segunda-feira, 30 de junho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (7a) - Contentava-se o príncipe

O Idiota

Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte

7.

     Contentava-se o príncipe em prestar atenção na conversa de Agláia com o Príncipe N... e Evguénii Pávlovitch quando, inesperadamente, o velhote anglomaníaco (que entretinha, a um canto, o velho dignitário, contando-lhe com muita animação uma história qualquer), pronunciou o nome de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev. Míchkin virou-se logo na direção dos dois e ficou a escutar.
     Discorriam sobre negócios públicos e comentavam certos distúrbios havidos recentemente em propriedades rurais. Devia ser divertido o cunho da narrativa do anglomaníaco pois o velho, ao fim de cada período do locutor, desandava a rir. Aquele, de fato, narrava de modo muito pitoresco, ajudando o efeito com as mãos, pondo uma ênfase muito flexível nos fonemas. E contava como se vira obrigado, como consequência direta da recente legislação, a vender um esplêndido domínio na província, nada mais nada menos do que pela metade do valor real, embora não estivesse precisado de dinheiro; e como ao mesmo tempo se vira obrigado a conservar uma outra propriedade que estava arruinada, em litígio e sujeita a embaraços, tendo até gasto dinheiro com isso.

- Para evitar cair na aplicação da lei agrária, tive de protelar o inventário da propriedade antiga de Pavlíchtchev. Mais uma ou duas outras heranças como esta, e eles me arruínam... E deixe que lhe diga que eu deveria entrar na posse de nove mil acres de excelente terra.

     Estando por acaso o General Epantchín perto de Míchkin e lhe notando a atenção toda especial pela conversa, lhe disse baixo:

-  Nem tenha dúvida. Iván Petróvitch é parente do falecido Níkolái Andréievitch; aproveite o ensejo para travar conhecimento.

     O General Epantchín estivera até então a entreter um outro general que era o diretor da sua seção; desde muito percebera a situação deslocada do príncipe, preocupando-se com isso. Desejou trazê-lo com naturalidade para a conversação, e nesse sentido foi desentocá-lo, apresentando-o de novo àqueles grandes personagens.

- Pela morte dos pais, aqui o nosso Liév Nikoláievitch teve Nikolái Andréievitch como tutor! - explicou, indicando Míchkin a Iván Petróvitch.
- Agrada-me sobremodo ouvir isso - disse cortesmente este último. - E, de fato, recordo-me bem disso. Quando, à entrada, Iván Fiódorovitch nos apresentou, imediatamente reconheci o senhor. E foi pelo rosto; mudou pouco, é verdade. E me lembrei, embora o senhor só tivesse uns dez ou doze anos quando o vi. Aliás os seus traços são fáceis de guardar. Reconhecem-se logo...
- O senhor me viu quando eu era criança? 
     
     Iván Petróvitch reparou na surpresa do príncipe, e continuou:

- Sim, e há muito tempo! O senhor costumava viver em casa de meu primo, em Zlatovérkhovo. Não se recorda de mim? É muito provável que não se possa recordar.., O senhor, naqueles tempos, tinha uma espécie de doença: e que até me impressionou muito, naquela ocasião.
- Não me recordo do senhor, em absoluto - asseverou fervorosamente Míchkin. 

     Seguiram-se mais algumas palavras entre ambos. Da parte de Iván Petróvitch, muito calmas; da parte de Míchkin, muito agitadas. E logo ficou mais ou menos esclarecido que as duas senhoras, solteiras, primas de Pavlíchtchev, que tinham vivido na propriedade dele, em Zlatovérkhovo, e que haviam criado o príncipe, também eram primas de Iván Petróvitch. Este, como aliás qualquer outra pessoa, não saberia explicar o que induzira Pavlíchtchev a tomar tão a peito a proteção do jovem príncipe.

- “Não me ocorreu nenhuma curiosidade a respeito”. - ainda assim, parece que tinha uma excelente memória, pois ainda se lembrava de quanto a sua prima mais velha, Márfa Nikítichna, fora severa para com o seu pequenino pupilo - “tanto que, uma ocasião, me levantei a seu favor e ataquei o sistema de educação dela. Por qualquer coisinha, vara, e outra vez, vara! Convenhamos que para uma criança doente...” E como era mais terna a irmã caçula, Natália Nikítichna, para com a pobre criança... “Estão ambas - prosseguiu ele - na província de X... (embora não esteja certo se estão vivas) onde Pavlíchtchev lhes deixou pequenina propriedade extremamente bela. Parece-me que Márfa Nikítichna quis entrar para um convento, mas não tenho certeza, não. Acho que estou confundindo com outra pessoa... Foi ela, sim; contou-me no outro dia a senhora do médico.” 

     O príncipe ouvia com olhos radiantes de prazer e emoção. Calorosamente declarou que nunca se perdoaria de não ter ainda arranjado uma oportunidade para empreender uma visita às senhoras que o tinham educado, não obstante ainda poucos meses antes ter estado nas províncias do centro. Adiava sempre, tolhido por outros negócios. Mas que, desta vez.., estava decidido. Iria procurá-las nem que tivesse de se perder na província de X...

- Com que então o senhor conhece Natália Nikítichna!? Que delicada e santa natureza! E Márfa Nikítichna também!... Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de Márfa Nikítichna. Era severa, mas... como não haveria de perder a paciência com um idiota da marca que eu era naquele tempo? Ah! Ah! O senhor mesmo sabe muito bem que eu era um completo idiota. Ah! Ah! Ora, o senhor me viu, como é que não se lembraria disso? Diga-me, faça o favor, então... Meu Deus!... Então o senhor é parente de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev?!
- Dou-lhe a minha palavra que sou - disse Iván Petróvitch com um sorriso, examinando o príncipe. 
- Oh! Eu não disse isso porque estivesse duvidando... E, na verdade, como haveria eu de duvidar afinal, ah, ah! Mas que homem que foi Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev! Que coração boníssimo!

     Míchkin não estava propriamente sem fôlego e sim “sufocado pela gratidão”, como disse no dia seguinte Adelaída a seu noivo, Príncipe Chtch ...

- Misericórdia e clemência! exclamou rindo Iván Petróvitch. - Por que não poderei eu também ser parente de um homem de coração boníssimo? 
- Oh! Meu Deus! - disse logo Míchkin  dominado pela confusão e cada vez mais afoito - Tornei a dizer uma estupidez. Mas isso tinha de acontecer porque eu... eu... eu... Mas eis outro despropósito que me ia saindo! Mas, quem sou afinal, digam, diante de tantos interesses, tão vastos interesses, comparado com um tão nobre coração? Pois o senhor bem sabe: ele foi realmente um coração nobilíssimo, não foi? Não foi? 

     O príncipe positivamente tremia todo. É difícil dizer por que motivo estaria tão agitado, em tal paroxismo de emoção, assim quase inconveniente, toda a sua maneira tão desproporcionada com o assunto geral e a conversa do seu grupo. Seu estado de espírito era consequência da mais viva e ardorosa gratidão que se estendia a Iván Petróvitch, senão a todos. “Espumava de felicidade”. Iván Petróvitch começou a fitá-lo mais detidamente, e o próprio dignitário passou a prestar-lhe uma atenção mais especial.
     A Princesa Bielokónskaia, contraindo os lábios, olhava para Míchkin com raiva. O Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch, o Príncipe Chtch... e as moças interromperam a conversa e se puseram a escutar. Agláia apenas parecia assustada, mas Lizavéta Prokófievna tinha o coração em sobressalto. E a culpa era delas, mãe e filhas, que se tinham comportado de modo tão estranho, na antevisão de tudo, havendo decidido que seria melhor para o príncipe ficar toda a noite sentado e quieto. Mas a verdade é que quando o viram sentado, em completa solidão, perfeitamente satisfeito em seu canto, se sentiram mortalmente penalizadas. Aleksándra estivera a ponto de ir ter com ele, atravessando o salão e, para ficar mais próxima, se ajuntara ao grupo do Príncipe N..., perto da velha Bielokónskaia. Quando porém, agora, Míchkin resolvera falar, ficaram por demais preocupadas.

- Bem razão tem o senhor de dizer que ele foi o mais excelente dos homens. - pronunciou Iván Petróvitch com uma expressão onde já não havia traço de sorriso. - Sim, sim, era um excelente homem! Excelente e valioso. - acrescentou depois de uma pausa. - De valor sob qualquer aspecto, pode-se dizer - insistiu mais expressivamente ainda, depois de um outro intervalo. - E é muito agradável ouvir isso da sua parte!...
- Não foi com esse Pavlíchtchev que houve uma história extravagante com.., com o abade?.., o abade?... Esqueci o abade qual foi... mas todo o mundo andou falando disso em certa ocasião! - sobreveio o dignitário, tentando lembrar- se.  
- Com o Abade Goureau, um jesuíta - lembrou-lhe Iván Petróvitch. - E aí tem o senhor a que se expõe a nossa mais excelente e preciosa gente! Pois ele era, além de tudo, um homem de boa estirpe e de fortuna, viria a ser um gentil homem da câmara se tivesse preferido continuar nas funções... E não é que repentinamente abandonou a carreira para ingressar na Igreja Romana e se tornar um jesuíta, com a maior decisão, com uma espécie mesmo de entusiasmo? Mas morreu na hora certa... conforme todo o mundo disse.

     Míchkin ficou inteiramente pasmado.

- Pavlíchtchev converteu-se à Igreja Romana? Impossível! -exclamou horrorizado.
- “Impossível”? Com efeito! - E Iván pronunciou isto com, firmeza. - Exagera muito, o senhor, não lhe parece, caro príncipe?... Principalmente tendo, como tem, tão alto conceito do falecido... Certamente que ele foi um homem de grande coração e isso, principalmente, atribuo eu o sucesso desse velhaco Goureau. Mas nem me pergunte que amolações e trapalhadas não tive eu depois com esse caso e com esse Goureau. Imagine o senhor disse voltando se para o dignitário -, tentaram demandar contra testamento e me vi obrigado a recorrer às mais vigorosas medidas para os repor no uso da razão, pois eles eram de primeira ordem neste gênero de especialidade. Formidável gente! Mas, louvado seja Deus! Tudo isso aconteceu em Moscou. Dirigi-me diretamente à Corte e logo os reconduzimos a um raciocínio mais lúcido. 
- O senhor nem imagina quanto me aflige e me faz pasmar asseverou o príncipe.
- Sinto muito. Mas como fato em si, tudo isso não passou de insignificante negócio e acabou em fumaça, como tais coisas sempre acabam. Nem penso mais nisso. No verão passado - virou-se para o velho - contaram-me que a Condessa K... entrou para um convento católico, no estrangeiro. Os russos, uma vez na mão desses velhacos, não se livram mais... especialmente estrangeiro. 
- Isso tudo provém do nosso tédio - murmurou, com autoridade, o velho dignitário. 
- As maneiras que eles empregam para conquistar prosélitos é repugnante e só própria deles. Sabem como intimidar o povo. Também a mim me pregaram um bom susto, em Viena, em 1832. É o que lhe digo! Mas não me apanharam. Fugi lhes das malhas, ah, ah! Consegui escapulir...
- A mim, o que me contaram, meu caro senhor, foi que o senhor fugiu de Viena para Paris com a Condessa Levítzkaia, abandonando o seu posto, e não por causa dos jesuítas - intrometeu-se inesperadamente a Princesa Bielokónskaia. 
- Procurando bem, deve haver nisso um jesuíta - retorquiu o velho dignitário, rindo ante a agradável recordação. Mas genialmente acrescentou, refugiando-se no pasmo do Príncipe Liév Nikoláievitch que o estava ouvindo de boca aberta e que ainda mais espantado ficou: - O senhor parece-me muito religioso, coisa que hoje em dia não se encontra com frequência entre gente nova.  

     Por qualquer motivo o príncipe se tornou objeto de atenção para ele que evidentemente quis estudá-lo mais intimamente.

- Pavlíchtchev, que era um homem iluminado e um cristão, um verdadeiro cristão - declarou Míchkin sem que isso fosse esperado -, como pôde aceitar uma fé que não é cristã? O catolicismo vale tanto como qualquer religião não cristã - ajuntou, de repente, olhando em volta, como a querer, com os olhos cintilantes, esquadrinhar todo o grupo.
- Ora, vamos, isso é exagerado - balbuciou o velho que olhou, surpreendido, para o General Epantchín. 
- Por que diz o senhor que o catolicismo é uma religião anticristã? - interrogou Iván Petróvitch virando-se lá da sua cadeira. - Que é então?
- Primeiramente é uma religião anticristã - começou o príncipe com excesso de animação, respondendo com uma presteza mais que afoita. - Em segundo lugar, o catolicismo é até pior do que o ateísmo, na minha opinião. Sim, esta é a minha opinião. O ateísmo apenas nega, ao passo que o catolicismo deturpa o Cristo, calunia, difama e se opõe ao Cristo. Prega o anticristo! Declaro e assevero que prega o anticristo. Esta é a convicção a que cheguei e que me atribulou. O catolicismo romano não consegue sustentar a sua posição sem uma política universal de supremacia e exclama: “Non possumus!” Assim, a meu ver, nem religião é, mas tão somente uma espécie de tentativa de continuação do Império Romano Ocidental, tudo nela está subordinado a esta ideia, começando mesmo pela fé. O Papa se apoderou da terra, seu trono terrestre, e empunhou o gládio. Desde então tudo continuou da forma antiga, sendo que à espada e ao gládio eles juntaram a mentira, a fraude, o embuste, o fanatismo, a superstição e a vilania. Divertiram-se com os mais santos. mais sinceros e mais ferventes sentimentos do povo. Trocaram tudo, tudo, pelo dinheiro, pela vil força terrena. E não é justamente isso que ensina o Anticristo? Como poderia o ateísmo deixar de provir dele? O ateísmo emergiu do próprio catolicismo romano! Este gerou aquele. Começou pelos seus adeptos: poderiam eles crer em si próprios? Um se fortaleceu com a reação contra o outro. Um foi procriado pela mentira e pela incapacidade espiritual do outro. Ateísmo! Entre nós são só as chamadas classes excepcionais que não creem, aquela camada que conforme tão bem se expressou Evguénii Pávlovitch, perdeu as suas raízes. Mas aí pela Europa uma formidável massa de gente está começando a perder a fé, um pouco por causa da treva e da mentira e muito, principalmente agora, por causa do fanatismo e do ódio da igreja e da cristandade. 

Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (7a) - Contentava-se o príncipe
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