sábado, 28 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Doença da minha avó)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Primeiro

      Doença da minha avó. 
      Doença de Bergotte. 
      O duque e o médico. 
      Declínio da minha avó. 
      Sua morte.
      Atravessamos a avenida Gabriel, no meio da multidão de passeantes. Fiz a minha avó sentar-se num banco e fui procurar um fiacre. Ela, em cujo coração eu sempre me colocava para ajuizar a pessoa mais insignificante, agora estava fechada para mim, tornara-se uma parte do mundo exterior, e, mais do que a simples passantes, eu ainda era forçado a lhe calar o que pensava de seu estado, silenciar acerca da minha inquietação. Não poderia falar-lhe disso com mais confiança que a uma pessoa estranha. Ela acabava de me restituir os pensamentos, os desgostos, que desde a minha infância lhe confiara para sempre. Ainda não estava morta. Eu já me sentia só. E até aquelas alusões que ela fizera aos Guermantes, a Moliere, a nossas conversas sobre o pequeno clã, assumiam uma aparência sem apoio, sem causa, fantástica, porque saíam do nada dessa mesma criatura que amanhã talvez já não existisse e para quem já não teriam sentido algum, daquele nada incapaz de concebê-las que minha avó seria em breve.

- Senhor, não digo que não, mas o senhor não marcou hora comigo, não tem número. Além disso, não é meu dia de consulta, O senhor deve ter o seu médico. Não posso substituí-lo, a menos que ele me mande chamar para uma conferência. É uma questão de ontologia...

     No momento em que eu fazia sinal para um fiacre, havia encontrado o célebre professor E***, quase amigo de meu pai e de meu avô, de qualquer modo em relações com eles, e que morava na avenida Gabriel, e, tomado de súbita inspiração, fizera-o parar no instante em que entrava em casa, pensando que talvez desse um conselho excelente para a minha avó. Mas, apressado, depois de ter apanhado a sua correspondência, queria despedir-me e só lhe pude falar subindo com ele no elevador, do qual me pediu para deixar apertar os botões, o que nele era mania.  

- Mas, meu senhor, não lhe peço que receba minha avó, há de compreender depois do que lhe disser, ela não tem condições de subir; pelo contrário, peço-lhe que passe daqui a meia hora em nossa casa, para onde ela vai voltar. 
- Passar em sua casa? Mas, senhor, nem pense nisso. Vou jantar na casa do ministro do Comércio, preciso fazer uma visita antes, vou me vestir imediatamente e, para cúmulo da desgraça, uma das minhas duas casacas se rasgou e a outra não tem botoeira para colocar as condecorações. Rogo-lhe, faça-me o favor de não tocar nos botões do elevador, o senhor não sabe manejá-los, é preciso prudência em tudo. Essa botoeira vai me atrasar ainda mais. Enfim, por amizade com os seus familiares, se a sua avó vier logo, poderei recebê-la. Mas previno-lhe que só terei exatamente um quarto de hora para atendê-la.

     Eu partira de imediato, sem mesmo ter saído do elevador, que o professor E*** pusera ele próprio em movimento para me fazer descer, não sem me olhar com desconfiança.
     Bem dizemos que a hora da morte é incerta, mas, quando dizemos isto, afiguramo-nos essa hora como situada num espaço vago e longínquo, não imaginamos que ela tenha uma relação qualquer com o dia já começado, e possa significar que a morte ou sua primeira posse parcial de nós, após a qual não nos larga mais poderá ocorrer nessa mesma tarde, tão pouco incerta, essa tarde em que o emprego de todas as horas está previamente agendado. A gente se empenha em passear para obter, em um mês, o total de ar puro necessário, hesitamos quanto à escolha de uma capa para levar, do cocheiro para chamar, estamos num fiacre, o dia está inteiramente diante de nós, curto, porque desejamos voltar a tempo para receber uma amiga; também gostaríamos que fizesse bom tempo amanhã; e não desconfiamos que a morte que caminhava em nós em outro plano escolheu precisamente aquele dia para entrar em cena, dentro de alguns minutos, mais ou menos no instante em que o carro alcançasse os Champs-Élysées.
     Talvez aqueles a quem habitualmente assusta a singularidade própria da morte encontrem algo de tranquilizador nesse gênero de morte esse gênero de primeiro contato com a morte porque aí ela se reveste de uma aparência conhecida, familiar, cotidiana. Precederam-na um bom almoço e a mesma caminhada que fazem as pessoas de boa saúde. Um regresso em carro descoberto se superpõe ao seu primeiro ataque; por mais doente que estivesse minha avó, afinal diversas pessoas poderiam dizer que às seis da tarde, quando voltamos dos Champs-Élysées, elas a haviam cumprimentado, passando de carro descoberto, num tempo magnífico. Legrandin, que se dirigia para a praça da Concórdia, tirou o chapéu para nós, detendo-se com ar de espanto. Eu, que ainda não me desligara da vida, perguntei à minha avó se ela havia correspondido, lembrando-lhe que ele era suscetível. Minha avó, decerto me achando muito superficial, erguera a mão como para dizer:

"E então? Isso não tem nenhuma importância." 

     Sim, poderia ser dito, momentos antes, enquanto eu buscava um fiacre, que minha avó estava sentada num banco, na avenida Gabriel, que logo depois ela havia passado em carro descoberto. Mas seria mesmo verdade? O banco, ele, para que se mantenha numa avenida embora também esteja submetido a certas condições de equilíbrio -, não necessita de energia. Mas, para que uma criatura viva seja estável, mesmo apoiada num banco ou dentro de um carro, é preciso uma tensão de forças que em geral não percebemos, assim como não percebemos a pressão atmosférica, pois se exerce em todos os sentidos. Talvez se se fizesse o vácuo em nós e se nos deixassem suportar a pressão do ar, sentiríamos, no instante que precederia a nossa destruição, o terrível peso que nada mais neutralizaria. Da mesma forma, quando os abismos da doença e da morte se abrem em nós e que nada mais temos a opor ao tumulto com que o mundo e o nosso próprio corpo desabam sobre nós, então, até sustentar o peso de nossos músculos, até o arrepio que nos devasta a medula, então, até mesmo manter-nos imóveis no que de hábito julgamos não ser mais que a simples posição negativa de uma coisa, exige, se desejamos que a cabeça permaneça ereta e o olhar tranquilo, uma energia vital e torna-se objeto de uma luta exaustiva.
     E, se Legrandin nos olhara com aquele ar de espanto, era que, a ele como aos que então passavam, no fiacre em que minha avó parecia estar sentada sobre a banqueta, ela lhes aparecera afundando, deslizando para o abismo, agarrando-se desesperadamente às almofadas que mal podiam reter seu corpo precipitado, os cabelos em desordem, o olhar perdido, já incapaz de fazer frente ao assalto das imagens que sua pupila não conseguia mais sustentar. Ela aparecera, embora a meu lado, mergulhada nesse mundo desconhecido em cujo seio já recebera os golpes de que ostentava os sinais quando a vira há pouco nos Champs-Élysées, seu chapéu, seu rosto e seu casaco desarrumados pela mão do anjo invisível com quem havia lutado.
     Desde então, tenho pensado que aquele momento de seu ataque não deve ter surpreendido de todo a minha avó, que talvez ela mesma o houvesse previsto muito tempo antes, e vivera à sua espera. Sem dúvida, não tinha sabido quando viria o instante fatal, incerta, semelhando-se aos amantes que uma dúvida do mesmo gênero leva alternativamente a alimentar esperanças sem fundamento e suspeitas injustificadas sobre a fidelidade de sua amante. Mas é raro que essas grandes enfermidades, como a que por fim acabava de feri-la em pleno rosto, não se alojem por muito tempo no doente antes de matá-lo, e durante esse período não se façam logo conhecer, como um vizinho ou locatário sociável. É um terrível conhecimento, menos pelos sofrimentos que provoca do que pela estranha novidade das restrições definitivas que impõe à vida. Vemo-nos morrer, neste caso, não no próprio momento da morte, porém meses e até anos antes, desde que ela horrendamente veio morar conosco. A doente trava conhecimento com o estranho que ela ouve ir e vir pelo cérebro.
     Decerto não o conhece de vista, mas, pelos ruídos que o ouve fazer regularmente, deduz os seus hábitos. Será um malfeitor? Certa manhã, não o ouve mais. Foi-se embora.
     Ah, se fosse para sempre! De noite, ele voltou. Quais são os seus desígnios? O médico, submetido à indagação, como uma amante adorada, responde com juramentos acreditados num dia, postos em dúvida no outro. De resto, mais que o da amante, o médico desempenha o papel dos domésticos interrogados. Eles não passam de terceiros. A amante que pressionamos, que suspeitamos esteja a ponto de nos trair, é a própria vida e, embora sintamos que já não é a mesma, ainda acreditamos nela, pelo menos ficamos em dúvida até o dia em que ela enfim nos abandona.
     Coloquei minha avó no elevador do professor E*** e, um instante após, ele veio ao nosso encontro e nos fez passar ao seu gabinete. Porém aí, por mais pressa que tivesse, seu jeito mal humorado mudava, de tão fortes que são os hábitos, e ele se mostrava amável e até mesmo jovial com seus pacientes. Como sabia que minha avó era muito letrada, e ele o era igualmente, pôs-se a citar durante dois ou três minutos, e aludindo ao tempo radioso que fazia, versos lindos sobre o verão. Sentara-a numa poltrona, ficando ele contra a luz, de maneira a observá-la bem. Seu exame foi minucioso, precisou até que eu saísse por um momento. Continuou ainda o exame e depois, tendo terminado, embora o quarto de hora já se esgotasse, pôs-se a fazer novos recitativos à minha avó. Dirigiu-lhe mesmo algumas pilhérias com bastante finura, que eu teria preferido ouvir em outra ocasião, mas que me tranquilizaram completamente devido ao tom engraçado do médico. Lembrei-me então que o Sr. Fallieres, presidente do Senado, sofrera há muitos anos um falso ataque, e que, para desespero de seus concorrentes, retomara suas funções três dias depois, preparando mesmo, segundo se dizia, uma candidatura mais ou menos remota à Presidência da República. Minha confiança num pronto restabelecimento de minha avó foi tanto mais completa porque, no momento em que me lembrava do exemplo do Sr. Fallieres, fui distraído dessa comparação por uma sonora gargalhada que rematou um gracejo do professor E***. Após o que, ele puxou o relógio, franziu febrilmente as sobrancelhas ao ver que estava atrasado cinco minutos e, ao passo que se despedia, tocava a campainha para que lhe trouxessem a sua casaca imediatamente. Deixei a minha avó passar primeiro, fechei a porta e pedi ao doutor que me dissesse a verdade. 

- A sua avó está perdida - disse ele. - É um ataque provocado pela uremia. Em si, a uremia não é fatalmente uma doença mortal, mas o caso me parece desesperador. Nem preciso lhe dizer que espero estar enganado. Além disso, com Cottard, estão em excelentes mãos. Com licença - disse ao ver entrar uma camareira com sua casaca nos braços. - O Senhor sabe que vou jantar com o ministro do Comércio, e tenho uma visita para fazer antes. Ah, a vida não é um mar de rosas, como se crê na sua idade.

     E estendeu-me graciosamente a mão. Eu voltara a fechar a porta e um lacaio nos guiava no vestíbulo, a mim e à minha avó, quando ouvimos grandes gritos de cólera. A camareira se esquecera de abrir a botoeira para as condecorações. Aquilo ainda ia levar dez minutos. O professor continuava sempre a esbravejar, enquanto eu olhava, no patamar da escada, para a minha avó, que estava perdida. Como está sozinha cada pessoa! 
     Regressamos a casa.
     O sol declinava; inflamava um muro interminável que o nosso fiacre tinha de ladear antes de atingir a rua em que morávamos, muro sobre o qual a sombra do carro e do cavalo, projetada pelo poente, se destacava em negro sobre o fundo avermelhado, como um carro fúnebre numa terracota de Pompéia. Enfim chegamos. Fiz a enferma sentar-se ao pé da escadaria, no vestíbulo, e subi para avisar a minha mãe. Disse-lhe que minha avó voltara um tanto adoentada, e tivera uma tonteira. Desde as minhas primeiras palavras, a fisionomia de minha mãe atingiu o paroxismo de um tal desespero, entretanto já resignado, que compreendi que há muitos anos ela o trazia preparado dentro de si mesma para um dia incerto e final. Não me perguntou nada; parecia que, assim como a maldade gosta de exagerar os sofrimentos dos outros, ela não queria admitir, por ternura, que sua mãe estivesse muito mal, principalmente que se tratasse de uma doença que podia afetar a inteligência. Mamãe estremecia, seu rosto chorava sem lágrimas, ela se apressou a dizer que fossem buscar o médico, mas, como Françoise perguntasse quem estava doente, não pôde responder, a voz se lhe embargou na garganta. Desceu correndo comigo, e apagando do rosto o soluço que o contraía. Minha avó esperava embaixo, no canapé do vestíbulo, mas, logo que nos ouviu, ergueu-se, ficou em pé, fez a mamãe alegres acenos com a mão. Eu lhe envolvera metade da cabeça com uma mantilha de renda branca, dizendo que era para que não sentisse frio na escada. Não queria que mamãe notasse muito a alteração da fisionomia, o desvio da boca; minha precaução era inútil: mamãe se aproximou da minha avó, beijou-lhe a mão como a de seu Deus, susteve-a, ergueu-a até o elevador com infinitas precauções, em que havia, junto com o medo de não se mostrar cuidadosa e de magoá-la, a humildade de quem se sente indigno de tocar o que conhece de mais precioso; mas nem uma só vez ergueu os olhos e fitou o rosto da enferma. Talvez para que esta não se entristecesse ao pensar que a sua vista poderia inquietar a filha. Talvez de medo de uma dor mais intensa que ela não ousava afrontar. Talvez por respeito, pois não julgava que lhe fosse permitido sem impiedade constatar vestígios de algum enfraquecimento intelectual no rosto venerado. Talvez para melhor conservar, posteriormente, intacta, a imagem do verdadeiro rosto de sua mãe, radiante de espírito e bondade. Assim subiram elas, uma ao lado da outra, minha avó meio oculta em sua mantilha, minha mãe desviando o olhar.
     Durante todo esse tempo, havia uma pessoa que não tirava seus olhos do que se podia adivinhar dos traços modificados de minha avó que a filha desta não ousava ver, uma pessoa que lançava sobre eles um olhar assombrado, indiscreto e de mau agouro: era Françoise. Não que não amasse sinceramente a minha avó (até ficara decepcionada e quase escandalizada pela frieza de mamãe, a quem desejaria ter visto lançar-se chorando nos braços de sua mãe), mas tinha uma certa inclinação a imaginar sempre o pior, trouxera da infância duas particularidades que pareceriam dever excluir-se, mas que, quando se ajuntam, se fortalecem: a falta de educação das pessoas do povo, que não procuram dissimular as impressões, até mesmo o doloroso espanto que nelas causa a vista de uma alteração física que seria mais delicado não parecer notar; e a rudeza insensível da campônia que arranca as asas das libélulas antes de ter ocasião de torcer o pescoço aos frangos, e que não dispõe do pudor que a faria ocultar o interesse que sente ao ver a carne que sofre.
     Quando, graças aos cuidados perfeitos de Françoise, minha avó se viu acomodada na cama, percebeu que falava mais facilmente; a pequena ruptura ou obstrução de uma artéria, causada pela uremia, certamente fora bem leve. Então quis atender a mamãe, assisti-la nos instantes mais cruéis que esta já havia atravessado.

- Muito bem, minha filha - disse-lhe segurando a mão e conservando a outra adiante da boca para dar essa causa aparente à leve dificuldade que ainda tinha para pronunciar certas palavras -, é assim que tens pena da tua mãe? Pareces acreditar que uma indigestão não é desagradável! 

     Então, pela primeira vez os olhos de minha mãe fitaram apaixonadamente os de minha avó, não desejando ver o restante de sua face, e ela disse, começando a lista desses falsos juramentos que não podemos cumprir: 

- Mamãe, logo ficarás curada; é a tua filha quem te promete.

     E, encerrando o seu amor mais forte e toda a sua vontade para que a mãe sarasse, num beijo a quem os confiou e que acompanhou com o pensamento, com todo o seu ser até a beira dos lábios, foi depositá-lo humilde e piedosamente na testa adorada.
     Minha avó se queixava de uma espécie de aluvião de cobertas que se formava o tempo todo sobre sua perna esquerda e que ela não conseguia erguer. Mas não percebia que era ela mesma a causa daquilo, de modo que todos os dias acusava injustamente Françoise de "forrar" mal a sua cama. Devido a um movimento convulsivo, ela repelia daquele lado todas as vagas dessas cobertas espumantes de fina lã que ali se amontoavam como as areias numa enseada depressa transformada em praia (se não construíssem um dique) pelos afluxos sucessivos da maré.
     Minha mãe e eu (cuja mentira era previamente desmascarada por Françoise, perspicaz e injuriosa) nem mesmo queríamos dizer que minha avó estivesse gravemente enferma, como se isso pudesse agradar aos inimigos que aliás ela não possuía, e como se fosse mais afetuoso achar que ela não estava tão mal assim, em suma, pelo mesmo sentimento instintivo que me fizera supor que Andrée se queixava demais de Albertine para muito poder amá-la. Os mesmos fenômenos se reproduzem, dos particulares à massa, nas grandes crises. Numa guerra, aquele que não ama o seu país não fala mal dele, mas julga-o perdido, lamenta-o, vê preta a situação.
     Françoise nos prestava um serviço infinito, com sua faculdade de passar sem dormir, de fazer os trabalhos mais pesados. E, se, tendo ido se deitar após várias noites passadas em claro, éramos obrigados a chamá-la um quarto de hora depois que adormecesse, ela sentia-se tão feliz de poder fazer o trabalho mais penoso como se se tratasse das coisas mais simples do mundo, que, longe de rezingar, mostrava no rosto a satisfação e a modéstia. Apenas quando chegava a hora da missa e a do desjejum, minha avó podia estar agonizante que Françoise se eclipsava a tempo de não se atrasar. Não podia nem queria ser substituída pelo seu jovem lacaio. Decerto trouxera de Combray uma ideia muito alta dos deveres de cada um para conosco; não teria tolerado que um dos nossos criados nos "faltasse". Isso a fizera uma educadora tão nobre, tão imperiosa, tão eficaz, que jamais houvera em nossa casa criados tão corrompidos que não se modificassem logo, e apurassem a sua concepção de vida a ponto de não mais tocarem num tostão e de se precipitarem por menos serviçais que até então fossem para me tirar das mãos e não deixar que me cansasse carregando o menor pacote. Mas também em Combray Françoise contraíra o hábito, trazido a Paris, de não poder suportar qualquer auxílio em seu trabalho. Ver que lhe prestavam ajuda parecia-lhe uma ofensa, e alguns criados ficaram semanas inteiras sem obter uma resposta dela à sua saudação matinal, chegando até a sair de férias sem que ela lhes dissesse adeus e sem adivinharem o motivo, na verdade pela única razão de que tinham querido fazer um pouco do seu trabalho, num dia em que estava adoentada. E, naquele momento em que minha avó passava tão mal, a tarefa de Françoise lhe parecia particularmente sua própria. Não desejava, ela, a titular, deixar que lhe furtassem o seu papel naqueles dias de gala. Assim, seu jovem lacaio, afastado por ela, não sabia o que fazer, e, não contente em ter, a exemplo de Victor, tirado meu papel de cartas no meu escritório, pusera-se também a carregar volumes de versos da minha bibliografia. Lia-os durante boa parte do dia, não só por admiração pelos poetas que os haviam composto, mas também para, na outra parte do dia, ornamentar de citações as cartas que escrevia aos amigos da aldeia. Certamente pensava deslumbrá-los desse modo. Mas, como não tinha muita lógica nas ideias, imaginara que aqueles poemas, encontrados em minha biblioteca, eram coisa conhecida de todos e às quais é costume a gente se referir. De forma que, escrevendo àqueles camponeses cujo pasmo prelibava, entremeava suas próprias reflexões com versos de Lamartine, como se dissesse: quem viver, verá, ou até: bom-dia.
     Por causa dos tormentos de minha avó, permitiram que tomasse morfina. Infelizmente, se esta os acalmava, contribuía para aumentar a taxa de albumina. Os golpes que destinávamos ao mal que se instalara em minha avó acabavam sempre por fracassar; era ela, era o seu pobre corpo interposto que os recebia, sem que ela se queixasse mais que com um débil gemido. E as dores que lhe causávamos não eram compensadas por um bem que não lográvamos obter-lhe. O mal feroz que desejaríamos exterminar, quase não o tocáramos, só fazíamos exasperá-lo ainda mais, talvez apressando a hora em que a cativa seria devorada. Nos dias em que a taxa de albumina se mostrava muito alta, o doutor Cottard, após alguma hesitação, recusava a morfina. Nesse homem tão insignificante, tão vulgar, havia, naqueles breves instantes em que deliberava, em que os perigos de um tratamento ou outro lutavam dentro de si até que se decidisse por um deles, uma espécie de grandeza própria de um general que, vulgar no resto de sua vida, é um grande estrategista e, num momento delicado, depois de ter refletido por um instante, conclui pelo que é militarmente mais sábio e diz: 

"Fazer frente a Leste."

     Do ponto de vista clínico, por menos esperanças que tivesse em pôr um fim àquela crise de uremia, era necessário não cansar os rins. Mas, por outro lado, quando minha avó ficava sem morfina, suas dores tornavam-se insuportáveis; recomeçava perpetuamente um certo movimento que lhe era difícil fazer sem gemer.
     Em grande parte, o sofrimento é uma espécie de necessidade do organismo de tomar consciência de um estado novo que o inquieta, de tornar a sensibilidade adequada a esse estado. Pode-se distinguir essa origem da dor no caso de incômodos que não o são para todo mundo.

continua na página 144...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Doença da minha avó)
Volume 7

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