Thomas Mann
A Montanha Mágica
Capítulo V
.
continuando...
Hans Castorp sentiu apenas desprezo pelo mocinho que experimentara repugnância por
ela, e dando de ombros expressou essa opinião. No que tocava a ele próprio, a pusilanimidade do
adolescente poético justamente o instigou em sentido oposto: fê-lo procurar oportunidades, em
repetidas visitas, para prestar à infortunada Srª. von Mallinkrodt pequenos serviços de samaritano,
que não exigiam conhecimentos especiais, como por exemplo meter-lhe cuidadosamente na boca
o mingau que lhe serviam no almoço, dar-lhe de beber na chávena de bico, quando se engasgava,
ou ajudá-la a mudar de posição na cama, pois além dos outros males existia ainda uma ferida
causada por uma operação, que lhe complicava a posição deitada. Exercitava-se ele nesses atos
caridosos cada vez que, a caminho da sala de refeições ou de regresso de um passeio, entrava no
quarto dela. Nesses casos pedia a Joachim que seguisse sozinho à frente, e alegava que apenas
queria informar-se do estado do número 50. Invadia-o então a sensação desagradável da
amplitude da sua natureza, uma alegria que se alicerçava na ideia da utilidade e do alcance secreto
das suas ações, e com a qual se mesclava certo prazer furtivo causado pela aparência
impecavelmente cristã dessas atividades; com efeito, essa aparência era tão piedosa, tão caritativa,
tão digna de elogios, que parecia impossível opor-lhe quaisquer argumentos sérios, seja do ponto
de vista militar, seja do da pedagogia e do humanismo.
Ainda não mencionamos Karen Karstedt, e contudo era dela que Hans Castorp e Joachim se ocupavam com especial intensidade. Tratava-se de uma cliente particular do conselheiro, que morava fora do estabelecimento. O Dr. Behrens recomendara-a à caridade dos primos. Fazia quatro anos que ela vivia ali em cima. Sem recursos, dependia de uns parentes pouco generosos, que já uma vez a tinham levado, alegando que de qualquer forma morreria em breve. Sua volta devia-se exclusivamente à intervenção do conselheiro áulico. Domiciliara-se na “aldeia”, numa pensão barata. Tinha dezenove anos e era franzina, com cabelos lisos, oleosos, com olhos que, timidamente, procuravam ocultar um brilho que condizia com o rubor hético das faces, e com uma voz caracteristicamente velada, mas de uma sonoridade simpática. Tossia quase sem interrupção, e as pontas de todos os seus dedos achavam-se cobertas de esparadrapos, por estarem roídas pela doença.
Ainda não mencionamos Karen Karstedt, e contudo era dela que Hans Castorp e Joachim se ocupavam com especial intensidade. Tratava-se de uma cliente particular do conselheiro, que morava fora do estabelecimento. O Dr. Behrens recomendara-a à caridade dos primos. Fazia quatro anos que ela vivia ali em cima. Sem recursos, dependia de uns parentes pouco generosos, que já uma vez a tinham levado, alegando que de qualquer forma morreria em breve. Sua volta devia-se exclusivamente à intervenção do conselheiro áulico. Domiciliara-se na “aldeia”, numa pensão barata. Tinha dezenove anos e era franzina, com cabelos lisos, oleosos, com olhos que, timidamente, procuravam ocultar um brilho que condizia com o rubor hético das faces, e com uma voz caracteristicamente velada, mas de uma sonoridade simpática. Tossia quase sem interrupção, e as pontas de todos os seus dedos achavam-se cobertas de esparadrapos, por estarem roídas pela doença.
A ela é que os primos devotavam um cuidado especial, a pedido do Dr. Behrens, que se
dirigira a eles, “uma vez que eram bons rapazes”. A história começou com uma remessa de flores;
seguiu-se uma visita à pobre Karen, que os recebeu na sua pequena sacada, na “aldeia”; depois
disso, os três organizaram algumas expedições especiais, assistindo, por exemplo, a um concurso
de patinação ou a uma corrida de trenó. Pois a temporada de esportes de inverno chegara ao
auge, no nosso vale alpino. Durante uma semana ia realizar-se um festival, com numerosas
atrações. Até então, os primos haviam prestado apenas uma atenção ocasional e fugaz a esse tipo
de espetáculos e de diversões. Joachim era avesso à simples ideia de se distrair ali em cima. Não
se encontrava em Davos para se divertir; absolutamente não estava ali para viver e para se
conformar com a estadia, tornando-a agradável e variada, senão com a única finalidade de se
desintoxicar o mais depressa possível, para que pudesse voltar à planície e entrar no serviço ativo,
no serviço verdadeiro, em lugar do serviço da cura, que era apenas um sucedâneo, mas cuja
diminuição ele só tolerava malgrado seu. Participar ativamente dos esportes de inverno era-lhe
vedado, e desagradava-o figurar como espectador. Quanto a Hans Castorp, sentia-se por demais
unido aos dali de cima, num sentido muito estrito e íntimo, para manifestar interesse pela
atividade de pessoas que consideravam esse vale como um campo de esportes.
Mas sua caridosa solicitude para com a pobre Srta. Karstedt modificou algum tanto a
situação. A não ser que se mostrasse pouco cristão, Joachim não podia fazer objeções. Foram
buscar a enferma no seu modesto alojamento, na “aldeia”, e passearam-na, sob um frio abrasado
por esplêndido sol, através do bairro inglês, assim chamado por causa do Hotel d'Angleterre, por
entre as lojas luxuosas da rua principal, onde tilintavam os guizos dos trenós e flanavam ricos
sibaritas e vadios de todas as partes do mundo, habitantes da estância balneária e de outros
grandes hotéis, que andavam sem chapéu, trajando modernas roupas esporte, cortadas em
fazendas finas e caras, e exibiam caras bronzeadas pelo ardor do sol hibernal e pela reverberação
da neve. Desceram, finalmente, até o local de patinação, situado não longe da estância, no fundo
do vale, e que no verão servia de campo de futebol. Ouvia-se música. A orquestra da estância
dava um concerto no estrado de madeira do pavilhão, acima da pista retangular, atrás da qual as
montanhas cobertas de neve se destacavam do fundo azul-escuro. Compraram entradas; abriram
caminho através do público, que rodeava a pista nas arquibancadas erguidas em três dos seus
lados; encontraram lugares e olharam o espetáculo. Os patinadores, vestidos com jaquetas justas e
calças pretas de malha, requebravam-se, adejavam, descreviam figuras, saltavam e giravam. Um
casal de virtuoses – profissionais que não participavam das competições – realizou uma proeza
que em todo o vasto mundo só ele sabia fazer e desencadeou toques de clarins e salvas de palmas.
No campeonato de velocidade, seis moços de diferentes nacionalidades, dobrados para a frente,
com as mãos nas costas e, às vezes, com um lenço entre os dentes, deram em árdua luta seis
voltas em torno do extenso retângulo. O som de uma campainha misturou-se com a música. De
vez em quando, a multidão rebentava em frenéticos aplausos e aclamações.
Era um ambiente colorido aquele que contemplavam os três enfermos, os primos e sua
pupila. Ingleses, com boinas escocesas e dentes brancos, conversavam em francês com senhoras
de perfumes penetrantes, vestidas dos pés à cabeça com lãs variegadas; algumas usavam calças.
Americanos de cabeça pequena, com os cabelos colados ao crânio, e com o cachimbo na boca,
usavam casacos com o forro de pele à mostra. Russos barbudos e elegantes, de aparência
barbaramente rica, e holandeses, mestiços de malaios, estavam sentados no meio de alemães e
suíços. Entremeava-se em toda parte gente de proveniência indistinta, de fala francesa, oriunda
dos Bálcãs ou do Levante; um mundo aventureiro pelo qual Hans Castorp demonstrava um certo
fraco, e que Joachim rejeitava como sendo equívoco e despido de caráter. Nos intervalos,
crianças realizavam concursos humorísticos, tropeçando ao longo da pista com um pé calçado de
esqui e o outro de patim; houve também uma competição cm que os meninos empurravam pás
nas quais estavam sentadas as meninas. Faziam corridas de velas, sendo vencedor o que
conservava a vela acesa até chegar à outra extremidade do campo. Tinham que transpor
obstáculos, ou encher regadores com batatas usando colheres de estanho. Os adultos divertiam
se muito. Eram assinaladas as mais ricas, as mais celebres e as mais graciosas entre as crianças – a
filhinha de um multimilionário holandês, o filho de um príncipe alemão, e um garoto de doze
anos que tinha o nome de uma marca de champanha mundialmente conhecida. Também a pobre
Karen lançava gritos de júbilo, interrompidos por acessos de tosse. De tanto prazer, batia as
mãos com os dedos carcomidos. Estava cheia de gratidão.
Os primos levaram-na também ao campeonato de trenó. A meta final não ficava longe
nem do Berghof nem do domicílio de Karen Karstedt. A pista partia da Schatzalp e terminava na
“aldeia”, entre as casas da vertente do oeste. Ali se achava um pequeno pavilhão de controle, que
recebia, pelo telefone, a comunicação da partida de cada trenó. Por entre as barreiras de neve
gelada, ao longo das curvas de brilho metálico, precipitavam-se os chassis planos, tripulados por
homens e mulheres vestidos de lã branca, com faixas das cores de diferentes países em redor do
peito; desciam das alturas, um a um, bastante espaçados. Viam-se rostos avermelhados, que a
neve açoitava. As quedas, os choques entre dois trenós, que viravam, espalhando pela neve a sua
equipe, eram fotografados pelo público. Aqui também tocava uma banda. Os espectadores
estavam instalados em pequenas tribunas ou avançavam pelo estreito trilho que se abrira a pá, ao
longo da pista, e por cima desta passavam pontes de madeira, igualmente ocupadas pela multidão,
a observar a competição dos trenós, que de tempos em tempos deslizavam zunindo. Os
cadáveres do sanatório situado lá em cima seguiam o mesmo caminho, a toda a velocidade, por
baixo das pontes, acompanhando as curvas, descendo rumo ao vale – pensou Hans Castorp, e
também se expressou nesse sentido.
Uma tarde, resolveram levar Karen Karstedt ao cinema “bioscópio” de Platz, porquanto
ela se mostrava muito feliz com todas essas diversões. O ar viciado parecia estranho aos três,
acostumados como estavam a uma atmosfera puríssima. Pesava-lhes o peito e nublava-lhes a
cabeça. Mas nesse ar trepidava uma vida múltipla, que se sucedia na tela, diante dos seus olhos
doloridos; uma vida apresentada em pedacinhos, divertida e apressada, cheia de uma inquietação
saltitante, nervosa na demora, sempre prestes a desaparecer, acompanhada por uma musicazinha
que aplicava o compasso do tempo atual à fuga das imagens pertencentes ao passado, e que,
apesar da limitação dos seus recursos, sabia lançar mão de todos os registros da solenidade e da
pompa, da paixão, da barbárie e da sensualidade lânguida. Era uma violenta história de amor e de
crime, que se desenrolava silenciosamente ante eles. A ação passava-se na corte de um déspota
oriental e constava de acontecimentos precipitados, cheios de ostentação e de nudez, saturados
da libidinosidade do soberano e da fúria religiosa dos súditos, transbordante de crueldade, de
cobiça e volúpia assassina e de um realismo meticuloso, quando se tratava de fazer apreciar a
musculatura de uns braços de verdugo – numa palavra, uma coisa fabricada à base do
conhecimento íntimo dos desejos secretos da civilização internacional que formava a assistência.
Settembrini, como homem de juízo, provavelmente condenaria da forma mais severa esse
espetáculo contrário à humanidade; sua ironia reta e clássica fustigaria o abuso da técnica com o
fim de dar vida a representações tão cheias de desprezo dos homens. Essa, pelo menos, era a
opinião de Hans Castorp, que ele segredou ao primo. A Srª. Stöhr, porém, que também estava no
cinema, não longe dos três, parecia toda enlevada, e seu estólido rosto vermelho crispava-se de
tanto gozo.
O mesmo aspecto ofereciam, de resto, as fisionomias dos demais espectadores. Quando a
derradeira e trêmula imagem de uma sequência de cenas se desvanecia e se fazia luz na sala,
exibindo à multidão o campo das visões em forma de uma tela vazia, faltava até uma
oportunidade para bater palmas. Não estava presente ninguém que se pudesse aplaudir e admirar,
graças à arte por ele demonstrada. Os artistas que se haviam reunido para dar o espetáculo que o
público acabava de desfrutar fazia muito se tinham dispersado. O que se vira eram apenas as
sombras das suas façanhas, milhões de imagens, brevíssimos instantâneos, em que se dissecara a
sua atividade durante o processo fotográfico, para que fosse possível restituí-la ao elemento do
tempo, cada vez que se quisesse, num curso tremeluzente de tanta rapidez. O silêncio da
assistência após o fim da ilusão tinha qualquer coisa de inerte e repugnante. As mãos jaziam
impotentes em face do nada. As pessoas esfregavam os olhos, miravam fixamente o ar, tinham
vergonha da claridade e desejavam voltar à escuridão, para tornar a contemplar, para novamente
ver como se desenrolavam, transplantadas para um novo tempo e arrebicadas pela música,
aquelas cenas pertencentes a um outro tempo.
O déspota morria vítima de um punhal, lançando, com a boca aberta, urros que não se
ouviam. A seguir foram mostradas imagens de todas as partes do mundo: o presidente da
República Francesa, de cartola, com a grã-cruz da Legião de Honra, respondendo, do assento de
um landô, a um discurso de saudação; o vice-rei da índia, assistindo às bodas de um rajá; o
príncipe herdeiro alemão no pátio de um quartel de Potsdam. Viam-se a vida numa aldeia de
indígenas de Novo Mecklenburg, uma rinha de galos em Bornéu, selvagens desnudos que
tocavam flautas soprando pelo nariz, uma caça de elefantes bravios, uma cerimônia na corte real
do Sião, uma rua de bordéis no Japão, com gueixas sentadas atrás de grades de madeira. Viam-se
samoiedos agasalhados, atravessando, em trenós puxados por renas, um ermo nervoso da Ásia
setentrional; viam-se peregrinos russos rezando em Hebron, e um delinquente persa que recebia
bastonadas. Presenciava-se tudo isso. O espaço ficava aniquilado, e o tempo recuava. O Ali e o
Outrora tinham-se transformado num Aqui e num Agora, que deslizavam, dançavam, envoltos
em música. Uma jovem marroquina, em trajes de seda listrada, ajaezada de correntes, fivelas e
anéis, com os exuberantes seios semidesnudos, aproximava-se de repente, em tamanho natural;
tinha as narinas dilatadas e os olhos cheios de vida animalesca. As feições estavam em pleno
movimento. Ria-se, exibindo os dentes brancos. Uma das mãos, cujas unhas pareciam mais claras
que a pele, era mantida à altura dos olhos, qual uma pala, enquanto a outra acenava para o
público. As pessoas fitavam, acanhadas, a encantadora sombra que fingia enxergar e não
enxergava, que absolutamente não era atingida pelos olhares, e cujo riso e aceno não se referia ao
presente, senão que pertencia ao Ali e ao Outrora, de modo que teria sido absurdo retribuí-lo.
Isto, como já dissemos, mesclava o prazer com uma sensação de impotência. Por fim o fantasma
desapareceu. Uma clareza vazia estendeu-se por sobre a tela, onde apareceu a palavra “Fim”.
Chegara a seu fim o ciclo de espetáculos, e em silêncio a sala se esvaziou, enquanto um novo
público já se apertava lá fora, desejoso de assistir a uma repetição dessa sequência de cenas.
Animados pela Srª. Stöhr, que se uniu a eles, foram ainda visitar o café da estância, por
amor à pobre Karen, que juntava as mãos, de tanta gratidão. Ali também havia música. Uma
pequena orquestra, com casacas vermelhas, tocava sob a regência de um primeiro-violino tcheco
ou húngaro, que, separado da sua banda, se achava no meio dos pares dançantes e investia contra
o seu instrumento com frenéticas contorções do corpo. Em torno das mesas exibia-se a vida
mundana. Eram servidas bebidas seletas. Os primos pediram laranjada para si próprios e para a
sua pupila, para se refrescarem, já que a atmosfera estava quente e carregada de poeira. A Srª.
Stöhr preferiu um licor doce. A essa hora – afirmou ela – ainda não reinava muita animação. Um
pouco mais tarde, o baile seria bem mais alegre. Numerosos pacientes dos diversos sanatórios,
bem como enfermos não internados, que moravam nos hotéis e na própria estância, entrariam na
dança, em número muito maior do que agora. Não eram raros os casos graves que nesse salão
haviam passado, em plena festa, para a eternidade, emborcando a taça da alegria de viver e
sofrendo a hemorragia final in dulci jubilo. O que a crassa ignorância da Srª. Stöhr fez desse “dulci
jubilo” foi realmente extraordinário. Tomou a primeira palavra de empréstimo, do vocabulário
italiano-musical do marido, dando-lhe a pronúncia “dolce”. A segunda lembrava “jubileu” ou
qualquer canto tirolês. Os dois primos inclinaram-se ao mesmo tempo para os canudos dos seus
copos quando esse latim se ostentou; mas a Srª. Stöhr não se desconcertou por tão pouca coisa.
Pelo contrário, mostrando obstinadamente os dentes de lebre, serviu-se de toda espécie de
alusões e de indiretas para descobrir a razão de ser das relações entre os três jovens. Parecia-lhe
evidente no que dizia respeito à pobre Karen, que, segundo, a Srª. Stöhr, devia estar
satisfeitíssima com a corte que lhe faziam dois cavalheiros elegantes. Menos claro afigurava-se-lhe
o caso com relação aos primos, mas, não obstante a sua estupidez e ignorância, a intuição
feminina ajudou-a a formar uma ideia, ainda que incompleta e trivial. Adivinhou e deixou
entender, mediante alfinetadas, que o verdadeiro cavaleiro era Hans Castorp, ao passo que o
jovem Ziemssen era apenas assistente; opinou que Hans Castorp, cuja inclinação por Mme.
Chauchat não lhe escapara, cortejava a mísera Karstedt tão-somente como sucedâneo, visto que,
evidentemente, não sabia como aproximar-se da outra – opinião muito digna de uma Srª. Stöhr,
desprovida de todo fundo moral, insuficiente e baseada numa intuição desprezível. Por isso, Hans
Castorp limitou sua resposta a um olhar fatigado e desdenhoso, quando a mulher a expressou de
forma banalmente chistosa. Com efeito, as relações com a pobre Karen constituíam para ele uma
espécie de sucedâneo e de recurso suplementar, proveitoso de um modo pouco claro, assim
como era o caso das suas demais empresas caritativas. Mas, ao mesmo tempo, tinham a sua
finalidade própria essas suas ações piedosas. A satisfação que Hans Castorp experimentava ao
introduzir o mingau na boca da inválida Srª. von Mallinckrodt, ao ouvir como o Sr. Ferge
descrevia o inferno do choque pleural ou ao ver a pobre Karen bater as mãos com os dedos
cobertos de esparadrapos, de tanta alegria e gratidão – essa satisfação era, em que pese a sua
natureza derivada e relativa, de um caráter espontâneo e puro; tinha a sua origem num espírito
formativo oposto àquele que o Sr. Settembrini representava na sua pedagogia, mas
suficientemente valioso, segundo a opinião do jovem Hans Castorp, para que se aplicasse a ele o
placet experiri.
A casinha onde morava Karen Karstedt achava-se situada nas proximidades do curso
d'água e dos trilhos da via férrea, à margem da estrada que conduzia à “aldeia”. Dessa forma era
fácil para os primos irem buscá-la, quando, depois do café da manhã, a quisessem levar ao passeio
regulamentar. Dirigindo-se à “aldeia”, na intenção de chegar à rua principal, tinham ante os seus
olhos o Kleine Schiahorn, em seguida as três agulhas que se chamavam as Grüne Türme, e ainda
mais à direita a cúspide do Dorfberg. A um quarto da altura da sua encosta via-se um cemitério, o
cemitério da “aldeia”, rodeado de um muro, e que prometia uma linda vista; motivo por que valia
a pena escolhê-lo para objetivo de um passeio. Uma bela manhã foram até lá, os três. Aliás, todas
as manhãs eram belas nessa época do ano, calmas e ensolaradas, de um azul profundo, com uma
atmosfera entre quente e fria, cintilante de alvura. Os primos – um com a tez cor de tijolo e o
outro bronzeado – iam sem sobretudo, que teria sido incômodo sob esse sol abrasador. O jovem
Ziemssen usava traje esporte e galochas por causa da neve; Hans Castorp calçava da mesma
forma, mas levava calças compridas, pois não tinha espírito desportivo suficiente para andar de
calções de golfe. Estava-se na primeira metade de fevereiro do novo ano. Sim, o ano mudara
desde que Hans Castorp se encontrava ali, e já se escrevia outro número. Um dos ponteiros
grandes do relógio que media as eras do universo dera para a frente um passo correspondente a
uma unidade; não se tratava de um ponteiro dos maiores, como aquele que se referia aos milênios – muito poucos dentre os que viviam agora chegariam a vê-lo avançar – nem tampouco o dos
séculos ou ainda o dos decênios. Mas o ponteiro dos anos acabava de movimentar-se, embora
Hans Castorp se achasse ali fazia pouco mais de meio ano apenas, e daí por diante permaneceria
parado, à maneira dos ponteiros de certos relógios grandes, que só de cinco em cinco minutos se
põem em movimento. Antes que fizesse novo avanço, o ponteiro dos meses teria de avançar dez
vezes, um pouco mais, portanto, do que fizera desde a chegada de Hans Castorp. O mês de
fevereiro já não figurava no balanço, visto um mês começado ser um mês liquidado, assim como
uma moeda trocada já se conta como gasta.
Os três companheiros dirigiram-se, pois, certo dia, ao cemitério situado na encosta do
Dorfberg. Mencionamos esse passeio para manter o nosso relato rigorosamente completo.
Devia-se essa iniciativa a Hans Castorp, e Joachim, que a princípio se mostrara contrário, levando
em consideração a pobre Karen deixara-se convencer e reconhecera que não adiantaria tentar
iludi-la e esconder-lhe, à maneira da covarde Srª. Stöhr, tudo quanto lhe pudesse lembrar o fim.
Karen Karstedt ainda não se entregava às ideias otimistas, peculiares à última fase da
enfermidade; estava a par do seu estado, e sabia o que significava a necrose das pontas dos dedos.
Não ignorava tampouco que os seus parentes avarentos não admitiriam o luxo de se transportar
o féretro ao seu país natal, e que depois do exitus lhe designariam um modesto lugarzinho ali em
cima. Numa palavra, podia-se opinar que o objetivo desse passeio, do ponto de vista moral, era
mais próprio para ela do que muitos outros, como, por exemplo, o ponto de partida dos trenós
ou o cinema. Por outro lado, era apenas um ato decente de camaradagem visitar os lá de cima,
desde que não se quisesse considerar o cemitério como mera curiosidade ou como um terreno
neutro de passeio.
Subiam lentamente, em fila indiana, porque a trilha aberta a pá não permitia irem lado a
lado. Deixando atrás e abaixo as mais altas das casas construídas na vertente, olhavam, enquanto
subiam, a paisagem familiar na sua magnificência invernal, que mais uma vez se deslocava na
perspectiva e lhes abria um outro aspecto. Dilatava-se rumo ao nordeste, em direção à entrada do
vale. Surgia a esperada vista do lago circular, rodeado de bosques, congelado e coberto de neve.
Atrás da sua margem oposta, os planos inclinados das montanhas pareciam encontrar-se no solo,
e mais além assomavam cumes desconhecidos, sobrelevando uns aos outros, diante do céu azul.
Os três contemplaram tudo isso, detendo-se na neve, em frente ao portão de pedra que dava
acesso ao cemitério. A seguir entraram, abrindo os batentes de ferro, que estavam simplesmente
encostados.
Também no interior acharam trilhas limpas de neve, que passavam por entre as elevações
dos túmulos cercados de grades e estufados de neve, esses leitos bem-dispostos e simétricos, com
sua cruzes de pedra ou de metal, e com seus pequenos monumentos adornados de medalhões e
dísticos. Não se ouvia nem se via ninguém. A calma, o isolamento, a paz do lugar pareciam
profundos e íntimos em muitos sentidos. Um anjinho ou menino de pedra, com um boné de
neve colocado obliquamente na cabeça, quedava-se em alguma parte no meio das moitas e
fechava os lábios com um dedo; podia passar pelo gênio do lugar, quer dizer, o gênio do silêncio,
de um silêncio que se afigurava nitidamente como a negação e o antípoda da palavra falada, como
um ato de emudecer, portanto, mas absolutamente não era desprovido de conteúdo ou de vida.
Para os dois visitantes do sexo masculino aquela seria sem dúvida uma ocasião de tirar os
chapéus, se os tivessem levado. Mas, já que andavam descobertos – também Hans Castorp
passara a fazê-lo –, limitaram-se a uma atitude reverente, caminhando com o peso do corpo sobre
as pontas dos pés e fazendo uma espécie de pequenas mesuras para os lados, enquanto seguiam,
em fila indiana, Karen Karstedt, que conduzia o cortejo.
A forma do cemitério era irregular. Começava por estender-se num retângulo estreito em
direção ao sul, para depois ampliar-se em dois sentidos, por meio de outros retângulos.
Evidentemente se haviam feito necessários repetidos aumentos, tendo sido acrescentadas partes
dos campos vizinhos. Mesmo assim, o recinto parecia novamente ocupado na sua quase
totalidade, ao longo dos muros tanto como na zona interior, menos apreciada em geral. Era difícil
assinalar um lugar onde mais alguém, em caso de emergência, pudesse ser enterrado.
Discretamente, os três companheiros caminharam durante longo tempo pelas estreitas trilhas e
corredores, entre as sepulturas. Estacavam, de vez em quando, para decifrar um nome com as
respectivas datas de nascimento e de morte. As pedras sepulcrais e as cruzes eram simples e
demonstravam pouco aparato. No que toca às inscrições, os nomes eram das origens mais
diversas: havia ingleses, russos ou ao menos eslavos, mas também alemães, portugueses e outros.
As datas, porém, contavam uma história delicada; o intervalo que separava uma da outra era
geralmente de extraordinária brevidade; o número de anos decorridos entre o nascimento e o
exitus elevava-se, na média, a vinte ou pouco mais; muita juventude e pouca gente sisuda povoava
o acampamento, um povo volúvel que viera aqui de todas as partes do mundo e se adaptara
definitivamente à existência horizontal.
Em determinado lugar, entre a multidão de jazigos, no interior do campo-santo, quase no
seu centro, encontraram um pedacinho de terra ainda rasa, do comprimento de um homem
deitado, um pedacinho desocupado, entre dois túmulos em cujas pedras estavam penduradas
coroas de perpétuas. Detiveram-se ali, a moça um passo à frente dos seus companheiros, e leram
as tristes inscrições gravadas nas pedras, Hans Castorp numa atitude de abandono, com as mãos
entrelaçadas, a boca aberta e os olhos sonolentos; o jovem Ziemssen em posição de sentido, não
somente ereto, mas até um pouco inclinado para trás. E ambos os primos, possuídos de uma
curiosidade simultânea, lançaram um olhar de esguelha para o rosto de Karen Karstedt. Ela
percebeu, apesar de toda a discrição, e deixou-se ficar ali, acanhada e humilde, com a cabeça
avançada um tanto obliquamente. Com os olhos piscando nervosamente, esboçou um sorriso
forçado.
continua pág 209...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Dança macabra (d)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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