se mostrasse prazenteiro. A maior parte do tempo, porém, vivia taciturno, parecendo, todavia, nem ele mesmo saber sobre que fato meditava tanto. Se, por exemplo, se metia em uma conversa onde se falasse de Míchkin, dos Epantchín, de Liébediev, não era raro, sem mais aquela, interromper as perguntas ou as respostas, permanecendo com um sorriso vago, sem se dar conta que estava a sorrir ou que jaziam à espera da sua resposta.
     Levara a noite anterior gemendo e se lastimando, cansando assim Nina Aleksándrovna que passara toda a noite acordada a preparar-lhe fomentações. Mas, ao amanhecer, caíra em um sono profundo, a ponto de dormir quatro horas seguidas. Mas acordara com um ataque violentíssimo e desordenado de hipocondria cujo remate lógico fora uma briga com Ippolít e “uma maldição sobre esta casa” (como dera, ultimamente, em dizer à toa). Também haviam reparado que, durante esses três últimos dias, dera em ter acessos de amor próprio, o que o tornou, de um modo mórbido, suscetível a ofender-se por nonadas, levando Kólia a reiteradamente explicar à mãe que isso era falta de bebida, ou talvez, até, uma “espécie de saudade” de Liébediev, de quem o general se tinha tornado excessivamente amigo, de tempos para cá. Mas que fazer, se justamente três dias antes brigara sem mais aquela com Liébediev, separando-se dele como uma fúria?
     Pois se até com Míchkin houvera uma cena, a ponto de Kólia ter ido pedir esclarecimentos! Disso resultara Kólia suspeitar que o príncipe sabia de alguma coisa que não queria dizer, tendo Gánia feito a mesma suposição, com muita possibilidade de acerto. Chegara a haver uma conversa entre Ippolít e Nina Aleksándrovna e era de estranhar que esse vingativo rapaz chamado tão francamente por Gánia de “traficante de escândalos”, tivesse tido a prudência de não iniciar Kólia em segredos funestos. Era muito provável que Ippolít não fosse o malicioso e sórdido “cachorro” que Gánia descrevera à irmã. Ou a sua malícia era de outra maneira, não tão acessível à primeira vista? Mas era provável que tivesse informado Nina Aleksándrovna dos seus reparos e averiguações, só para lhe “quebrar o coração”...
     Não nos esqueçamos que as causas das ações humanas são, de hábito, incomensuravelmente mais complexas e variadas do que as subsequentes explicações que delas damos. Estas últimas podem ser definidas de maneira mais singela. O melhor caminho, para um contador de histórias, é restringir-se ele à simples narrativa dos fatos. E esta será a linha que adotaremos no resto da narrativa da atual catástrofe da vida do general. Fazemos isso, porque inevitavelmente devemos conceder mais espaço e atenção do que originariamente tínhamos deliberado para este personagem de importância aparentemente secundária em nossa história.
     Esses acontecimentos se tinham sucedido uns aos outros, na ordem seguinte:
     Quando Liébediev voltou, naquele dia mesmo, com o general, de Petersburgo, onde fora procurar Ferdichtchénko, nada dissera de particular a Míchkin. Não estivesse o príncipe preocupado e com o tempo absorvido em outras impressões de grande importância, teria percebido logo que, durante dois dias, Liébediev, em vez de lhe vir dar qualquer explicação, pelo contrário, e por qualquer motivo, evitava encontrar-se com ele. Quando o príncipe pôde, afinal, volver a sua atenção para o assunto, se surpreendeu de se haver esquecido que nesses três dias tinha encontrado Liébediev naqueles seus habituais e antigos estados de bem aventurança de espírito sempre em companhia do general. Não podiam passar nunca um sem o outro, um só momento que fosse. Muitas vezes ouvira o príncipe os sons da ruidosa e precipitada conversa, seguidos de alegres disputas, no andar de cima. Certa vez, mesmo, as apojaturas de uma canção marcial báquica romperam repentina e inopinadamente em seus ouvidos, logo reconhecendo o basso profondo do general. Mas a canção parara antes do final. Depois, em uma outra hora, se seguira uma palestra extremamente animada e por sinal que tipicamente de bêbados. Seria até fácil conjeturar que os amigos se estavam a abraçar, acabando, porém, um deles, por chorar. Arrematara tudo uma briga violenta, a que sucedera súbito silêncio, logo depois. Agora, por causa disso, parecia preocupado, e como o príncipe geralmente precisava ausentar-se de casa, só voltando tarde, sempre lhe comunicavam, depois, que Kólia andara à sua procura. Mas quando sucedia encontrarem-se, Kólia parecia não ter nada de particular para lhe contar, a não ser que “não estava satisfeito” com o general, nem com os seus modos, “atualmente”. “Eles andam sempre juntos, embebedam-se em uma taverna, saem abraçados, brigam em plena rua. Pregam partidas um ao outro e não se podem separar”. Quando o príncipe lhe fez ver que antes era a mesma coisa, todos os dias, Kólia ficou como se quisesse dar uma outra explicação recente, mas acabou por não poder explicar a causa de uma presente intranquilidade.
     Na manhã que seguira à noite da cantiga e da briga, ia o príncipe saindo de casa, cerca das onze horas, quando esbarrou com o general que entrava e que lhe pareceu muito excitado e lastimavelmente esbodegado.

- Desde muito tenho buscado a honra de encontrá-lo, honradíssimo Liév Nikoláíevitch. Desde muito! - apertou a mão do príncipe com tanta firmeza que quase o machucou – Desde muito, muito tempo. 

     O príncipe convidou-o a sentar-se um pouco.

- Não, não me sentarei. Não quero retê-lo. Virei uma outra vez. Terei, então, o ensejo de congratular-me com o senhor, a proposito do estado de graça do seu coração boníssimo.
- Qual estado de graça do meu coração? - o príncipe ficou desconcertado, pois, como quase toda gente em situação especial igual à sua, supunha que a ninguém era dado adivinhar ou compreender nada do seu íntimo.  
- Não se incomode! Não se incomode! Não ferirei os seus mais delicados sentimentos. Já conheço isso e sei o que isso é, quando uma outra pessoa intromete o nariz, como se costuma dizer... onde não é chamado. Sinto isso cada manhã. Vim, por causa de um outro negócio muito importante. Um negócio muito importante, príncipe.

     O príncipe tornou a pedir-lhe que se sentasse e deu o exemplo, sentando- se primeiro. 

- Por um segundo, vá lá. Vim, para me aconselhar. Eu já não tenho, naturalmente, nenhum alvo na vida; mas como me respeito a mim mesmo, e como admiro o espírito prático no que aliás o russo só dá provas de deficiência... Desejo recolocar-me, bem como a minha esposa e meus filhos, em uma situação... Príncipe, preciso de seus conselhos! - o príncipe aplaudiu calorosamente tais intenções. - Bem, tudo isto não foi mais do que uma série de disparates que me pus a dizer-lhe, príncipe... - interrompeu o general, subitamente, mudando para outro assunto. - O que eu desejava dizer, era outra coisa, e essa, importante. Simplesmente lhe desejo explicar, Liév Nikoláievitch, como a um homem em cuja sinceridade de coração e nobreza de sentimentos tenho a mais completa confiança, que... que... As minhas palavras surpreendem no, príncipe?

     O príncipe observava o seu visitante, se não com surpresa, ao menos com extrema atenção e curiosidade. O velho estava um tanto pálido; de instante em instante os seus lábios se repuxavam e as suas mãos não podiam ficar quietas. Tendo ficado sentado menos do que dez minutos, ainda assim por duas vezes se levantou, por qualquer motivo, e outras tantas se tornou a sentar, obviamente não prestando a menor atenção no que estava dizendo e fazendo. Havia alguns livros sobre a mesa: tomou um deles, e, sempre a falar, abriu-o, deu uma olhadela a uma página, fechou-o imediatamente e o repôs sobre a mesa, alcançou um outro livro, que nem abriu, ficando a segurá-lo todo o tempo, com a mão direita, agitando-o no ar, conforme a gesticulação.

- E basta! - gritou, subitamente. - Vejo que estive a incomodá-lo tremendamente. 
- Oh, de maneira nenhuma! Faça o favor de prosseguir. Muito pelo contrário. Estou escutando e procurando adivinhar em que lhe possa ser útil. 
- Príncipe, anseio ganhar por mim próprio, uma situação de respeito... Estou ansioso... quero... respeitar-me... a mim, e... aos meus direitos!
- Um homem animado por tal desejo já é digno de respeito, só por essa razão.

     Como pudera o príncipe usar, ali, de uma expressão de almanaque, dizendo aquela frase que aparece nos guias de bom-tom? Naturalmente porque lhe veio a firme convicção de que isso produziria um excelente efeito. Adivinhara, instintivamente, que qualquer frase redonda, mas agradável, pronunciada no momento exato, teria imediatamente uma influência não só irresistível como também calmante no espírito desse homem, especialmente na situação em que desconfiava achar-se o general. Fosse como fosse, só poderia mandar embora uma tal visita depois de lhe iluminar o coração! E esse era o problema. 
     A frase envaideceu e comoveu o General Ívolguin, agradando-o muito. E imediatamente ficou derretido, mudando para o tom de outrora; e começou a desembuchar toda uma explicação entusiástica. Mas, conquanto se esforçasse por ouvir com a maior atenção, Míchkin não logrou entender absolutamente nada. Nesses dez minutos o general falou veementemente, aos atropelos, como se lhe fosse impossível despejar como queria a aluvião de pensamentos com a necessária pressa. Positivamente lhe apareceram lágrimas nos olhos, lá para o fim, muito embora não dissesse nada, a não ser orações e sentenças sem começo nem fim, que se atropelavam umas sobre as outras!

- Agora, chega. Já me compreendeu. Estou satisfeito - concluiu, levantando-se logo.- Um oração como o seu não pode deixar de compreender um homem que sofre. Príncipe, o senhor é idealmente generoso. Que valem os demais homens, diante do senhor? Mas é moço, e eu o abençoo. O simples e o complexo, em tudo isto, é que vim pedir-lhe uma entrevista, um encontro, uma hora certa, para uma conversa importante comigo, e na qual repousa toda a minha esperança. Não solicito mais do que amizade e simpatia, príncipe. E esta sofreguidão de amizade e simpatia que há no meu coração nunca a pude governar, príncipe.  
- E por que não imediatamente? Estou pronto a ouvi-lo. 
- Não, príncipe, não! - interrompeu ardorosamente o general - Agora, não! Agora seria um sonho vão! É muito, muito importante! A hora dessa conversação será a hora de um irrevogável destino. Será a minha hora! E eu não desejaria que nos fosse dado termos de interromper um momento tão sagrado por causa de qualquer eventual arrivista, qualquer sujeito impudente! E que abundância não há, caro príncipe, de tais indivíduos! 

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (3a) - A cena havida com o general
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