O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
3. Abaixou-se para o príncipe, de súbito, e disse com estranho,
misterioso e quase assustador sussurro:
- Um desses indivíduos impudentes que
não valem a biqueira do seu sapato, príncipe adorado! E não é ao meu sapato que
os comparo! Tome nota, muito especialmente, que não estou tomando como
termo de comparação o meu sapato, a este aqui, pois tenho muito respeito de
mim mesmo para dizer diretamente que... Mas só o senhor é capaz de
compreender que não me referindo em tal caso à biqueira do meu sapato,
mostro, talvez, o mais alto orgulho de mérito - e de consideração! Salvo o senhor,
mais ninguém compreenderá isso... E ele, ainda menos do que os demais. Ele
não compreende nada, príncipe, ele é absolutamente, totalmente incapaz de
compreender. Para entender, urge ter coração!
Alarmando-se, o príncipe marcou para o dia seguinte, àquela mesma hora, um
encontro com o general que, reanimado ante tal conforto, saiu todo confiante. E,
à noite, entre seis e sete horas, o príncipe mandou pedir a Liébediev que viesse
vê-lo, por um instante.
- Muito orgulhoso por tamanha honra! - foi logo dizendo
Liébediev, cuja aparição foi feita com alacridade, decerto para desvanecer a
suspeita de que se estivera, nesses três dias, a esconder, evitando encontrar o
príncipe.
Sentou-se na beira da cadeira, com sorrisos e tiques, os olhinhos
cautelosos e risonhos, friccionando as mãos, assumindo um ar bem-aventurado
ante a perspectiva de ir Ouvir certa comunicação de importância primacial
desde muito esperada e adivinhada por todo o mundo. O príncipe retraiu-se.
(Desde
tempos notara que, gratuitamente, toda gente esperava uma novidade,
esperando só que ela fosse participada para se congratularem, adiantando-se,
porém, em prognósticos, sorrisos e olhares. Keller, por exemplo, uma ou duas
vezes, viera visitá-lo, muito pressuroso, não se demorando mais do que um
minuto, mas o desejo de Lhe dar parabéns era notório nele; ambas as vezes,
porém, não ousara sequer começar, tendo-se retirado imediatamente, para um
salão de bilhar onde, ultimamente, fazia sensação, bebendo “pesadamente”. Até
mesmo Kólía, apesar de sua tristeza, tentara iniciar um assunto indireto...) Sem
preâmbulos, Míchkín perguntou a Liébediev - havia irritação na sua voz - que
pensava do estado de espírito do General Ívolguin, que parecia andar tão inquieto.
(Complementarmente, pôs Liébediev a par da cena de ainda há pouco.)
- Cada qual tem motivos para inquietações, príncipe... e, de modo especial, nesta
hora estranha e difícil, conforme o senhor sabe. - foi uma resposta dada com
secura a que se seguiu o silêncio ofendido que caracteriza o ar de uma pessoa
que acaba de se decepcionar profundamente por causa de uma perspectiva
falhada.
- Que filosofia! - sorriu o príncipe.
- Em nossa idade, bem proveitosa que é uma filosofiazinha, por causa da sua
lição prática. Mas até ela é menoscabada! Da minha parte, excelentíssimo
príncipe, lhe sou muito grato pela confiança que se dignou testemunhar-me a
respeito de certo e determinado porto, embora até um grau muito relativo,
apenas... Compreendo que assim devesse ser e não me queixo...
- Liébediev,
parece que você está ressentido por alguma coisa!
- Absolutamente, de modo
algum, distinto e resplendente príncipe! De modo algum. - Liébediev aproximou-se, levando as mãos ao coração. - Pelo contrário. Sei que,
nem pela posição que desfruto neste mundo, nem pelas qualidades sejam de
espírito ou de coração, e tampouco pela soma de minha fortuna, sei que, de
modo algum, mereço a confiança com que o senhor me honra, e que está muito
acima de minhas esperanças; se, de algum modo, o nosso servir, só será como
escravo e mercenário. Nem poderia ser de outra forma. Ressentido.., não estou.
Estou, mais é... triste.
- Vamos, vamos, Lukián Timoféietch!
- Nem poderia ser de outra forma. E assim, verifico, também, o presente caso.
Vindo ao seu encontro, levando o senhor no coração e no pensamento, disse
comigo: “Sei que, como amigo, não mereço a vossa confiança, mas como
locatário da casa em que morais, talvez venha, em tempo oportuno, e um pouco
antes do acontecimento que se vai dar, a receber um aviso, ou... no mínimo, uma
notificação, ligadas as coisas e a certas transformações esperadas para um futuro
próximo.”
Dizendo isto, Liébediev não tirava do príncipe os olhinhos agudos, a tal ponto que
o príncipe, estupefato, quase se decidiu a lhe satisfazer a curiosidade, acabando,
porém, por se enraivecer.
- Não compreendo uma só palavra! E você não passa de um terrível intrigante! - disse e rompeu em uma gargalhada. Instantaneamente Liébediev também riu,
confirmando e redobrando as suas esperanças. - E sabe você, Lukián
Timoféietch, o que tenho a, dizer-lhe? Não fique zangado, mas a sua simplicidade
me espanta. E não só a sua. Você está esperando uma coisa de mim, e com
tamanha simplicidade que eu me sinto verdadeiramente envergonhado e com a
consciência doendo, por não ter nada, absolutamente nada, para satisfazê-lo.
Juro, é a verdade. Nada! Viria você a supor isso? - e o príncipe tornou a rir.
Liébediev arranjou um arde dignidade, habilmente ficando calado, por astúcia e
velhacaria, talvez para não continuar a ser acoimado de ingenuamente indiscreto
e curioso. Desde muito o príncipe se arriscava a tê-lo como inimigo por causa do
modo com que habitualmente o mandava embora. Mas o príncipe sempre fizera
isso não porque ele o desgostasse, mas por causa dessa Curiosidade insuportável,
Ainda um dia desses, por exemplo, Míchkin diante dele se refreara, só porque
considerava os seus sonhos e esperanças como crime; e, todavia, Liébediev
imediatamente tomou tal reserva como prova de uma desconfiança pessoal, ou
mesmo como aversão; melindrara-se, com o coração cheio de ciúme não só de
Kólia e de Keller, como da própria filha Vera. Todavia, agora mesmo, estava
apto a contar uma porção de novidades; e sinceramente desejava contá-las,
apesar de estar assim sinistramente calado.
Depois de breve silêncio, perguntou:
- Em que lhe posso ser útil, excelentíssimo príncipe, já que, afinal, me mandou
chamar ainda agora?
- Ora! Queria perguntar-lhe a respeito do general - respondeu o príncipe, saindo
do seu estado de meditação. - É a respeito daquele roubo de que você me falou.
- A respeito de quê?
- Ora!... Não se faça de desentendido! Oh! Por que há de você estar sempre
representando Lukián Timoféietch? O dinheiro, o dinheiro, os
quatrocentos rublos que deixou cair no outro dia do bolso, e de que me veio
falar, aquela manhã, quando ia a Petersburgo. Compreendeu, afinal?
- Há... O
senhor está falando daqueles quatrocentos rublos? - balbuciou Liébediev como se
ainda estivesse adivinhando. - Muito obrigado, príncipe, por sua simpatia, que me
envaidece muito. Mas.., eu os encontrei algum tempo depois.
- Encontrou? Ah! Louvado seja Deus!
- Esta sua exclamação ainda é mais uma generosidade da sua parte, pois
quatrocentos rublos não são uma ninharia desprezível para um pobre homem que
vive do seu árduo trabalho, com uma récua de crianças sem mãe!...
- Mas não é
a isso que me refiro! Naturalmente que me alegra saber que você encontrou o
dinheiro. - o príncipe procurou apressadamente corrigir-se. - Mas como foi que o
encontrou?
- Muito simplesmente. Estava debaixo da cadeira sobre a qual eu dependurara o
meu casaco. Com certeza a carteira escorregou do bolso para o assoalho.
- Debaixo da cadeira? Mas como? Você me disse que tinha estado a revirar todos
os cantos! Como foi que lhe passou despercebido um lugar tão à vista?
- Tenho a
convicção de que olhei. Lembro-me muito bem de ter olhado. Agachei-me,
fiquei de quatro, apalpei todos os lugares com a mão, mudei as cadeiras dos seus
lugares; não confiava apenas em meus olhos! E lá, debaixo da cadeira, não havia
coisa nenhuma; o lugar estava vazio e liso como as minhas mãos; mas, ainda
assim, continuei a tatear uma porção de tempo. É sabida a atrapalhação em que
fica uma pessoa quando quer achar logo qualquer coisa perdida, mesmo que seja
sem importância. Embora vendo que não tem nada ali, a pessoa, apesar do lugar
estar vazio, torna a espiar uma dúzia de vezes.
- Bem o suponho! Mas como foi
que você acabou vendo? Ainda não compreendi - murmurou o príncipe
desconcertado. - Você me contou, naquela ocasião, que tinha procurado, que não
achou nada lá, e como é que, de repente, isso foi aparecer?
- E de repente isso foi aparecer! - e Liébedíev suportou o olhar esquisito do
príncipe que lhe fez esta outra pergunta: - E o general?
- Que é que tem o
general?... - Liébediev tornou a ficar perplexo.
- Ó, meu caro! Estou perguntando
o que foi que disse o general, quando você olhou a carteira. Pois não sabe muito
bem que vocês dois estiveram procurando juntos?
- Antes, tínhamos estado a procurar juntos. Mas quando achei, confesso,
sofreei a minha língua e preferi não contar a ele que eu tinha encontrado sozinho
a carteira.
- Mas... por quê? E o dinheiro? Estava todo lá?
- Abri a carteira. O dinheiro estava
intato. Nota por nota.
- Devia ter vindo dizer-me - observou-lhe o príncipe,
pensativo.
- Temi incomodá-lo, príncipe, em seus interesses pessoais e, de certo
modo, absorventes; e, além disso, fiz como se não tivesse encontrado nada. Abri a
carteira, revistei-a, tornei a fechá-la e a recoloquei no mesmo lugar debaixo da
cadeira.
- Mas, para quê?
- Oh! Por nada. Por curiosidade - cacarejou Liébediev, esfregando as mãos.
- Então, está caída lá, desde anteontem?
- Oh! Não. Só ficou lá um dia e uma noite.
O senhor há de compreender que, em parte, eu queria que o general a
encontrasse. Pois, se eu a encontrei, por que não haveria o general de dar com
ela assim tão à mostra, debaixo da cadeira, e como que hipnotizando os olhos?
Mudei a cadeira uma porção de vezes, de lugar, ajeitando-a de maneira que a
carteira ficasse completamente à mostra. Mas o general candidamente não a viu,
de modo que ela ficou lá vinte e quatro horas. Ele me parece
extraordinariamente distraído, agora! E não há meios de avisá-lo. Conversa,
conta histórias, dá risadinhas, e de repente fica de gênio ruim comigo! Não sei
por quê. Já a última vez, quando saímos da sala, deixei a porta escancarada, de
propósito. Tive a impressão de que ele hesitou e quis falar qualquer coisa.
Naturalmente estava preocupado a respeito da carteira, com uma tal soma de
dinheiro dentro; acabou saindo, mostrando uma raiva terrível, mas não disse
nada. Já na rua, nem dois passos tínhamos dado juntos, ele me largou, tomando
direção oposta. É verdade, porém, que nos encontramos à noite, na taverna.
- Mas você, afinal, pegou a carteira de debaixo da cadeira?
- Não; desapareceu
de lá, naquela mesma noite.
- E onde está agora?
- Oh... Aqui - e Liébediev riu inclinando-se, com todo o seu peso, para trás, e
encarando Míchkin, prazenteiramente. - Ela apareceu aqui, de repente, na aba do
meu casaco. Aqui! Não quer ver? Apalpe.
A aba esquerda do casaco formava,
com efeito, do lado de dentro, uma espécie de teta, no lugar mais visível,
mostrando perfeitamente, ao tato, que ali havia uma carteira de couro que tinha
caído de um bolso furado.
- Extraí-a e espiei. O dinheiro estava lá, inteirinho. Enfiei-a outra vez no
mesmo lugar. E com ela tenho andado, para cá e para lá, desde ontem de manhã.
Assim a danada me acompanha, batendo contra as minhas pernas quando ando.
- E você não notara isso?
- Se eu não notei isso? Ah! Ah! E acreditaria o senhor, nobilíssimo príncipe,
embora o fato não mereça ser notado pelo senhor, que os meus bolsos sempre
estiveram novinhos, bons, só agora, de repente, em uma só noite, aparecendo um
deles com um buraco deste tamanho!? Repare só, não parece que foi cortado
com um canivete? Não chega a ser inacreditável?
- E... o general?
- Esteve zangado o dia todo. Tanto ontem, como hoje. Pavorosamente mal
humorado. Antes andava contente, risonho; depois passou apenas a responder aos
meus cumprimentos. Lá uma vez ou outra, fica sentimental, até às lágrimas, mas
desta vez está zangado comigo deveras. E, até fiquei receoso, pois ele é um
militar e eu não o sou. Ontem estávamos sentados juntos na taverna. Como por
acaso, a aba do meu casaco se abriu e de modo, se não exagerado,
espalhafatoso. E aquilo ficou à mostra, como uma montanha! Ele olhou,
disfarçou, depois se danou. Não costuma me encarar. Só me encara quando está
sentimental, ou então embriagado. Mas ontem me cravou um olhar tal que me
correu um calafrio pela espinha. Por causa das dúvidas, acho que amanhã vou
contar a ele que achei a carteira... Mas ainda quero ter, antes, uma noite de farra
e de provocação, com ele.
- Por que você o atormenta tanto assim?
- Eu não o estou atormentando, príncipe,
eu não o estou atormentando - replicou calorosamente Liébediev. - Eu amo o general sinceramente. E o respeito mesmo; de agora por diante, quer
o senhor acredite ou não, ele me é mais caro do que antes. Acabei por apreciá-lo
ainda mais.
Liébediev dizendo isso, impetuosamente, parecia tão sincero, que o príncipe
ainda ficou mais indignado.
- Se você gosta dele como diz, por que o atormenta desta forma? Por quê? Pelo
fato, tão-só, de ter colocado a carteira em lugar que você pudesse ver, debaixo
da cadeira, e, a seguir, no forro do seu casaco, mostrando com isso que não quer
decepcionar você, a respeito dele; mas até com a simplicidade do seu coração
franco ne pedindo, por este modo, perdão?!... Ele prova, com isso, que conta com
a delicadeza dos seus sentimentos e, por conseguinte, que acredita na
sua amizade, para com ele, em qualquer circunstância! E, todavia, você reduz
um homem como esse, um homem honrado, a uma tal humilhação!
- Honradíssimo, príncipe, um homem honradíssimo! - concordou Liébediev, com
os olhos em chispas. - E o senhor, nobilíssimo príncipe, é a única pessoa capaz de pronunciar palavras
assim, a respeito dele! Aí está por que lhe sou devoto, por que estou pronto a
venerar o senhor, apesar de eu, com os meus vícios inumeráveis, estar podre até
a medula! Mas está decidido! Faço que achei a carteira agora mesmo, já, e não
amanhã. Vou tirá-la aqui, diante do senhor. Ei-la. Espie o dinheiro! Intato! Vê?
Tome-o, príncipe, guarde-o até amanhã. Até amanhã, ou até quando u senhor
quiser. Depois o receberei. E quer saber de uma coisa príncipe, vou fazer correr
que a carteira foi encontrada por aí, num jardim, por exemplo, atrás de uma
pedra! Na noite mesmo em que foi perdida. Que acha?
- É preferível não lhe
dizer pessoalmente que encontrou a carteira. Deixe-o verificar, sozinho, que não
há mais nada enchendo a aba do seu casaco, e ele compreenderá.
- O senhor pensa assim? Não seria melhor dizer que a achei, e fazer uns ares de
tanta naturalidade que ele não desconfie de nada, agora?
- N... ão! - argumentou
o príncipe - N... ão! É muito tarde para isso. Ainda fica mais arriscado. O
melhor, realmente, é não dizer nada. Seja amável com ele, mas não demais...
e... Enfim, você bem que sabe!
- Que sei, sei, príncipe! E sei até que me vai ser
difícil fazer isso com toda a distinção precisa. Pois só um coração como o seu
sabe como é que deve agir. De mais a mais o general é propenso a irritações,
ultimamente me tratando, até, de cenho fechado. Se, num minuto, choraminga e
chega ao cúmulo de me abraçar, logo a seguir, inesperadamente, se abespinha
comigo, escarnecendo, desprezando-me... Foi até por isso que aquela hora lhe
mostrei, assim como quem não queria, a aba do casaco. Ah! Ah! E já vou indo,
pois está mais do que claro que estou tomando seu tempo e interrompendo os
seus mais urgentes sentimentos, se bem explico...
- Pelo amor de Deus! Lá vem você outra vez com seus mistérios... Pisando de
mansinho, pisando de mansinho...
O caso conquanto liquidado, lançou o príncipe
em uma confusão ainda maior. Começou a aguardar, com impaciência, a
entrevista do general, marcada para o dia seguinte.
continua página 444...
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Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (3b) - Abaixou-se para o príncipe
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