em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
Doença da minha avó.
Doença de Bergotte.
O duque e o médico.
Declínio da minha avó.
Sua morte.
Atravessamos a avenida Gabriel, no meio da multidão de passeantes. Fiz a minha avó
sentar-se num banco e fui procurar um fiacre. Ela, em cujo coração eu sempre me colocava para
ajuizar a pessoa mais insignificante, agora estava fechada para mim, tornara-se uma parte do
mundo exterior, e, mais do que a simples passantes, eu ainda era forçado a lhe calar o que
pensava de seu estado, silenciar acerca da minha inquietação. Não poderia falar-lhe disso com
mais confiança que a uma pessoa estranha. Ela acabava de me restituir os pensamentos, os
desgostos, que desde a minha infância lhe confiara para sempre. Ainda não estava morta. Eu já
me sentia só. E até aquelas alusões que ela fizera aos Guermantes, a Moliere, a nossas
conversas sobre o pequeno clã, assumiam uma aparência sem apoio, sem causa, fantástica,
porque saíam do nada dessa mesma criatura que amanhã talvez já não existisse e para quem já
não teriam sentido algum, daquele nada incapaz de concebê-las que minha avó seria em breve.
- Senhor, não digo que não, mas o senhor não marcou hora comigo, não tem número.
Além disso, não é meu dia de consulta, O senhor deve ter o seu médico. Não posso substituí-lo, a
menos que ele me mande chamar para uma conferência. É uma questão de ontologia...
No momento em que eu fazia sinal para um fiacre, havia encontrado o célebre professor
E***, quase amigo de meu pai e de meu avô, de qualquer modo em relações com eles, e que
morava na avenida Gabriel, e, tomado de súbita inspiração, fizera-o parar no instante em que
entrava em casa, pensando que talvez desse um conselho excelente para a minha avó. Mas,
apressado, depois de ter apanhado a sua correspondência, queria despedir-me e só lhe pude
falar subindo com ele no elevador, do qual me pediu para deixar apertar os botões, o que nele era
mania.
- Mas, meu senhor, não lhe peço que receba minha avó, há de compreender depois do que
lhe disser, ela não tem condições de subir; pelo contrário, peço-lhe que passe daqui a meia hora
em nossa casa, para onde ela vai voltar.
- Passar em sua casa? Mas, senhor, nem pense nisso. Vou jantar na casa do ministro do
Comércio, preciso fazer uma visita antes, vou me vestir imediatamente e, para cúmulo da
desgraça, uma das minhas duas casacas se rasgou e a outra não tem botoeira para colocar as
condecorações. Rogo-lhe, faça-me o favor de não tocar nos botões do elevador, o senhor não
sabe manejá-los, é preciso prudência em tudo. Essa botoeira vai me atrasar ainda mais. Enfim,
por amizade com os seus familiares, se a sua avó vier logo, poderei recebê-la. Mas previno-lhe
que só terei exatamente um quarto de hora para atendê-la.
Eu partira de imediato, sem mesmo ter saído do elevador, que o professor E*** pusera ele
próprio em movimento para me fazer descer, não sem me olhar com desconfiança.
Bem dizemos que a hora da morte é incerta, mas, quando dizemos isto, afiguramo-nos
essa hora como situada num espaço vago e longínquo, não imaginamos que ela tenha uma
relação qualquer com o dia já começado, e possa significar que a morte ou sua primeira posse
parcial de nós, após a qual não nos larga mais poderá ocorrer nessa mesma tarde, tão pouco
incerta, essa tarde em que o emprego de todas as horas está previamente agendado. A gente se
empenha em passear para obter, em um mês, o total de ar puro necessário, hesitamos quanto à
escolha de uma capa para levar, do cocheiro para chamar, estamos num fiacre, o dia está
inteiramente diante de nós, curto, porque desejamos voltar a tempo para receber uma amiga;
também gostaríamos que fizesse bom tempo amanhã; e não desconfiamos que a morte que
caminhava em nós em outro plano escolheu precisamente aquele dia para entrar em cena, dentro
de alguns minutos, mais ou menos no instante em que o carro alcançasse os Champs-Élysées.
Talvez aqueles a quem habitualmente assusta a singularidade própria da morte encontrem
algo de tranquilizador nesse gênero de morte esse gênero de primeiro contato com a morte
porque aí ela se reveste de uma aparência conhecida, familiar, cotidiana. Precederam-na um bom
almoço e a mesma caminhada que fazem as pessoas de boa saúde. Um regresso em carro
descoberto se superpõe ao seu primeiro ataque; por mais doente que estivesse minha avó, afinal
diversas pessoas poderiam dizer que às seis da tarde, quando voltamos dos Champs-Élysées,
elas a haviam cumprimentado, passando de carro descoberto, num tempo magnífico. Legrandin,
que se dirigia para a praça da Concórdia, tirou o chapéu para nós, detendo-se com ar de espanto.
Eu, que ainda não me desligara da vida, perguntei à minha avó se ela havia correspondido,
lembrando-lhe que ele era suscetível. Minha avó, decerto me achando muito superficial, erguera a
mão como para dizer:
"E então? Isso não tem nenhuma importância."
Sim, poderia ser dito, momentos antes, enquanto eu buscava um fiacre, que minha avó
estava sentada num banco, na avenida Gabriel, que logo depois ela havia passado em carro
descoberto. Mas seria mesmo verdade? O banco, ele, para que se mantenha numa avenida
embora também esteja submetido a certas condições de equilíbrio -, não necessita de energia.
Mas, para que uma criatura viva seja estável, mesmo apoiada num banco ou dentro de um carro,
é preciso uma tensão de forças que em geral não percebemos, assim como não percebemos a
pressão atmosférica, pois se exerce em todos os sentidos. Talvez se se fizesse o vácuo em nós e
se nos deixassem suportar a pressão do ar, sentiríamos, no instante que precederia a nossa
destruição, o terrível peso que nada mais neutralizaria. Da mesma forma, quando os abismos da
doença e da morte se abrem em nós e que nada mais temos a opor ao tumulto com que o mundo
e o nosso próprio corpo desabam sobre nós, então, até sustentar o peso de nossos músculos, até
o arrepio que nos devasta a medula, então, até mesmo manter-nos imóveis no que de hábito
julgamos não ser mais que a simples posição negativa de uma coisa, exige, se desejamos que a
cabeça permaneça ereta e o olhar tranquilo, uma energia vital e torna-se objeto de uma luta
exaustiva.
E, se Legrandin nos olhara com aquele ar de espanto, era que, a ele como aos que então
passavam, no fiacre em que minha avó parecia estar sentada sobre a banqueta, ela lhes
aparecera afundando, deslizando para o abismo, agarrando-se desesperadamente às almofadas
que mal podiam reter seu corpo precipitado, os cabelos em desordem, o olhar perdido, já incapaz
de fazer frente ao assalto das imagens que sua pupila não conseguia mais sustentar. Ela
aparecera, embora a meu lado, mergulhada nesse mundo desconhecido em cujo seio já recebera
os golpes de que ostentava os sinais quando a vira há pouco nos Champs-Élysées, seu chapéu,
seu rosto e seu casaco desarrumados pela mão do anjo invisível com quem havia lutado.
Desde então, tenho pensado que aquele momento de seu ataque não deve ter
surpreendido de todo a minha avó, que talvez ela mesma o houvesse previsto muito tempo antes,
e vivera à sua espera. Sem dúvida, não tinha sabido quando viria o instante fatal, incerta,
semelhando-se aos amantes que uma dúvida do mesmo gênero leva alternativamente a alimentar
esperanças sem fundamento e suspeitas injustificadas sobre a fidelidade de sua amante. Mas é
raro que essas grandes enfermidades, como a que por fim acabava de feri-la em pleno rosto, não
se alojem por muito tempo no doente antes de matá-lo, e durante esse período não se façam logo
conhecer, como um vizinho ou locatário sociável. É um terrível conhecimento, menos pelos
sofrimentos que provoca do que pela estranha novidade das restrições definitivas que impõe à
vida. Vemo-nos morrer, neste caso, não no próprio momento da morte, porém meses e até anos
antes, desde que ela horrendamente veio morar conosco. A doente trava conhecimento com o
estranho que ela ouve ir e vir pelo cérebro.
Decerto não o conhece de vista, mas, pelos ruídos que o ouve fazer regularmente, deduz
os seus hábitos. Será um malfeitor? Certa manhã, não o ouve mais. Foi-se embora.
Ah, se fosse para sempre! De noite, ele voltou. Quais são os seus desígnios? O médico,
submetido à indagação, como uma amante adorada, responde com juramentos acreditados num
dia, postos em dúvida no outro. De resto, mais que o da amante, o médico desempenha o papel
dos domésticos interrogados. Eles não passam de terceiros. A amante que pressionamos, que
suspeitamos esteja a ponto de nos trair, é a própria vida e, embora sintamos que já não é a
mesma, ainda acreditamos nela, pelo menos ficamos em dúvida até o dia em que ela enfim nos
abandona.
Coloquei minha avó no elevador do professor E*** e, um instante após, ele veio ao nosso
encontro e nos fez passar ao seu gabinete. Porém aí, por mais pressa que tivesse, seu jeito mal
humorado mudava, de tão fortes que são os hábitos, e ele se mostrava amável e até mesmo jovial
com seus pacientes. Como sabia que minha avó era muito letrada, e ele o era igualmente, pôs-se
a citar durante dois ou três minutos, e aludindo ao tempo radioso que fazia, versos lindos sobre o
verão. Sentara-a numa poltrona, ficando ele contra a luz, de maneira a observá-la bem. Seu
exame foi minucioso, precisou até que eu saísse por um momento. Continuou ainda o exame e
depois, tendo terminado, embora o quarto de hora já se esgotasse, pôs-se a fazer novos
recitativos à minha avó. Dirigiu-lhe mesmo algumas pilhérias com bastante finura, que eu teria
preferido ouvir em outra ocasião, mas que me tranquilizaram completamente devido ao tom
engraçado do médico. Lembrei-me então que o Sr. Fallieres, presidente do Senado, sofrera há
muitos anos um falso ataque, e que, para desespero de seus concorrentes, retomara suas
funções três dias depois, preparando mesmo, segundo se dizia, uma candidatura mais ou menos
remota à Presidência da República. Minha confiança num pronto restabelecimento de minha avó
foi tanto mais completa porque, no momento em que me lembrava do exemplo do Sr. Fallieres, fui
distraído dessa comparação por uma sonora gargalhada que rematou um gracejo do professor
E***. Após o que, ele puxou o relógio, franziu febrilmente as sobrancelhas ao ver que estava
atrasado cinco minutos e, ao passo que se despedia, tocava a campainha para que lhe
trouxessem a sua casaca imediatamente. Deixei a minha avó passar primeiro, fechei a porta e
pedi ao doutor que me dissesse a verdade.
- A sua avó está perdida - disse ele. - É um ataque provocado pela uremia. Em si, a uremia
não é fatalmente uma doença mortal, mas o caso me parece desesperador. Nem preciso lhe dizer
que espero estar enganado. Além disso, com Cottard, estão em excelentes mãos. Com licença - disse ao ver entrar uma camareira com sua casaca nos braços. - O Senhor sabe que vou jantar
com o ministro do Comércio, e tenho uma visita para fazer antes. Ah, a vida não é um mar de
rosas, como se crê na sua idade.
E estendeu-me graciosamente a mão. Eu voltara a fechar a porta e um lacaio nos guiava
no vestíbulo, a mim e à minha avó, quando ouvimos grandes gritos de cólera. A camareira se
esquecera de abrir a botoeira para as condecorações. Aquilo ainda ia levar dez minutos. O
professor continuava sempre a esbravejar, enquanto eu olhava, no patamar da escada, para a
minha avó, que estava perdida. Como está sozinha cada pessoa!
Regressamos a casa.
O sol declinava; inflamava um muro interminável que o nosso fiacre tinha de ladear antes
de atingir a rua em que morávamos, muro sobre o qual a sombra do carro e do cavalo, projetada
pelo poente, se destacava em negro sobre o fundo avermelhado, como um carro fúnebre numa
terracota de Pompéia. Enfim chegamos. Fiz a enferma sentar-se ao pé da escadaria, no vestíbulo,
e subi para avisar a minha mãe. Disse-lhe que minha avó voltara um tanto adoentada, e tivera
uma tonteira. Desde as minhas primeiras palavras, a fisionomia de minha mãe atingiu o paroxismo
de um tal desespero, entretanto já resignado, que compreendi que há muitos anos ela o trazia
preparado dentro de si mesma para um dia incerto e final. Não me perguntou nada; parecia que,
assim como a maldade gosta de exagerar os sofrimentos dos outros, ela não queria admitir, por
ternura, que sua mãe estivesse muito mal, principalmente que se tratasse de uma doença que
podia afetar a inteligência. Mamãe estremecia, seu rosto chorava sem lágrimas, ela se apressou a
dizer que fossem buscar o médico, mas, como Françoise perguntasse quem estava doente, não
pôde responder, a voz se lhe embargou na garganta. Desceu correndo comigo, e apagando do
rosto o soluço que o contraía. Minha avó esperava embaixo, no canapé do vestíbulo, mas, logo
que nos ouviu, ergueu-se, ficou em pé, fez a mamãe alegres acenos com a mão. Eu lhe envolvera
metade da cabeça com uma mantilha de renda branca, dizendo que era para que não sentisse frio
na escada. Não queria que mamãe notasse muito a alteração da fisionomia, o desvio da boca;
minha precaução era inútil: mamãe se aproximou da minha avó, beijou-lhe a mão como a de seu
Deus, susteve-a, ergueu-a até o elevador com infinitas precauções, em que havia, junto com o
medo de não se mostrar cuidadosa e de magoá-la, a humildade de quem se sente indigno de
tocar o que conhece de mais precioso; mas nem uma só vez ergueu os olhos e fitou o rosto da
enferma. Talvez para que esta não se entristecesse ao pensar que a sua vista poderia inquietar a
filha. Talvez de medo de uma dor mais intensa que ela não ousava afrontar. Talvez por respeito,
pois não julgava que lhe fosse permitido sem impiedade constatar vestígios de algum
enfraquecimento intelectual no rosto venerado. Talvez para melhor conservar, posteriormente,
intacta, a imagem do verdadeiro rosto de sua mãe, radiante de espírito e bondade. Assim subiram
elas, uma ao lado da outra, minha avó meio oculta em sua mantilha, minha mãe desviando o
olhar.
Durante todo esse tempo, havia uma pessoa que não tirava seus olhos do que se podia
adivinhar dos traços modificados de minha avó que a filha desta não ousava ver, uma pessoa que
lançava sobre eles um olhar assombrado, indiscreto e de mau agouro: era Françoise. Não que
não amasse sinceramente a minha avó (até ficara decepcionada e quase escandalizada pela
frieza de mamãe, a quem desejaria ter visto lançar-se chorando nos braços de sua mãe), mas
tinha uma certa inclinação a imaginar sempre o pior, trouxera da infância duas particularidades
que pareceriam dever excluir-se, mas que, quando se ajuntam, se fortalecem: a falta de educação
das pessoas do povo, que não procuram dissimular as impressões, até mesmo o doloroso
espanto que nelas causa a vista de uma alteração física que seria mais delicado não parecer
notar; e a rudeza insensível da campônia que arranca as asas das libélulas antes de ter ocasião
de torcer o pescoço aos frangos, e que não dispõe do pudor que a faria ocultar o interesse que
sente ao ver a carne que sofre.
Quando, graças aos cuidados perfeitos de Françoise, minha avó se viu acomodada na
cama, percebeu que falava mais facilmente; a pequena ruptura ou obstrução de uma artéria,
causada pela uremia, certamente fora bem leve. Então quis atender a mamãe, assisti-la nos
instantes mais cruéis que esta já havia atravessado.
- Muito bem, minha filha - disse-lhe segurando a mão e conservando a outra adiante da
boca para dar essa causa aparente à leve dificuldade que ainda tinha para pronunciar certas
palavras -, é assim que tens pena da tua mãe? Pareces acreditar que uma indigestão não é
desagradável!
Então, pela primeira vez os olhos de minha mãe fitaram apaixonadamente os de minha
avó, não desejando ver o restante de sua face, e ela disse, começando a lista desses falsos
juramentos que não podemos cumprir:
- Mamãe, logo ficarás curada; é a tua filha quem te promete.
E, encerrando o seu amor mais forte e toda a sua vontade para que a mãe sarasse, num
beijo a quem os confiou e que acompanhou com o pensamento, com todo o seu ser até a beira
dos lábios, foi depositá-lo humilde e piedosamente na testa adorada.
Minha avó se queixava de uma espécie de aluvião de cobertas que se formava o tempo
todo sobre sua perna esquerda e que ela não conseguia erguer. Mas não percebia que era ela
mesma a causa daquilo, de modo que todos os dias acusava injustamente Françoise de "forrar"
mal a sua cama. Devido a um movimento convulsivo, ela repelia daquele lado todas as vagas
dessas cobertas espumantes de fina lã que ali se amontoavam como as areias numa enseada
depressa transformada em praia (se não construíssem um dique) pelos afluxos sucessivos da
maré.
Minha mãe e eu (cuja mentira era previamente desmascarada por Françoise, perspicaz e
injuriosa) nem mesmo queríamos dizer que minha avó estivesse gravemente enferma, como se
isso pudesse agradar aos inimigos que aliás ela não possuía, e como se fosse mais afetuoso
achar que ela não estava tão mal assim, em suma, pelo mesmo sentimento instintivo que me
fizera supor que Andrée se queixava demais de Albertine para muito poder amá-la. Os mesmos
fenômenos se reproduzem, dos particulares à massa, nas grandes crises. Numa guerra, aquele
que não ama o seu país não fala mal dele, mas julga-o perdido, lamenta-o, vê preta a situação.
Françoise nos prestava um serviço infinito, com sua faculdade de passar sem dormir, de
fazer os trabalhos mais pesados. E, se, tendo ido se deitar após várias noites passadas em claro,
éramos obrigados a chamá-la um quarto de hora depois que adormecesse, ela sentia-se tão feliz
de poder fazer o trabalho mais penoso como se se tratasse das coisas mais simples do mundo,
que, longe de rezingar, mostrava no rosto a satisfação e a modéstia. Apenas quando chegava a
hora da missa e a do desjejum, minha avó podia estar agonizante que Françoise se eclipsava a
tempo de não se atrasar. Não podia nem queria ser substituída pelo seu jovem lacaio. Decerto
trouxera de Combray uma ideia muito alta dos deveres de cada um para conosco; não teria
tolerado que um dos nossos criados nos "faltasse". Isso a fizera uma educadora tão nobre, tão
imperiosa, tão eficaz, que jamais houvera em nossa casa criados tão corrompidos que não se
modificassem logo, e apurassem a sua concepção de vida a ponto de não mais tocarem num
tostão e de se precipitarem por menos serviçais que até então fossem para me tirar das mãos e
não deixar que me cansasse carregando o menor pacote. Mas também em Combray Françoise
contraíra o hábito, trazido a Paris, de não poder suportar qualquer auxílio em seu trabalho. Ver
que lhe prestavam ajuda parecia-lhe uma ofensa, e alguns criados ficaram semanas inteiras sem
obter uma resposta dela à sua saudação matinal, chegando até a sair de férias sem que ela lhes
dissesse adeus e sem adivinharem o motivo, na verdade pela única razão de que tinham querido
fazer um pouco do seu trabalho, num dia em que estava adoentada. E, naquele momento em que
minha avó passava tão mal, a tarefa de Françoise lhe parecia particularmente sua própria. Não
desejava, ela, a titular, deixar que lhe furtassem o seu papel naqueles dias de gala. Assim, seu
jovem lacaio, afastado por ela, não sabia o que fazer, e, não contente em ter, a exemplo de Victor,
tirado meu papel de cartas no meu escritório, pusera-se também a carregar volumes de versos da
minha bibliografia. Lia-os durante boa parte do dia, não só por admiração pelos poetas que os
haviam composto, mas também para, na outra parte do dia, ornamentar de citações as cartas que
escrevia aos amigos da aldeia. Certamente pensava deslumbrá-los desse modo. Mas, como não
tinha muita lógica nas ideias, imaginara que aqueles poemas, encontrados em minha biblioteca,
eram coisa conhecida de todos e às quais é costume a gente se referir. De forma que, escrevendo
àqueles camponeses cujo pasmo prelibava, entremeava suas próprias reflexões com versos de
Lamartine, como se dissesse: quem viver, verá, ou até: bom-dia.
Por causa dos tormentos de minha avó, permitiram que tomasse morfina. Infelizmente, se
esta os acalmava, contribuía para aumentar a taxa de albumina. Os golpes que destinávamos ao
mal que se instalara em minha avó acabavam sempre por fracassar; era ela, era o seu pobre
corpo interposto que os recebia, sem que ela se queixasse mais que com um débil gemido. E as
dores que lhe causávamos não eram compensadas por um bem que não lográvamos obter-lhe. O
mal feroz que desejaríamos exterminar, quase não o tocáramos, só fazíamos exasperá-lo ainda
mais, talvez apressando a hora em que a cativa seria devorada. Nos dias em que a taxa de
albumina se mostrava muito alta, o doutor Cottard, após alguma hesitação, recusava a morfina.
Nesse homem tão insignificante, tão vulgar, havia, naqueles breves instantes em que deliberava,
em que os perigos de um tratamento ou outro lutavam dentro de si até que se decidisse por um
deles, uma espécie de grandeza própria de um general que, vulgar no resto de sua vida, é um
grande estrategista e, num momento delicado, depois de ter refletido por um instante, conclui pelo
que é militarmente mais sábio e diz:
"Fazer frente a Leste."
Do ponto de vista clínico, por menos esperanças que tivesse em pôr um fim àquela crise
de uremia, era necessário não cansar os rins. Mas, por outro lado, quando minha avó ficava sem
morfina, suas dores tornavam-se insuportáveis; recomeçava perpetuamente um certo movimento
que lhe era difícil fazer sem gemer.
Em grande parte, o sofrimento é uma espécie de necessidade do organismo de tomar
consciência de um estado novo que o inquieta, de tornar a sensibilidade adequada a esse estado.
Pode-se distinguir essa origem da dor no caso de incômodos que não o são para todo mundo.
continua na página 144...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Doença da minha avó)
Volume 7
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