sábado, 7 de junho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (3b) - Abaixou-se para o príncipe

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
3.


      Abaixou-se para o príncipe, de súbito, e disse com estranho, misterioso e quase assustador sussurro:

- Um desses indivíduos impudentes que não valem a biqueira do seu sapato, príncipe adorado! E não é ao meu sapato que os comparo! Tome nota, muito especialmente, que não estou tomando como termo de comparação o meu sapato, a este aqui, pois tenho muito respeito de mim mesmo para dizer diretamente que... Mas só o senhor é capaz de compreender que não me referindo em tal caso à biqueira do meu sapato, mostro, talvez, o mais alto orgulho de mérito - e de consideração! Salvo o senhor, mais ninguém compreenderá isso... E ele, ainda menos do que os demais. Ele não compreende nada, príncipe, ele é absolutamente, totalmente incapaz de compreender. Para entender, urge ter coração! 

     Alarmando-se, o príncipe marcou para o dia seguinte, àquela mesma hora, um encontro com o general que, reanimado ante tal conforto, saiu todo confiante. E, à noite, entre seis e sete horas, o príncipe mandou pedir a Liébediev que viesse vê-lo, por um instante.

- Muito orgulhoso por tamanha honra! - foi logo dizendo Liébediev, cuja aparição foi feita com alacridade, decerto para desvanecer a suspeita de que se estivera, nesses três dias, a esconder, evitando encontrar o príncipe.

     Sentou-se na beira da cadeira, com sorrisos e tiques, os olhinhos cautelosos e risonhos, friccionando as mãos, assumindo um ar bem-aventurado ante a perspectiva de ir Ouvir certa comunicação de importância primacial desde muito esperada e adivinhada por todo o mundo. O príncipe retraiu-se. (Desde tempos notara que, gratuitamente, toda gente esperava uma novidade, esperando só que ela fosse participada para se congratularem, adiantando-se, porém, em prognósticos, sorrisos e olhares. Keller, por exemplo, uma ou duas vezes, viera visitá-lo, muito pressuroso, não se demorando mais do que um minuto, mas o desejo de Lhe dar parabéns era notório nele; ambas as vezes, porém, não ousara sequer começar, tendo-se retirado imediatamente, para um salão de bilhar onde, ultimamente, fazia sensação, bebendo “pesadamente”. Até mesmo Kólía, apesar de sua tristeza, tentara iniciar um assunto indireto...)      Sem preâmbulos, Míchkín perguntou a Liébediev - havia irritação na sua voz - que pensava do estado de espírito do General Ívolguin, que parecia andar tão inquieto. (Complementarmente, pôs Liébediev a par da cena de ainda há pouco.) 

- Cada qual tem motivos para inquietações, príncipe... e, de modo especial, nesta hora estranha e difícil, conforme o senhor sabe. - foi uma resposta dada com secura a que se seguiu o silêncio ofendido que caracteriza o ar de uma pessoa que acaba de se decepcionar profundamente por causa de uma perspectiva falhada. 
- Que filosofia! - sorriu o príncipe. 
- Em nossa idade, bem proveitosa que é uma filosofiazinha, por causa da sua lição prática. Mas até ela é menoscabada! Da minha parte, excelentíssimo príncipe, lhe sou muito grato pela confiança que se dignou testemunhar-me a respeito de certo e determinado porto, embora até um grau muito relativo, apenas... Compreendo que assim devesse ser e não me queixo...
- Liébediev, parece que você está ressentido por alguma coisa!
- Absolutamente, de modo algum, distinto e resplendente príncipe! De modo algum. - Liébediev aproximou-se, levando as mãos ao coração. - Pelo contrário. Sei que, nem pela posição que desfruto neste mundo, nem pelas qualidades sejam de espírito ou de coração, e tampouco pela soma de minha fortuna, sei que, de modo algum, mereço a confiança com que o senhor me honra, e que está muito acima de minhas esperanças; se, de algum modo, o nosso servir, só será como escravo e mercenário. Nem poderia ser de outra forma. Ressentido.., não estou. Estou, mais é... triste.
- Vamos, vamos, Lukián Timoféietch!
- Nem poderia ser de outra forma. E assim, verifico, também, o presente caso. Vindo ao seu encontro, levando o senhor no coração e no pensamento, disse comigo: “Sei que, como amigo, não mereço a vossa confiança, mas como locatário da casa em que morais, talvez venha, em tempo oportuno, e um pouco antes do acontecimento que se vai dar, a receber um aviso, ou... no mínimo, uma notificação, ligadas as coisas e a certas transformações esperadas para um futuro próximo.”  

     Dizendo isto, Liébediev não tirava do príncipe os olhinhos agudos, a tal ponto que o príncipe, estupefato, quase se decidiu a lhe satisfazer a curiosidade, acabando, porém, por se enraivecer.

- Não compreendo uma só palavra! E você não passa de um terrível intrigante! - disse e rompeu em uma gargalhada. Instantaneamente Liébediev também riu, confirmando e redobrando as suas esperanças. - E sabe você, Lukián Timoféietch, o que tenho a, dizer-lhe? Não fique zangado, mas a sua simplicidade me espanta. E não só a sua. Você está esperando uma coisa de mim, e com tamanha simplicidade que eu me sinto verdadeiramente envergonhado e com a consciência doendo, por não ter nada, absolutamente nada, para satisfazê-lo. Juro, é a verdade. Nada! Viria você a supor isso? - e o príncipe tornou a rir.

     Liébediev arranjou um arde dignidade, habilmente ficando calado, por astúcia e velhacaria, talvez para não continuar a ser acoimado de ingenuamente indiscreto e curioso. Desde muito o príncipe se arriscava a tê-lo como inimigo por causa do modo com que habitualmente o mandava embora. Mas o príncipe sempre fizera isso não porque ele o desgostasse, mas por causa dessa Curiosidade insuportável, Ainda um dia desses, por exemplo, Míchkin diante dele se refreara, só porque considerava os seus sonhos e esperanças como crime; e, todavia, Liébediev imediatamente tomou tal reserva como prova de uma desconfiança pessoal, ou mesmo como aversão; melindrara-se, com o coração cheio de ciúme não só de Kólia e de Keller, como da própria filha Vera. Todavia, agora mesmo, estava apto a contar uma porção de novidades; e sinceramente desejava contá-las, apesar de estar assim sinistramente calado.
     Depois de breve silêncio, perguntou:

- Em que lhe posso ser útil, excelentíssimo príncipe, já que, afinal, me mandou chamar ainda agora? 
- Ora! Queria perguntar-lhe a respeito do general - respondeu o príncipe, saindo do seu estado de meditação. - É a respeito daquele roubo de que você me falou. 
- A respeito de quê? 
- Ora!... Não se faça de desentendido! Oh! Por que há de você estar sempre representando Lukián Timoféietch? O dinheiro, o dinheiro, os quatrocentos rublos que deixou cair no outro dia do bolso, e de que me veio falar, aquela manhã, quando ia a Petersburgo. Compreendeu, afinal? 
- Há... O senhor está falando daqueles quatrocentos rublos? - balbuciou Liébediev como se ainda estivesse adivinhando. - Muito obrigado, príncipe, por sua simpatia, que me envaidece muito. Mas.., eu os encontrei algum tempo depois.
- Encontrou? Ah! Louvado seja Deus!
- Esta sua exclamação ainda é mais uma generosidade da sua parte, pois quatrocentos rublos não são uma ninharia desprezível para um pobre homem que vive do seu árduo trabalho, com uma récua de crianças sem mãe!...
- Mas não é a isso que me refiro! Naturalmente que me alegra saber que você encontrou o dinheiro. - o príncipe procurou apressadamente corrigir-se. - Mas como foi que o encontrou? 
- Muito simplesmente. Estava debaixo da cadeira sobre a qual eu dependurara o meu casaco. Com certeza a carteira escorregou do bolso para o assoalho. 
- Debaixo da cadeira? Mas como? Você me disse que tinha estado a revirar todos os cantos! Como foi que lhe passou despercebido um lugar tão à vista?
- Tenho a convicção de que olhei. Lembro-me muito bem de ter olhado. Agachei-me, fiquei de quatro, apalpei todos os lugares com a mão, mudei as cadeiras dos seus lugares; não confiava apenas em meus olhos! E lá, debaixo da cadeira, não havia coisa nenhuma; o lugar estava vazio e liso como as minhas mãos; mas, ainda assim, continuei a tatear uma porção de tempo. É sabida a atrapalhação em que fica uma pessoa quando quer achar logo qualquer coisa perdida, mesmo que seja sem importância. Embora vendo que não tem nada ali, a pessoa, apesar do lugar estar vazio, torna a espiar uma dúzia de vezes. 
- Bem o suponho! Mas como foi que você acabou vendo? Ainda não compreendi - murmurou o príncipe desconcertado. - Você me contou, naquela ocasião, que tinha procurado, que não achou nada lá, e como é que, de repente, isso foi aparecer?
- E de repente isso foi aparecer! - e Liébedíev suportou o olhar esquisito do príncipe que lhe fez esta outra pergunta: - E o general? 
- Que é que tem o general?... - Liébediev tornou a ficar perplexo.
- Ó, meu caro! Estou perguntando o que foi que disse o general, quando você olhou a carteira. Pois não sabe muito bem que vocês dois estiveram procurando juntos?
- Antes, tínhamos estado a procurar juntos. Mas quando achei, confesso, sofreei a minha língua e preferi não contar a ele que eu tinha encontrado sozinho a carteira.
- Mas... por quê? E o dinheiro? Estava todo lá?
- Abri a carteira. O dinheiro estava intato. Nota por nota. 
- Devia ter vindo dizer-me - observou-lhe o príncipe, pensativo. 
- Temi incomodá-lo, príncipe, em seus interesses pessoais e, de certo modo, absorventes; e, além disso, fiz como se não tivesse encontrado nada. Abri a carteira, revistei-a, tornei a fechá-la e a recoloquei no mesmo lugar debaixo da cadeira. 
- Mas, para quê? 
- Oh! Por nada. Por curiosidade - cacarejou Liébediev, esfregando as mãos. 
- Então, está caída lá, desde anteontem? 
- Oh! Não. Só ficou lá um dia e uma noite. O senhor há de compreender que, em parte, eu queria que o general a encontrasse. Pois, se eu a encontrei, por que não haveria o general de dar com ela assim tão à mostra, debaixo da cadeira, e como que hipnotizando os olhos? Mudei a cadeira uma porção de vezes, de lugar, ajeitando-a de maneira que a carteira ficasse completamente à mostra. Mas o general candidamente não a viu, de modo que ela ficou lá vinte e quatro horas. Ele me parece extraordinariamente distraído, agora! E não há meios de avisá-lo. Conversa, conta histórias, dá risadinhas, e de repente fica de gênio ruim comigo! Não sei por quê. Já a última vez, quando saímos da sala, deixei a porta escancarada, de propósito. Tive a impressão de que ele hesitou e quis falar qualquer coisa. Naturalmente estava preocupado a respeito da carteira, com uma tal soma de dinheiro dentro; acabou saindo, mostrando uma raiva terrível, mas não disse nada. Já na rua, nem dois passos tínhamos dado juntos, ele me largou, tomando direção oposta. É verdade, porém, que nos encontramos à noite, na taverna. 
- Mas você, afinal, pegou a carteira de debaixo da cadeira? 
- Não; desapareceu de lá, naquela mesma noite. 
- E onde está agora? 
- Oh... Aqui - e Liébediev riu inclinando-se, com todo o seu peso, para trás, e encarando Míchkin, prazenteiramente. - Ela apareceu aqui, de repente, na aba do meu casaco. Aqui! Não quer ver? Apalpe. 

     A aba esquerda do casaco formava, com efeito, do lado de dentro, uma espécie de teta, no lugar mais visível, mostrando perfeitamente, ao tato, que ali havia uma carteira de couro que tinha caído de um bolso furado. 

- Extraí-a e espiei. O dinheiro estava lá, inteirinho. Enfiei-a outra vez no mesmo lugar. E com ela tenho andado, para cá e para lá, desde ontem de manhã. Assim a danada me acompanha, batendo contra as minhas pernas quando ando. 
- E você não notara isso? 
- Se eu não notei isso? Ah! Ah! E acreditaria o senhor, nobilíssimo príncipe, embora o fato não mereça ser notado pelo senhor, que os meus bolsos sempre estiveram novinhos, bons, só agora, de repente, em uma só noite, aparecendo um deles com um buraco deste tamanho!? Repare só, não parece que foi cortado com um canivete? Não chega a ser inacreditável? 
- E... o general? 
- Esteve zangado o dia todo. Tanto ontem, como hoje. Pavorosamente mal humorado. Antes andava contente, risonho; depois passou apenas a responder aos meus cumprimentos. Lá uma vez ou outra, fica sentimental, até às lágrimas, mas desta vez está zangado comigo deveras. E, até fiquei receoso, pois ele é um militar e eu não o sou. Ontem estávamos sentados juntos na taverna. Como por acaso, a aba do meu casaco se abriu e de modo, se não exagerado, espalhafatoso. E aquilo ficou à mostra, como uma montanha! Ele olhou, disfarçou, depois se danou. Não costuma me encarar. Só me encara quando está sentimental, ou então embriagado. Mas ontem me cravou um olhar tal que me correu um calafrio pela espinha. Por causa das dúvidas, acho que amanhã vou contar a ele que achei a carteira... Mas ainda quero ter, antes, uma noite de farra e de provocação, com ele.
- Por que você o atormenta tanto assim? 
- Eu não o estou atormentando, príncipe, eu não o estou atormentando - replicou calorosamente Liébediev. - Eu amo o general sinceramente. E o respeito mesmo; de agora por diante, quer o senhor acredite ou não, ele me é mais caro do que antes. Acabei por apreciá-lo ainda mais.  

     Liébediev dizendo isso, impetuosamente, parecia tão sincero, que o príncipe ainda ficou mais indignado.

- Se você gosta dele como diz, por que o atormenta desta forma? Por quê? Pelo fato, tão-só, de ter colocado a carteira em lugar que você pudesse ver, debaixo da cadeira, e, a seguir, no forro do seu casaco, mostrando com isso que não quer decepcionar você, a respeito dele; mas até com a simplicidade do seu coração franco ne pedindo, por este modo, perdão?!... Ele prova, com isso, que conta com a delicadeza dos seus sentimentos e, por conseguinte, que acredita na sua amizade, para com ele, em qualquer circunstância! E, todavia, você reduz um homem como esse, um homem honrado, a uma tal humilhação!
- Honradíssimo, príncipe, um homem honradíssimo! - concordou Liébediev, com os olhos em chispas. - E o senhor, nobilíssimo príncipe, é a única pessoa capaz de pronunciar palavras assim, a respeito dele! Aí está por que lhe sou devoto, por que estou pronto a venerar o senhor, apesar de eu, com os meus vícios inumeráveis, estar podre até a medula! Mas está decidido! Faço que achei a carteira agora mesmo, já, e não amanhã. Vou tirá-la aqui, diante do senhor. Ei-la. Espie o dinheiro! Intato! Vê? Tome-o, príncipe, guarde-o até amanhã. Até amanhã, ou até quando u senhor quiser. Depois o receberei. E quer saber de uma coisa príncipe, vou fazer correr que a carteira foi encontrada por aí, num jardim, por exemplo, atrás de uma pedra! Na noite mesmo em que foi perdida. Que acha?
- É preferível não lhe dizer pessoalmente que encontrou a carteira. Deixe-o verificar, sozinho, que não há mais nada enchendo a aba do seu casaco, e ele compreenderá.
- O senhor pensa assim? Não seria melhor dizer que a achei, e fazer uns ares de tanta naturalidade que ele não desconfie de nada, agora?
- N... ão! - argumentou o príncipe - N... ão! É muito tarde para isso. Ainda fica mais arriscado. O melhor, realmente, é não dizer nada. Seja amável com ele, mas não demais... e... Enfim, você bem que sabe!
- Que sei, sei, príncipe! E sei até que me vai ser difícil fazer isso com toda a distinção precisa. Pois só um coração como o seu sabe como é que deve agir. De mais a mais o general é propenso a irritações, ultimamente me tratando, até, de cenho fechado. Se, num minuto, choraminga e chega ao cúmulo de me abraçar, logo a seguir, inesperadamente, se abespinha comigo, escarnecendo, desprezando-me... Foi até por isso que aquela hora lhe mostrei, assim como quem não queria, a aba do casaco. Ah! Ah! E já vou indo, pois está mais do que claro que estou tomando seu tempo e interrompendo os seus mais urgentes sentimentos, se bem explico...
- Pelo amor de Deus! Lá vem você outra vez com seus mistérios... Pisando de mansinho, pisando de mansinho...  

     O caso conquanto liquidado, lançou o príncipe em uma confusão ainda maior. Começou a aguardar, com impaciência, a entrevista do general, marcada para o dia seguinte.

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (3b) - Abaixou-se para o príncipe
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