Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
7.
Contentava-se o príncipe em prestar atenção na conversa de Agláia com o
Príncipe N... e Evguénii Pávlovitch quando, inesperadamente, o velhote
anglomaníaco (que entretinha, a um canto, o velho dignitário, contando-lhe com
muita animação uma história qualquer), pronunciou o nome de Nikolái
Andréievitch Pavlíchtchev. Míchkin virou-se logo na direção dos dois e ficou a
escutar.
Discorriam sobre negócios públicos e comentavam certos distúrbios havidos
recentemente em propriedades rurais. Devia ser divertido o cunho da narrativa
do anglomaníaco pois o velho, ao fim de cada período do locutor, desandava a rir.
Aquele, de fato, narrava de modo muito pitoresco, ajudando o efeito com as
mãos, pondo uma ênfase muito flexível nos fonemas. E contava como se vira
obrigado, como consequência direta da recente legislação, a vender um
esplêndido domínio na província, nada mais nada menos do que pela metade do
valor real, embora não estivesse precisado de dinheiro; e como ao mesmo tempo
se vira obrigado a conservar uma outra propriedade que estava arruinada, em
litígio e sujeita a embaraços, tendo até gasto dinheiro com isso.
- Para evitar cair na aplicação da lei agrária, tive de protelar o inventário da
propriedade antiga de Pavlíchtchev. Mais uma ou duas outras heranças como
esta, e eles me arruínam... E deixe que lhe diga que eu deveria entrar na posse de
nove mil acres de excelente terra.
Estando por acaso o General Epantchín perto
de Míchkin e lhe notando a atenção toda especial pela conversa, lhe disse baixo:
-
Nem tenha dúvida. Iván Petróvitch é parente do falecido Níkolái Andréievitch;
aproveite o ensejo para travar conhecimento.
O General Epantchín estivera até
então a entreter um outro general que era o diretor da sua seção; desde muito
percebera a situação deslocada do príncipe, preocupando-se com isso. Desejou
trazê-lo com naturalidade para a conversação, e nesse sentido foi desentocá-lo,
apresentando-o de novo àqueles grandes personagens.
- Pela morte dos pais, aqui o nosso Liév Nikoláievitch teve Nikolái Andréievitch
como tutor! - explicou, indicando Míchkin a Iván Petróvitch.
- Agrada-me sobremodo ouvir isso - disse cortesmente este último. - E, de
fato, recordo-me bem disso.
Quando, à entrada, Iván Fiódorovitch nos apresentou, imediatamente reconheci o
senhor. E foi pelo rosto; mudou pouco, é verdade. E me lembrei, embora o
senhor só tivesse uns dez ou doze anos quando o vi. Aliás os seus traços são fáceis
de guardar. Reconhecem-se logo...
- O senhor me viu quando eu era criança?
Iván Petróvitch reparou na surpresa do príncipe, e continuou:
- Sim, e há muito
tempo! O senhor costumava viver em casa de meu primo, em Zlatovérkhovo.
Não se recorda de mim? É muito provável que não se possa recordar.., O senhor,
naqueles tempos, tinha uma espécie de doença: e que até me impressionou
muito, naquela ocasião.
- Não me recordo do senhor, em absoluto - asseverou
fervorosamente Míchkin.
Seguiram-se mais algumas palavras entre ambos. Da parte de Iván Petróvitch,
muito calmas; da parte de Míchkin, muito agitadas. E logo ficou mais ou menos
esclarecido que as duas senhoras, solteiras, primas de Pavlíchtchev, que tinham
vivido na propriedade dele, em Zlatovérkhovo, e que haviam criado o príncipe,
também eram primas de Iván Petróvitch. Este, como aliás qualquer outra pessoa,
não saberia explicar o que induzira Pavlíchtchev a tomar tão a peito a proteção
do jovem príncipe.
- “Não me ocorreu nenhuma curiosidade a respeito”. - ainda
assim, parece que tinha uma excelente memória, pois ainda se lembrava de
quanto a sua prima mais velha, Márfa Nikítichna, fora severa para com o seu
pequenino pupilo - “tanto que, uma ocasião, me levantei a seu favor e ataquei o
sistema de educação dela. Por qualquer coisinha, vara, e outra vez, vara!
Convenhamos que para uma criança doente...” E como era mais terna a irmã
caçula, Natália Nikítichna, para com a pobre criança... “Estão ambas - prosseguiu ele - na província de X... (embora não esteja certo se estão vivas)
onde Pavlíchtchev lhes deixou pequenina propriedade extremamente bela.
Parece-me que Márfa Nikítichna quis entrar para um convento, mas não tenho
certeza, não. Acho que estou confundindo com outra pessoa... Foi ela, sim;
contou-me no outro dia a senhora do médico.”
O príncipe ouvia com olhos radiantes de prazer e emoção. Calorosamente
declarou que nunca se perdoaria de não ter ainda arranjado uma oportunidade
para empreender uma visita às senhoras que o tinham educado, não obstante
ainda poucos meses antes ter estado nas províncias do centro. Adiava sempre,
tolhido por outros negócios. Mas que, desta vez.., estava decidido. Iria procurá-las nem que tivesse de se perder na província de X...
- Com que então o senhor
conhece Natália Nikítichna!? Que delicada e santa natureza! E Márfa Nikítichna
também!... Perdoe-me, mas acho que o senhor se engana no que disse de Márfa
Nikítichna. Era severa, mas... como não haveria de perder a paciência com um
idiota da marca que eu era naquele tempo? Ah! Ah! O senhor mesmo sabe muito
bem que eu era um completo idiota. Ah! Ah! Ora, o senhor me viu, como é que
não se
lembraria disso? Diga-me, faça o favor, então... Meu Deus!... Então o senhor é
parente de Nikolái Andréievitch Pavlíchtchev?!
- Dou-lhe a minha palavra que
sou - disse Iván Petróvitch com um sorriso, examinando o príncipe.
- Oh! Eu não disse isso porque estivesse duvidando... E, na verdade, como
haveria eu de duvidar afinal, ah, ah! Mas que homem que foi Nikolái
Andréievitch Pavlíchtchev! Que coração boníssimo!
Míchkin não estava
propriamente sem fôlego e sim “sufocado pela gratidão”, como disse no dia
seguinte Adelaída a seu noivo, Príncipe Chtch ...
- Misericórdia e clemência!
exclamou rindo Iván Petróvitch. - Por que não poderei eu também ser parente de
um homem de coração boníssimo?
- Oh! Meu Deus! - disse logo Míchkin dominado pela confusão e cada vez mais afoito - Tornei a dizer uma estupidez.
Mas isso tinha de acontecer porque eu... eu... eu... Mas eis outro despropósito que
me ia saindo! Mas, quem sou afinal, digam, diante de tantos interesses, tão vastos
interesses, comparado com um tão nobre coração? Pois o senhor bem sabe: ele
foi realmente um coração nobilíssimo, não foi? Não foi?
O príncipe
positivamente tremia todo. É difícil dizer por que motivo estaria tão agitado, em
tal paroxismo de emoção, assim quase inconveniente, toda a sua maneira tão
desproporcionada com o assunto geral e a conversa do seu grupo. Seu estado de
espírito era consequência da mais viva e ardorosa gratidão que se estendia a Iván
Petróvitch, senão a todos. “Espumava de felicidade”. Iván Petróvitch começou a
fitá-lo mais detidamente, e o próprio dignitário passou a prestar-lhe uma atenção
mais especial.
A Princesa Bielokónskaia, contraindo os lábios, olhava para
Míchkin com raiva. O Príncipe N..., Evguénii Pávlovitch, o Príncipe Chtch... e as
moças interromperam a conversa e se puseram a escutar. Agláia apenas parecia
assustada, mas Lizavéta
Prokófievna tinha o coração em sobressalto. E a culpa era delas, mãe e filhas,
que se tinham comportado de modo tão estranho, na antevisão de tudo, havendo
decidido que seria melhor para o príncipe ficar toda a noite sentado e quieto. Mas
a verdade é que quando o viram sentado, em completa solidão, perfeitamente
satisfeito em seu canto, se sentiram mortalmente penalizadas. Aleksándra
estivera a ponto de ir ter com ele, atravessando o salão e, para ficar mais
próxima, se ajuntara ao grupo do Príncipe N..., perto da velha Bielokónskaia.
Quando porém, agora, Míchkin resolvera falar, ficaram por demais preocupadas.
- Bem razão tem o senhor de dizer que ele foi o mais excelente dos homens. - pronunciou Iván Petróvitch com uma expressão onde já não havia traço de
sorriso. - Sim, sim, era um excelente homem! Excelente e valioso. - acrescentou
depois de uma pausa. - De valor sob qualquer aspecto, pode-se dizer - insistiu mais expressivamente
ainda, depois de um outro intervalo. - E é muito agradável ouvir isso da sua
parte!...
- Não foi com esse Pavlíchtchev que houve uma história extravagante com..,
com o abade?.., o abade?... Esqueci o abade qual foi... mas todo o mundo andou
falando disso em certa ocasião! - sobreveio o dignitário, tentando lembrar- se.
- Com o Abade Goureau, um jesuíta - lembrou-lhe Iván Petróvitch. - E aí tem o
senhor a que se expõe a nossa mais excelente e preciosa gente! Pois ele era,
além de tudo, um homem de boa estirpe e de fortuna, viria a ser um gentil
homem da câmara se tivesse preferido continuar nas funções... E não é que
repentinamente abandonou a carreira para ingressar na Igreja Romana e se
tornar um jesuíta, com a maior decisão, com uma espécie mesmo de
entusiasmo? Mas morreu na hora certa... conforme todo o mundo disse.
Míchkin
ficou inteiramente pasmado.
- Pavlíchtchev converteu-se à Igreja Romana? Impossível! -exclamou
horrorizado.
- “Impossível”? Com efeito! - E Iván pronunciou isto com, firmeza. - Exagera
muito, o senhor, não lhe parece, caro príncipe?... Principalmente tendo, como
tem, tão alto conceito do falecido... Certamente que ele foi um homem de grande
coração e isso, principalmente, atribuo eu o sucesso desse velhaco Goureau. Mas
nem me pergunte que amolações e trapalhadas não tive eu depois com esse caso
e com esse Goureau. Imagine o senhor disse voltando
se para o dignitário -, tentaram demandar contra testamento e me vi obrigado a
recorrer às mais vigorosas medidas para os repor no uso da razão, pois eles eram
de primeira ordem neste gênero de especialidade. Formidável gente! Mas,
louvado seja Deus! Tudo isso aconteceu em Moscou. Dirigi-me diretamente à
Corte e logo os reconduzimos a um raciocínio mais lúcido.
- O senhor nem
imagina quanto me aflige e me faz pasmar asseverou o príncipe.
- Sinto muito. Mas como fato em si, tudo isso não passou de insignificante negócio
e acabou em fumaça, como tais coisas sempre acabam. Nem penso mais nisso.
No verão passado - virou-se para o velho - contaram-me que a Condessa K...
entrou para um convento católico, no estrangeiro. Os russos, uma vez na mão
desses velhacos, não se livram mais... especialmente estrangeiro.
- Isso tudo
provém do nosso tédio - murmurou, com autoridade, o velho dignitário.
- As maneiras que eles empregam para conquistar prosélitos é repugnante e só
própria deles. Sabem como intimidar o povo. Também a mim me pregaram um
bom susto, em Viena, em 1832. É o que lhe digo! Mas não me apanharam. Fugi
lhes das malhas, ah, ah! Consegui escapulir...
- A mim, o que me contaram, meu
caro senhor, foi que o senhor fugiu de Viena para Paris com a Condessa
Levítzkaia, abandonando o seu posto, e não por causa dos jesuítas - intrometeu-se
inesperadamente a Princesa Bielokónskaia.
- Procurando bem, deve haver nisso um jesuíta - retorquiu o velho dignitário,
rindo ante a agradável recordação. Mas genialmente acrescentou, refugiando-se
no pasmo do Príncipe Liév Nikoláievitch que o estava ouvindo de boca aberta e
que ainda mais espantado ficou: - O senhor parece-me muito religioso, coisa que
hoje em dia não se encontra com frequência entre gente nova.
Por qualquer motivo o príncipe se tornou objeto de atenção para ele que
evidentemente quis estudá-lo mais intimamente.
- Pavlíchtchev, que era um
homem iluminado e um cristão, um verdadeiro cristão - declarou Míchkin sem
que isso fosse esperado -, como pôde aceitar uma fé que não é cristã? O
catolicismo vale tanto como qualquer religião não cristã - ajuntou, de repente,
olhando em volta, como a querer, com os olhos cintilantes, esquadrinhar todo o
grupo.
- Ora, vamos, isso é exagerado - balbuciou o velho que olhou,
surpreendido, para o General Epantchín.
- Por que diz o senhor que o catolicismo é uma religião anticristã? -
interrogou Iván Petróvitch virando-se lá da sua cadeira. - Que é então?- Primeiramente é uma religião anticristã - começou o príncipe com excesso de
animação, respondendo com uma presteza mais que afoita. - Em segundo lugar,
o catolicismo é até pior do que o ateísmo, na minha opinião. Sim, esta é a minha
opinião. O ateísmo apenas nega, ao passo que o catolicismo deturpa o Cristo,
calunia, difama e se opõe ao Cristo. Prega o anticristo! Declaro e assevero que
prega o anticristo. Esta é a convicção a que cheguei e que me atribulou. O
catolicismo romano não consegue sustentar a sua posição sem uma política
universal de supremacia e exclama: “Non possumus!” Assim, a meu ver, nem
religião é, mas tão somente uma espécie de tentativa de continuação do Império
Romano Ocidental, tudo nela está subordinado a esta ideia, começando mesmo
pela fé. O Papa se apoderou da terra, seu trono terrestre, e empunhou o gládio.
Desde então tudo continuou da forma antiga, sendo que à espada e ao gládio eles
juntaram a mentira, a fraude, o embuste, o fanatismo, a superstição e a vilania.
Divertiram-se com os mais santos. mais sinceros e mais ferventes sentimentos do
povo. Trocaram tudo, tudo, pelo dinheiro, pela vil força terrena. E não é
justamente isso que ensina o Anticristo? Como poderia o ateísmo deixar de provir
dele? O ateísmo emergiu do próprio catolicismo romano! Este gerou aquele.
Começou pelos seus adeptos: poderiam eles crer em si próprios? Um se
fortaleceu com a reação contra o outro. Um foi procriado pela mentira e pela
incapacidade espiritual do outro. Ateísmo! Entre nós são só as chamadas classes
excepcionais que não creem, aquela camada que conforme tão bem se
expressou Evguénii Pávlovitch, perdeu as suas raízes. Mas aí pela Europa uma
formidável massa de gente está começando a perder a fé, um pouco por causa
da treva e da mentira e muito, principalmente agora, por causa do fanatismo e do
ódio da igreja e da cristandade.
continua página 490...
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