domingo, 15 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Dança macabra (d)

 Thomas Mann


A Montanha Mágica 

Capítulo V

Dança Macabra 
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continuando...

     Hans Castorp sentiu apenas desprezo pelo mocinho que experimentara repugnância por ela, e dando de ombros expressou essa opinião. No que tocava a ele próprio, a pusilanimidade do adolescente poético justamente o instigou em sentido oposto: fê-lo procurar oportunidades, em repetidas visitas, para prestar à infortunada Srª. von Mallinkrodt pequenos serviços de samaritano, que não exigiam conhecimentos especiais, como por exemplo meter-lhe cuidadosamente na boca o mingau que lhe serviam no almoço, dar-lhe de beber na chávena de bico, quando se engasgava, ou ajudá-la a mudar de posição na cama, pois além dos outros males existia ainda uma ferida causada por uma operação, que lhe complicava a posição deitada. Exercitava-se ele nesses atos caridosos cada vez que, a caminho da sala de refeições ou de regresso de um passeio, entrava no quarto dela. Nesses casos pedia a Joachim que seguisse sozinho à frente, e alegava que apenas queria informar-se do estado do número 50. Invadia-o então a sensação desagradável da amplitude da sua natureza, uma alegria que se alicerçava na ideia da utilidade e do alcance secreto das suas ações, e com a qual se mesclava certo prazer furtivo causado pela aparência impecavelmente cristã dessas atividades; com efeito, essa aparência era tão piedosa, tão caritativa, tão digna de elogios, que parecia impossível opor-lhe quaisquer argumentos sérios, seja do ponto de vista militar, seja do da pedagogia e do humanismo.
     Ainda não mencionamos Karen Karstedt, e contudo era dela que Hans Castorp e Joachim se ocupavam com especial intensidade. Tratava-se de uma cliente particular do conselheiro, que morava fora do estabelecimento. O Dr. Behrens recomendara-a à caridade dos primos. Fazia quatro anos que ela vivia ali em cima. Sem recursos, dependia de uns parentes pouco generosos, que já uma vez a tinham levado, alegando que de qualquer forma morreria em breve. Sua volta devia-se exclusivamente à intervenção do conselheiro áulico. Domiciliara-se na “aldeia”, numa pensão barata. Tinha dezenove anos e era franzina, com cabelos lisos, oleosos, com olhos que, timidamente, procuravam ocultar um brilho que condizia com o rubor hético das faces, e com uma voz caracteristicamente velada, mas de uma sonoridade simpática. Tossia quase sem interrupção, e as pontas de todos os seus dedos achavam-se cobertas de esparadrapos, por estarem roídas pela doença.
     A ela é que os primos devotavam um cuidado especial, a pedido do Dr. Behrens, que se dirigira a eles, “uma vez que eram bons rapazes”. A história começou com uma remessa de flores; seguiu-se uma visita à pobre Karen, que os recebeu na sua pequena sacada, na “aldeia”; depois disso, os três organizaram algumas expedições especiais, assistindo, por exemplo, a um concurso de patinação ou a uma corrida de trenó. Pois a temporada de esportes de inverno chegara ao auge, no nosso vale alpino. Durante uma semana ia realizar-se um festival, com numerosas atrações. Até então, os primos haviam prestado apenas uma atenção ocasional e fugaz a esse tipo de espetáculos e de diversões. Joachim era avesso à simples ideia de se distrair ali em cima. Não se encontrava em Davos para se divertir; absolutamente não estava ali para viver e para se conformar com a estadia, tornando-a agradável e variada, senão com a única finalidade de se desintoxicar o mais depressa possível, para que pudesse voltar à planície e entrar no serviço ativo, no serviço verdadeiro, em lugar do serviço da cura, que era apenas um sucedâneo, mas cuja diminuição ele só tolerava malgrado seu. Participar ativamente dos esportes de inverno era-lhe vedado, e desagradava-o figurar como espectador. Quanto a Hans Castorp, sentia-se por demais unido aos dali de cima, num sentido muito estrito e íntimo, para manifestar interesse pela atividade de pessoas que consideravam esse vale como um campo de esportes.
     Mas sua caridosa solicitude para com a pobre Srta. Karstedt modificou algum tanto a situação. A não ser que se mostrasse pouco cristão, Joachim não podia fazer objeções. Foram buscar a enferma no seu modesto alojamento, na “aldeia”, e passearam-na, sob um frio abrasado por esplêndido sol, através do bairro inglês, assim chamado por causa do Hotel d'Angleterre, por entre as lojas luxuosas da rua principal, onde tilintavam os guizos dos trenós e flanavam ricos sibaritas e vadios de todas as partes do mundo, habitantes da estância balneária e de outros grandes hotéis, que andavam sem chapéu, trajando modernas roupas esporte, cortadas em fazendas finas e caras, e exibiam caras bronzeadas pelo ardor do sol hibernal e pela reverberação da neve. Desceram, finalmente, até o local de patinação, situado não longe da estância, no fundo do vale, e que no verão servia de campo de futebol. Ouvia-se música. A orquestra da estância dava um concerto no estrado de madeira do pavilhão, acima da pista retangular, atrás da qual as montanhas cobertas de neve se destacavam do fundo azul-escuro. Compraram entradas; abriram caminho através do público, que rodeava a pista nas arquibancadas erguidas em três dos seus lados; encontraram lugares e olharam o espetáculo. Os patinadores, vestidos com jaquetas justas e calças pretas de malha, requebravam-se, adejavam, descreviam figuras, saltavam e giravam. Um casal de virtuoses – profissionais que não participavam das competições – realizou uma proeza que em todo o vasto mundo só ele sabia fazer e desencadeou toques de clarins e salvas de palmas. No campeonato de velocidade, seis moços de diferentes nacionalidades, dobrados para a frente, com as mãos nas costas e, às vezes, com um lenço entre os dentes, deram em árdua luta seis voltas em torno do extenso retângulo. O som de uma campainha misturou-se com a música. De vez em quando, a multidão rebentava em frenéticos aplausos e aclamações.
     Era um ambiente colorido aquele que contemplavam os três enfermos, os primos e sua pupila. Ingleses, com boinas escocesas e dentes brancos, conversavam em francês com senhoras de perfumes penetrantes, vestidas dos pés à cabeça com lãs variegadas; algumas usavam calças. Americanos de cabeça pequena, com os cabelos colados ao crânio, e com o cachimbo na boca, usavam casacos com o forro de pele à mostra. Russos barbudos e elegantes, de aparência barbaramente rica, e holandeses, mestiços de malaios, estavam sentados no meio de alemães e suíços. Entremeava-se em toda parte gente de proveniência indistinta, de fala francesa, oriunda dos Bálcãs ou do Levante; um mundo aventureiro pelo qual Hans Castorp demonstrava um certo fraco, e que Joachim rejeitava como sendo equívoco e despido de caráter. Nos intervalos, crianças realizavam concursos humorísticos, tropeçando ao longo da pista com um pé calçado de esqui e o outro de patim; houve também uma competição cm que os meninos empurravam pás nas quais estavam sentadas as meninas. Faziam corridas de velas, sendo vencedor o que conservava a vela acesa até chegar à outra extremidade do campo. Tinham que transpor obstáculos, ou encher regadores com batatas usando colheres de estanho. Os adultos divertiam se muito. Eram assinaladas as mais ricas, as mais celebres e as mais graciosas entre as crianças – a filhinha de um multimilionário holandês, o filho de um príncipe alemão, e um garoto de doze anos que tinha o nome de uma marca de champanha mundialmente conhecida. Também a pobre Karen lançava gritos de júbilo, interrompidos por acessos de tosse. De tanto prazer, batia as mãos com os dedos carcomidos. Estava cheia de gratidão.
     Os primos levaram-na também ao campeonato de trenó. A meta final não ficava longe nem do Berghof nem do domicílio de Karen Karstedt. A pista partia da Schatzalp e terminava na “aldeia”, entre as casas da vertente do oeste. Ali se achava um pequeno pavilhão de controle, que recebia, pelo telefone, a comunicação da partida de cada trenó. Por entre as barreiras de neve gelada, ao longo das curvas de brilho metálico, precipitavam-se os chassis planos, tripulados por homens e mulheres vestidos de lã branca, com faixas das cores de diferentes países em redor do peito; desciam das alturas, um a um, bastante espaçados. Viam-se rostos avermelhados, que a neve açoitava. As quedas, os choques entre dois trenós, que viravam, espalhando pela neve a sua equipe, eram fotografados pelo público. Aqui também tocava uma banda. Os espectadores estavam instalados em pequenas tribunas ou avançavam pelo estreito trilho que se abrira a pá, ao longo da pista, e por cima desta passavam pontes de madeira, igualmente ocupadas pela multidão, a observar a competição dos trenós, que de tempos em tempos deslizavam zunindo. Os cadáveres do sanatório situado lá em cima seguiam o mesmo caminho, a toda a velocidade, por baixo das pontes, acompanhando as curvas, descendo rumo ao vale – pensou Hans Castorp, e também se expressou nesse sentido.
     Uma tarde, resolveram levar Karen Karstedt ao cinema “bioscópio” de Platz, porquanto ela se mostrava muito feliz com todas essas diversões. O ar viciado parecia estranho aos três, acostumados como estavam a uma atmosfera puríssima. Pesava-lhes o peito e nublava-lhes a cabeça. Mas nesse ar trepidava uma vida múltipla, que se sucedia na tela, diante dos seus olhos doloridos; uma vida apresentada em pedacinhos, divertida e apressada, cheia de uma inquietação saltitante, nervosa na demora, sempre prestes a desaparecer, acompanhada por uma musicazinha que aplicava o compasso do tempo atual à fuga das imagens pertencentes ao passado, e que, apesar da limitação dos seus recursos, sabia lançar mão de todos os registros da solenidade e da pompa, da paixão, da barbárie e da sensualidade lânguida. Era uma violenta história de amor e de crime, que se desenrolava silenciosamente ante eles. A ação passava-se na corte de um déspota oriental e constava de acontecimentos precipitados, cheios de ostentação e de nudez, saturados da libidinosidade do soberano e da fúria religiosa dos súditos, transbordante de crueldade, de cobiça e volúpia assassina e de um realismo meticuloso, quando se tratava de fazer apreciar a musculatura de uns braços de verdugo – numa palavra, uma coisa fabricada à base do conhecimento íntimo dos desejos secretos da civilização internacional que formava a assistência. Settembrini, como homem de juízo, provavelmente condenaria da forma mais severa esse espetáculo contrário à humanidade; sua ironia reta e clássica fustigaria o abuso da técnica com o fim de dar vida a representações tão cheias de desprezo dos homens. Essa, pelo menos, era a opinião de Hans Castorp, que ele segredou ao primo. A Srª. Stöhr, porém, que também estava no cinema, não longe dos três, parecia toda enlevada, e seu estólido rosto vermelho crispava-se de tanto gozo.
     O mesmo aspecto ofereciam, de resto, as fisionomias dos demais espectadores. Quando a derradeira e trêmula imagem de uma sequência de cenas se desvanecia e se fazia luz na sala, exibindo à multidão o campo das visões em forma de uma tela vazia, faltava até uma oportunidade para bater palmas. Não estava presente ninguém que se pudesse aplaudir e admirar, graças à arte por ele demonstrada. Os artistas que se haviam reunido para dar o espetáculo que o público acabava de desfrutar fazia muito se tinham dispersado. O que se vira eram apenas as sombras das suas façanhas, milhões de imagens, brevíssimos instantâneos, em que se dissecara a sua atividade durante o processo fotográfico, para que fosse possível restituí-la ao elemento do tempo, cada vez que se quisesse, num curso tremeluzente de tanta rapidez. O silêncio da assistência após o fim da ilusão tinha qualquer coisa de inerte e repugnante. As mãos jaziam impotentes em face do nada. As pessoas esfregavam os olhos, miravam fixamente o ar, tinham vergonha da claridade e desejavam voltar à escuridão, para tornar a contemplar, para novamente ver como se desenrolavam, transplantadas para um novo tempo e arrebicadas pela música, aquelas cenas pertencentes a um outro tempo.
     O déspota morria vítima de um punhal, lançando, com a boca aberta, urros que não se ouviam. A seguir foram mostradas imagens de todas as partes do mundo: o presidente da República Francesa, de cartola, com a grã-cruz da Legião de Honra, respondendo, do assento de um landô, a um discurso de saudação; o vice-rei da índia, assistindo às bodas de um rajá; o príncipe herdeiro alemão no pátio de um quartel de Potsdam. Viam-se a vida numa aldeia de indígenas de Novo Mecklenburg, uma rinha de galos em Bornéu, selvagens desnudos que tocavam flautas soprando pelo nariz, uma caça de elefantes bravios, uma cerimônia na corte real do Sião, uma rua de bordéis no Japão, com gueixas sentadas atrás de grades de madeira. Viam-se samoiedos agasalhados, atravessando, em trenós puxados por renas, um ermo nervoso da Ásia setentrional; viam-se peregrinos russos rezando em Hebron, e um delinquente persa que recebia bastonadas. Presenciava-se tudo isso. O espaço ficava aniquilado, e o tempo recuava. O Ali e o Outrora tinham-se transformado num Aqui e num Agora, que deslizavam, dançavam, envoltos em música. Uma jovem marroquina, em trajes de seda listrada, ajaezada de correntes, fivelas e anéis, com os exuberantes seios semidesnudos, aproximava-se de repente, em tamanho natural; tinha as narinas dilatadas e os olhos cheios de vida animalesca. As feições estavam em pleno movimento. Ria-se, exibindo os dentes brancos. Uma das mãos, cujas unhas pareciam mais claras que a pele, era mantida à altura dos olhos, qual uma pala, enquanto a outra acenava para o público. As pessoas fitavam, acanhadas, a encantadora sombra que fingia enxergar e não enxergava, que absolutamente não era atingida pelos olhares, e cujo riso e aceno não se referia ao presente, senão que pertencia ao Ali e ao Outrora, de modo que teria sido absurdo retribuí-lo. Isto, como já dissemos, mesclava o prazer com uma sensação de impotência. Por fim o fantasma desapareceu. Uma clareza vazia estendeu-se por sobre a tela, onde apareceu a palavra “Fim”. Chegara a seu fim o ciclo de espetáculos, e em silêncio a sala se esvaziou, enquanto um novo público já se apertava lá fora, desejoso de assistir a uma repetição dessa sequência de cenas.
     Animados pela Srª. Stöhr, que se uniu a eles, foram ainda visitar o café da estância, por amor à pobre Karen, que juntava as mãos, de tanta gratidão. Ali também havia música. Uma pequena orquestra, com casacas vermelhas, tocava sob a regência de um primeiro-violino tcheco ou húngaro, que, separado da sua banda, se achava no meio dos pares dançantes e investia contra o seu instrumento com frenéticas contorções do corpo. Em torno das mesas exibia-se a vida mundana. Eram servidas bebidas seletas. Os primos pediram laranjada para si próprios e para a sua pupila, para se refrescarem, já que a atmosfera estava quente e carregada de poeira. A Srª. Stöhr preferiu um licor doce. A essa hora – afirmou ela – ainda não reinava muita animação. Um pouco mais tarde, o baile seria bem mais alegre. Numerosos pacientes dos diversos sanatórios, bem como enfermos não internados, que moravam nos hotéis e na própria estância, entrariam na dança, em número muito maior do que agora. Não eram raros os casos graves que nesse salão haviam passado, em plena festa, para a eternidade, emborcando a taça da alegria de viver e sofrendo a hemorragia final in dulci jubilo. O que a crassa ignorância da Srª. Stöhr fez desse “dulci jubilo” foi realmente extraordinário. Tomou a primeira palavra de empréstimo, do vocabulário italiano-musical do marido, dando-lhe a pronúncia “dolce”. A segunda lembrava “jubileu” ou qualquer canto tirolês. Os dois primos inclinaram-se ao mesmo tempo para os canudos dos seus copos quando esse latim se ostentou; mas a Srª. Stöhr não se desconcertou por tão pouca coisa. Pelo contrário, mostrando obstinadamente os dentes de lebre, serviu-se de toda espécie de alusões e de indiretas para descobrir a razão de ser das relações entre os três jovens. Parecia-lhe evidente no que dizia respeito à pobre Karen, que, segundo, a Srª. Stöhr, devia estar satisfeitíssima com a corte que lhe faziam dois cavalheiros elegantes. Menos claro afigurava-se-lhe o caso com relação aos primos, mas, não obstante a sua estupidez e ignorância, a intuição feminina ajudou-a a formar uma ideia, ainda que incompleta e trivial. Adivinhou e deixou entender, mediante alfinetadas, que o verdadeiro cavaleiro era Hans Castorp, ao passo que o jovem Ziemssen era apenas assistente; opinou que Hans Castorp, cuja inclinação por Mme. Chauchat não lhe escapara, cortejava a mísera Karstedt tão-somente como sucedâneo, visto que, evidentemente, não sabia como aproximar-se da outra – opinião muito digna de uma Srª. Stöhr, desprovida de todo fundo moral, insuficiente e baseada numa intuição desprezível. Por isso, Hans Castorp limitou sua resposta a um olhar fatigado e desdenhoso, quando a mulher a expressou de forma banalmente chistosa. Com efeito, as relações com a pobre Karen constituíam para ele uma espécie de sucedâneo e de recurso suplementar, proveitoso de um modo pouco claro, assim como era o caso das suas demais empresas caritativas. Mas, ao mesmo tempo, tinham a sua finalidade própria essas suas ações piedosas. A satisfação que Hans Castorp experimentava ao introduzir o mingau na boca da inválida Srª. von Mallinckrodt, ao ouvir como o Sr. Ferge descrevia o inferno do choque pleural ou ao ver a pobre Karen bater as mãos com os dedos cobertos de esparadrapos, de tanta alegria e gratidão – essa satisfação era, em que pese a sua natureza derivada e relativa, de um caráter espontâneo e puro; tinha a sua origem num espírito formativo oposto àquele que o Sr. Settembrini representava na sua pedagogia, mas suficientemente valioso, segundo a opinião do jovem Hans Castorp, para que se aplicasse a ele o placet experiri.
     A casinha onde morava Karen Karstedt achava-se situada nas proximidades do curso d'água e dos trilhos da via férrea, à margem da estrada que conduzia à “aldeia”. Dessa forma era fácil para os primos irem buscá-la, quando, depois do café da manhã, a quisessem levar ao passeio regulamentar. Dirigindo-se à “aldeia”, na intenção de chegar à rua principal, tinham ante os seus olhos o Kleine Schiahorn, em seguida as três agulhas que se chamavam as Grüne Türme, e ainda mais à direita a cúspide do Dorfberg. A um quarto da altura da sua encosta via-se um cemitério, o cemitério da “aldeia”, rodeado de um muro, e que prometia uma linda vista; motivo por que valia a pena escolhê-lo para objetivo de um passeio. Uma bela manhã foram até lá, os três. Aliás, todas as manhãs eram belas nessa época do ano, calmas e ensolaradas, de um azul profundo, com uma atmosfera entre quente e fria, cintilante de alvura. Os primos – um com a tez cor de tijolo e o outro bronzeado – iam sem sobretudo, que teria sido incômodo sob esse sol abrasador. O jovem Ziemssen usava traje esporte e galochas por causa da neve; Hans Castorp calçava da mesma forma, mas levava calças compridas, pois não tinha espírito desportivo suficiente para andar de calções de golfe. Estava-se na primeira metade de fevereiro do novo ano. Sim, o ano mudara desde que Hans Castorp se encontrava ali, e já se escrevia outro número. Um dos ponteiros grandes do relógio que media as eras do universo dera para a frente um passo correspondente a uma unidade; não se tratava de um ponteiro dos maiores, como aquele que se referia aos milênios – muito poucos dentre os que viviam agora chegariam a vê-lo avançar – nem tampouco o dos séculos ou ainda o dos decênios. Mas o ponteiro dos anos acabava de movimentar-se, embora Hans Castorp se achasse ali fazia pouco mais de meio ano apenas, e daí por diante permaneceria parado, à maneira dos ponteiros de certos relógios grandes, que só de cinco em cinco minutos se põem em movimento. Antes que fizesse novo avanço, o ponteiro dos meses teria de avançar dez vezes, um pouco mais, portanto, do que fizera desde a chegada de Hans Castorp. O mês de fevereiro já não figurava no balanço, visto um mês começado ser um mês liquidado, assim como uma moeda trocada já se conta como gasta.
     Os três companheiros dirigiram-se, pois, certo dia, ao cemitério situado na encosta do Dorfberg. Mencionamos esse passeio para manter o nosso relato rigorosamente completo. Devia-se essa iniciativa a Hans Castorp, e Joachim, que a princípio se mostrara contrário, levando em consideração a pobre Karen deixara-se convencer e reconhecera que não adiantaria tentar iludi-la e esconder-lhe, à maneira da covarde Srª. Stöhr, tudo quanto lhe pudesse lembrar o fim. Karen Karstedt ainda não se entregava às ideias otimistas, peculiares à última fase da enfermidade; estava a par do seu estado, e sabia o que significava a necrose das pontas dos dedos. Não ignorava tampouco que os seus parentes avarentos não admitiriam o luxo de se transportar o féretro ao seu país natal, e que depois do exitus lhe designariam um modesto lugarzinho ali em cima. Numa palavra, podia-se opinar que o objetivo desse passeio, do ponto de vista moral, era mais próprio para ela do que muitos outros, como, por exemplo, o ponto de partida dos trenós ou o cinema. Por outro lado, era apenas um ato decente de camaradagem visitar os lá de cima, desde que não se quisesse considerar o cemitério como mera curiosidade ou como um terreno neutro de passeio.
     Subiam lentamente, em fila indiana, porque a trilha aberta a pá não permitia irem lado a lado. Deixando atrás e abaixo as mais altas das casas construídas na vertente, olhavam, enquanto subiam, a paisagem familiar na sua magnificência invernal, que mais uma vez se deslocava na perspectiva e lhes abria um outro aspecto. Dilatava-se rumo ao nordeste, em direção à entrada do vale. Surgia a esperada vista do lago circular, rodeado de bosques, congelado e coberto de neve. Atrás da sua margem oposta, os planos inclinados das montanhas pareciam encontrar-se no solo, e mais além assomavam cumes desconhecidos, sobrelevando uns aos outros, diante do céu azul. Os três contemplaram tudo isso, detendo-se na neve, em frente ao portão de pedra que dava acesso ao cemitério. A seguir entraram, abrindo os batentes de ferro, que estavam simplesmente encostados.
     Também no interior acharam trilhas limpas de neve, que passavam por entre as elevações dos túmulos cercados de grades e estufados de neve, esses leitos bem-dispostos e simétricos, com sua cruzes de pedra ou de metal, e com seus pequenos monumentos adornados de medalhões e dísticos. Não se ouvia nem se via ninguém. A calma, o isolamento, a paz do lugar pareciam profundos e íntimos em muitos sentidos. Um anjinho ou menino de pedra, com um boné de neve colocado obliquamente na cabeça, quedava-se em alguma parte no meio das moitas e fechava os lábios com um dedo; podia passar pelo gênio do lugar, quer dizer, o gênio do silêncio, de um silêncio que se afigurava nitidamente como a negação e o antípoda da palavra falada, como um ato de emudecer, portanto, mas absolutamente não era desprovido de conteúdo ou de vida. Para os dois visitantes do sexo masculino aquela seria sem dúvida uma ocasião de tirar os chapéus, se os tivessem levado. Mas, já que andavam descobertos – também Hans Castorp passara a fazê-lo –, limitaram-se a uma atitude reverente, caminhando com o peso do corpo sobre as pontas dos pés e fazendo uma espécie de pequenas mesuras para os lados, enquanto seguiam, em fila indiana, Karen Karstedt, que conduzia o cortejo.
     A forma do cemitério era irregular. Começava por estender-se num retângulo estreito em direção ao sul, para depois ampliar-se em dois sentidos, por meio de outros retângulos. Evidentemente se haviam feito necessários repetidos aumentos, tendo sido acrescentadas partes dos campos vizinhos. Mesmo assim, o recinto parecia novamente ocupado na sua quase totalidade, ao longo dos muros tanto como na zona interior, menos apreciada em geral. Era difícil assinalar um lugar onde mais alguém, em caso de emergência, pudesse ser enterrado. Discretamente, os três companheiros caminharam durante longo tempo pelas estreitas trilhas e corredores, entre as sepulturas. Estacavam, de vez em quando, para decifrar um nome com as respectivas datas de nascimento e de morte. As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais diversas: havia ingleses, russos ou ao menos eslavos, mas também alemães, portugueses e outros. As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara definitivamente à existência horizontal.
     Em determinado lugar, entre a multidão de jazigos, no interior do campo-santo, quase no seu centro, encontraram um pedacinho de terra ainda rasa, do comprimento de um homem deitado, um pedacinho desocupado, entre dois túmulos em cujas pedras estavam penduradas coroas de perpétuas. Detiveram-se ali, a moça um passo à frente dos seus companheiros, e leram as tristes inscrições gravadas nas pedras, Hans Castorp numa atitude de abandono, com as mãos entrelaçadas, a boca aberta e os olhos sonolentos; o jovem Ziemssen em posição de sentido, não somente ereto, mas até um pouco inclinado para trás. E ambos os primos, possuídos de uma curiosidade simultânea, lançaram um olhar de esguelha para o rosto de Karen Karstedt. Ela percebeu, apesar de toda a discrição, e deixou-se ficar ali, acanhada e humilde, com a cabeça avançada um tanto obliquamente. Com os olhos piscando nervosamente, esboçou um sorriso forçado.

continua pág 209...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Dança macabra (d)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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