sexta-feira, 13 de junho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.2)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

continuando... 

     2.2 - Os Primórdios do Antissemitismo 
          É regra óbvia, se bem que frequentemente esquecida, que o sentimento antijudaico adquire relevância política somente quando pode ser combinado com uma questão política importante, ou quando os interesses grupais dos judeus entram em conflito aberto com os de uma classe dirigente ou aspirante ao poder. O moderno antissemitismo, tal como o vimos em países da Europa central e ocidental, tinha causas políticas e não econômicas, enquanto na Polônia e na Romênia foram as complicadas condições de classe que geraram o violento ódio popular contra os judeus. Ali, devido à incapacidade dos governos de resolver a questão de terras e de criar no Estado-nação o mínimo de igualdade através da libertação dos camponeses, a aristocracia ainda feudal pôde não apenas manter seu domínio político, mas também evitar o surgimento de uma classe média. Os judeus desses países, numerosos embora desprovidos de força, aparentemente preenchiam as funções da classe média, porque eram, na maioria, donos de lojas e comerciantes, e porque, como grupo, situavam-se entre os grandes latifundiários e os grupos sociais sem propriedades. A rigor, pequenos proprietários podem existir tão bem numa economia feudal como numa economia capitalista. Mas os judeus da Europa oriental, como aliás em outros lugares, não podiam, não sabiam ou não queriam evoluir segundo o modelo capitalista industrial, de modo que o resultado final de suas atividades era uma organização de consumo dispersa e ineficaz, carente de sistema adequado de produção. As posições judaicas criavam obstáculo ao desenvolvimento capitalista, porque pareciam ser as únicas de onde se poderia esperar progresso econômico, quando, na realidade, não eram capazes de satisfazer essa expectativa. Assim, os interesses judaicos eram tidos como conflitantes com aqueles setores da população dos quais poderia normalmente ter surgido uma classe média. Os governos, por outro lado, numa ambivalência insensata, tentavam tibiamente encorajar uma classe média, mas sem pressionar ou enfraquecer a nobreza e os latifundiários. A única tentativa séria que fizeram foi a liquidação econômica dos judeus — em parte como concessão à opinião pública, e em parte porque os judeus realmente ainda representavam um elemento que sobreviveu à antiga ordem feudal. Durante séculos, haviam sido intermediários entre a nobreza e os camponeses; agora constituíam uma classe média sem exercer suas funções produtivas, dificultando assim a industrialização e a capitalização.[23]  Essas condições da Europa oriental, contudo, embora constituíssem a essência da problemática das massas judias, têm pouca importância no nosso contexto. Seu significado político limitava-se a países atrasados, onde o ódio aos judeus foi por demais onipresente para que servisse como arma para fins específicos.
     O antissemitismo flamejou primeiro na Prússia, imediatamente após a derrota ante Napoleão em 1807, quando a mudança da estrutura política levou a nobreza à perda de seus privilégios e a classe média conquistou o direito à ascensão. Essa reforma, uma "revolução de cima", transformou a estrutura semifeudal do despotismo esclarecido prussiano num Estado-nação mais ou menos moderno, cujo estágio final foi o Reich alemão de 1871. Embora naquela época a maioria dos banqueiros de Berlim fosse judia, as reformas não necessitavam de considerável auxílio financeiro de sua parte. As francas simpatias dos reformadores da Prússia para com os judeus e a posição de defesa da emancipação judaica que eles assumiam resultavam da necessidade de impor a igualdade a todos os cidadãos, abolindo os privilégios, em face da introdução do livre comércio. Não estavam interessados na conservação dos judeus como judeus para fins determinados. Sua resposta ao argumento de que, sob condições de igualdade, "os judeus cessariam de existir" era esta: "E o que importa isso a um governo que pede apenas que eles se tornem bons cidadãos?".[24] Além disso, a emancipação não tinha muita importância para o país, pois a Prússia havia acabado de perder para a Rússia as províncias orientais, recém-anexadas da Polônia, onde era realmente numerosa (e pobre) a população judaica. Assim, o decreto de emancipação dos judeus da Prússia, de 1812, referia-se apenas àqueles grupos judeus, úteis e ricos, que já gozavam da maioria dos direitos civis e que, com a abolição geral dos privilégios, sofreriam grave perda do seu status específico. Mas por outro lado, para estes grupos a emancipação, no sentido geral, apenas confirmava o status quç.
     Mas as simpatias dos reformadores prussianos pelos judeus encobriam a consequência lógica de suas aspirações políticas gerais. Quando, quase uma década depois, e em meio à crescente onda de antissemitismo, Wilhelm von Humboldt declarou que "amo os judeus realmente só en masse; en détail, prefiro evitá-los",[25] estava naturalmente opondo-se à moda da época, que favorecia os judeus como indivíduos, mas que desprezava o povo judeu. Verdadeiro democrata, Humboldt desejava, ao contrário, libertar um povo oprimido, mas não outorgar privilégios a indivíduos. Essa atitude seguia também a tradição das antigas autoridades do governo da Prússia, cuja constante insistência, durante todo o século XVIII, em melhorar as condições de vida e aprimorar a educação para os judeus foi amplamente reconhecida. Esse apoio não era motivado apenas pelas razões econômicas ou de Estado, mas por simpatia natural de um grupo por um outro que também se colocava fora do corpo social e dentro da esfera do Estado, embora por motivos completamente diferentes. Tratava-se do funcionalismo civil, cuja lealdade ao Estado independia das mudanças de governo, e que também desconhecia os laços de classe. Esse grupo é decisivo na Prússia do século XVIII, e é ele que forma os precursores da reforma pós-napoleônica. Ele é a peça principal da máquina do Estado durante todo o século XIX, embora depois do Congresso de Viena, passageiramente, perdesse muito de sua influência para a aristocracia.[26]
     Quando ouviu falar de uma possível conversão em massa dos judeus, Frederico II da Prússia exclamou: "Espero que não façam coisa tão diabólica!".[27] Mas depois de Napoleão a necessidade do reconhecimento da utilidade dos judeus como tais deixou de existir. A emancipação foi-lhes concedida em nome de princípios, e, de acordo com a mentalidade da época, teria sido sacrílega qualquer alusão a serviços especiais prestados pelos judeus como judeus. As condições especiais que haviam levado à emancipação, embora conhecidas de todos os interessados, eram acobertadas como se fossem um segredo. O próprio édito, por outro lado, havia sido recebido como a última e, em certo sentido, a mais brilhante conquista na mudança de um Estado feudal para um Estado-nação onde, de então em diante, não haveria mais quaisquer privilégios especiais para nenhum grupo.
     Entre as reações naturalmente amargas da aristocracia, que era a classe mais atingida pelas mudanças, estava uma súbita e inesperada irrupção de anti-semitismo. Seu mais eloqüente porta-voz, Ludwig von der Marwitz, proeminente ideólogo conservador, apresentou ao governo uma petição na qual apresentava os judeus como único grupo a gozar de reais vantagens em conseqüência da alteração legal do sistema, anunciando "a transformação da antiga e imponente monarquia prussiana em um Estado judeu". O ataque político foi seguido de um boicote social, que alterou o aspecto da sociedade de Berlim. Os aristocratas eram os primeiros a estabelecer relações sociais amistosas com os judeus, e a sua presença havia tornado famosos os salões de anfitriãs judias no fim do século XVIII, onde se reuniam grupos socialmente mistos. É verdade que, até certo ponto, essa ausência de preconceito resultava dos serviços prestados pelos agiotas judeus que, excluídos das transações comerciais maiores, encontravam sua única oportunidade nos empréstimos, economicamente improdutivos e insignificantes, mas socialmente importantes, a pessoas que tendiam a viver acima de suas posses. Essas relações sociais sobreviveram às monarquias absolutistas, que, com suas amplas possibilidades financeiras, tornaram obsoletos os negócios de empréstimos privados e, por conseguinte, a figura do judeu-da-corte. A natural necessidade de um nobre em manter segura a fonte de auxílio em emergência levava-o, frequentemente, ao casamento com jovem filha do judeu rico, o que enfraquecia entre a nobreza o ódio aos judeus. Este surgia, porém, quando um judeu, mesmo que rico, deixava de socorrê-lo como judeu.
     A explosão do antissemitismo aristocrático não resultava, como se pode supor, do contato mais íntimo cultivado entre judeus e nobreza, contato que os unia na aversão contra os novos valores burgueses. Essa aversão procedia de fontes muito semelhantes. Nas famílias judias, como nas famílias nobres, o indivíduo era olhado antes de mais nada como membro da família; seus deveres eram, em primeiro lugar, determinados pela família, que transcendia os anseios e a importância do próprio indivíduo. Tanto judeus como nobres eram a-nacionais e intereuropeus, e um compreendia o modo de vida do outro, no qual a afiliação nacional era menos importante que a lealdade a uma família, geralmente espalhada por toda a Europa. Compartilhavam a noção de que o presente é nada mais que um laço insignificante na corrente de gerações passadas e futuras. A escritores liberais antissemitas não passou despercebida essa curiosa semelhança de princípios. Por isso, concluíam que talvez o melhor modo de se desfazer da nobreza fosse primeiro desfazer-se dos judeus. Isso não era sugerido por causa das ligações financeiras entre os dois grupos, mas porque ambos eram considerados como um obstáculo ao desenvolvimento da "personalidade inata", da ideia do respeito ao indivíduo, que as classes médias usavam como arma em sua luta contra os conceitos de nascimento, família e linhagem.
     A explosão do antissemitismo aristocrático não resultava, como se pode supor, do contato mais íntimo cultivado entre judeus e nobreza, contato que os unia na aversão contra os novos valores burgueses. Essa aversão procedia de fontes muito semelhantes. Nas famílias judias, como nas famílias nobres, o indivíduo era olhado antes de mais nada como membro da família; seus deveres eram, em primeiro lugar, determinados pela família, que transcendia os anseios e a importância do próprio indivíduo. Tanto judeus como nobres eram a-nacionais e intereuropeus, e um compreendia o modo de vida do outro, no qual a afiliação nacional era menos importante que a lealdade a uma família, geralmente espalhada por toda a Europa. Compartilhavam a noção de que o presente é nada mais que um laço insignificante na corrente de gerações passadas e futuras. A escritores liberais antissemitas não passou despercebida essa curiosa semelhança de princípios. Por isso, concluíam que talvez o melhor modo de se desfazer da nobreza fosse primeiro desfazer-se dos judeus. Isso não era sugerido por causa das ligações financeiras entre os dois grupos, mas porque ambos eram considerados como um obstáculo ao desenvolvimento da "personalidade inata", da ideia do respeito ao indivíduo, que as classes médias usavam como arma em sua luta contra os conceitos de nascimento, família e linhagem.
     Esses fatores tornam mais significativo o fato de terem sido exatamente os aristocratas que iniciaram a argumentação política de caráter antissemita. Nem os laços econômicos nem a intimidade social continuavam válidos no momento em que a aristocracia decidiu opor-se ao Estado-nação igualitário. Socialmente, o ataque contra o Estado identificava os judeus com o governo; embora os ganhos reais, econômicos e sociais, das reformas coubessem à classe média, ela raramente era inculpada politicamente, e suportava com indiferença a tradicional atitude desdenhosa dos aristocratas. Os judeus podiam ser atacados mais facilmente: perderam sua antiga influência e tradicionalmente catalisavam antipatias. Assim, tornando-se antipática aos antipatizados judeus, a aristocracia almejava tornar-se simpática na opinião geral.
     Após o Congresso de Viena, quando, durante as décadas de reação pacífica sob a Santa Aliança, a nobreza prussiana havia recuperado grande parte de sua influência sobre o Estado e se tornara temporariamente ainda mais importante do que havia sido no século XVIII, o antissemitismo aristocrata transformou-se em tênue discriminação, embora sem significação política.[28] Ao mesmo tempo, com a ajuda dos intelectuais românticos, o conservatismo alcançou pleno desenvolvimento como uma das ideologias políticas que, na Alemanha, adotaram uma atitude característica e engenhosamente equívoca em relação aos judeus. Daí em diante, o Estado nação, baseado nos argumentos conservadores, fez uma divisão bem distinta entre aqueles judeus que eram necessários e desejados e os que não o eram. Sob o pretexto do caráter cristão do Estado — embora esta ideia fosse alheia aos déspotas esclarecidos —, a crescente intelligentsia judia podia agora sofrer aberta discriminação, sem que fosse causado dano aos negócios de banqueiros e comerciantes. Esse tipo de discriminação, que tentou fechar as universidades aos judeus, excluindo-os também do funcionalismo civil, apresentava dupla vantagem: indicava que o Estado-nação dava maior valor a serviços especiais do que à igualdade, e evitava, ou pelo menos adiava, o nascimento de um grupo de judeus desprovidos de qualquer utilidade aparente para o Estado, e que poderiam até ser assimilados pela sociedade.[29] Quando, na década de 1880, Bismarck fez considerável esforço para proteger os judeus contra a propaganda antissemita de Stoecker, disse literalmente que desejava protestar tão-só contra os ataques aos "judeus ricos, cujos interesses estão ligados à conservação de nossas instituições estatais", e que seu amigo, o banqueiro Bleichroeder, não se queixava dos ataques aos judeus em geral (o que podia até ter ignorado), mas sim aos judeus ricos (o que o atingia pessoalmente).[30]
     Esse aparente equívoco com que as autoridades governamentais protestavam, de um lado, contra a igualdade (especialmente igualdade profissional) para os judeus, para se queixarem, mais tarde, da influência judaica na imprensa, enquanto, de outro lado, sinceramente "desejavam que fossem felizes em tudo",[31] servia mais aos interesses do Estado que o antigo zelo reformador. Afinal, o Congresso de Viena devolvera à Prússia algumas partes da Polônia desmembrada, nas quais as massas judias pobres haviam vivido durante séculos, e ninguém, a não ser uns poucos intelectuais que sonhavam com a Revolução Francesa e com os Direitos do Homem, jamais pensara em lhes dar posição de igualdade, a qual, aliás, os seus irmãos ricos do Ocidente certamente não desejariam compartilhar, vendo nela futuras consequências nefastas — a competição e a ameaça à imagem do judeu culto, que ostentavam.[32] Aliás, eles já previam que "cada medida legal ou política no sentido da emancipação dos judeus em geral levaria necessariamente à deterioração de sua própria situação cívica e social".[33] E também sabiam o quanto seu poder dependia da posição e prestígio que alcançaram dentro das comunidades judaicas. Assim, "sua política era de tentar obter mais influência para si, mantendo os correligionários [do Leste] em isolamento nacional, como se essa separação fizesse parte da religião. [...] Assim, os outros, dependendo deles cada vez mais, poderiam ser usados exclusivamente por aqueles judeus que alcançaram a posição de mando".[34]  As previsões eram corretas: quando, no século XX, a emancipação tornou-se, pela primeira vez, um fato consumado para as massas judaicas, o poder dos judeus privilegiados havia desaparecido.
     Estabeleceu-se assim uma perfeita harmonia de interesses entre os judeus poderosos e o Estado. Os judeus ricos quiseram e obtiveram o controle de seus correligionários pobres, segregando-os em relação à sociedade não-judaica, o Estado podia combinar a política de benevolência para com judeus ricos à discriminação legal contra a intelligentsia judia e a promoção da segregação social, tal como era expressa na teoria conservadora da essência cristã do Estado.
     Enquanto o antissemitismo, entre a nobreza, permaneceu sem consequência política e acalmou-se nas décadas da Santa Aliança, os intelectuais liberais e radicais inspiraram e lideraram um movimento antissemita imediatamente após o Congresso de Viena. A oposição liberal ao regime policial de Met-ternich estabelecido no continente europeu e violentos ataques ao governo reacionário prussiano levaram rapidamente a explosões antissemitas e a verdadeiro dilúvio de panfletos antissemitas. Por serem muito menos sinceros e francos em sua oposição ao governo que o nobre Marwitz havia sido uma década antes, os intelectuais atacavam mais os judeus que o governo. Por serem intelectuais, atacavam com maior eficácia qualitativa e quantitativa. Interessados principalmente na igualdade de oportunidades e ressentindo a restauração de privilégios da aristocracia (com a qual identificavam os judeus) que limitavam sua admissão aos serviços públicos, introduziram na discussão a diferença entre judeus individuais, "nossos irmãos", e o povo judeu como grupo, diferença esta que, daí por diante, se tornaria a marca registrada do antissemitismo da esquerda. Cunharam — para definir os judeus como grupo — as expressões nacionalistas "Estado dentro de um Estado" e "nação dentro de outra nação". Positivamente errados no primeiro caso, porquanto os judeus não tinham ambições políticas próprias e eram simplesmente o único grupo social incondicionalmente leal ao Estado, estavam certos no segundo, porque os judeus, tomados como um grupo social e não político, realmente constituíam um corpo separado dentro da nação.[35]
     Na Prússia, embora não na Áustria ou na França, esse antissemitismo radical foi tão efêmero e inconsequente como o antigo antissemitismo da pobreza. Os radicais foram gradualmente absorvidos pelo liberalismo das classes médias economicamente ascendentes, que passaram a exigir por sua vez a emancipação dos judeus como símbolo da institucionalização da igualdade política. Contudo, esse antissemitismo estabeleceu certa tradição teórica e até mesmo literária, cuja influência se pode sentir nos famosos escritos antijudaicos do jovem Marx, tão frequente e injustamente acusado de antissemitismo. O fato de o judeu Karl Marx poder escrever do mesmo modo que os radicais antijudeus prova apenas quão pouco essa argumentação antijudaica tinha a ver com o antissemitismo ideologicamente maduro. Como indivíduo judeu, Marx sentia-se tão pouco vexado por esses argumentos contra "o povo judeu" quanto Nietzsche, por exemplo, no tocante aos seus argumentos contra a Alemanha. É verdade que Marx, nos últimos anos de vida, jamais escreveu ou expressou opinião sobre a questão judaica, mas isso dificilmente pode ser atribuído à mudança fundamental de sua atitude. Sua preocupação exclusiva com a luta de classes e com os problemas da produção capitalista, na qual os judeus não estavam envolvidos nem como consumidores nem como fornecedores da mão-de-obra, e seu completo descaso pelas questões políticas automaticamente impediam que ele investigasse mais a fundo a estrutura do Estado e, portanto, o papel nele desempenhado pelos judeus. A forte influência do marxismo no movimento trabalhista da Alemanha é uma das principais razões pelas quais os movimentos revolucionários alemães mostraram tão poucos sinais de sentimento antijudeu.[36] Os judeus realmente tinham pouca ou nenhuma importância nas lutas sociais da época.
     Os primórdios do movimento antissemita moderno datam, em toda parte, do último terço do século XIX. Na Alemanha começou, de modo inesperado, novamente entre a nobreza, cuja oposição ao Estado foi de novo provocada pela transformação da monarquia prussiana num Estado-nação completado depois de 1871. Bismarck, o verdadeiro fundador do Reich alemão, havia mantido estreitas relações com os judeus desde a época em que era primeiro-ministro; agora era acusado de depender e de aceitar o suborno dos judeus. Sua tentativa — e o parcial sucesso — de abolir os vestígios feudais resultou inevitavelmente em conflito com a aristocracia; os ataques a Bismarck mostravam-no como vítima inocente, ou como agente, a soldo do judeu Bleichroeder. Na realidade, a relação era exatamente oposta: Bleichroeder era sem dúvida um agente muito estimado e bem pago de Bismarck.[37]
     Não obstante, a aristocracia feudal, embora ainda bastante poderosa para influenciar a opinião pública, não era por si mesma bastante forte ou importante para iniciar um verdadeiro movimento antissemita, como o que começou na década de 80. Seu porta-voz, o capelão da corte Stoecker, ele próprio nascido na classe média inferior, era representante muito menos sagaz dos interesses conservadores do que os seus predecessores, os intelectuais românticos, que haviam formulado os pontos principais da ideologia conservadora uns cinquenta anos antes. Além disso, descobriu a utilidade da propaganda antissemita não graças a considerações práticas ou teóricas, mas por acaso, quando percebeu a sua utilidade para lotar auditórios que, de outra forma, permaneceriam vazios. Mas, sem compreender seu repentino sucesso, como capelão da corte e empregado tanto da família real como do governo, ele dificilmente estava em posição de usá-lo adequadamente. Seu público entusiasmado era composto exclusivamente de pequenos burgueses, isto é, de lojistas e negociantes, artesãos e artífices à moda antiga, e os sentimentos antijudaicos dessa gente não eram ainda, e por certo não exclusivamente, motivados pelo conflito com o Estado.

___________________

[23] James Parkes, The emergence ofthe Jewish problem, 1879-1939, 1946, discute essas condições de forma sintética e imparcial nos capítulos IV e VI.
[24] Christian Wilhelm Dohm, Über die bürgeliche Verbesserung der Juden [Da melhoria cívica dos judeus], Berlim e Stettin, 1781,1,174.
[25] Wilhelm und Caroline von Humboldt in ihren Briefen [W. e C. von H. em suas cartas], Berlim, 1900, vol. V, p. 236.
[26] Excelente descrição desses servidores civis, que não diferiam de um país para outro, encontra-se em Henri Pirenne, A history ofEuropefrom tke Invasions to the XVI century, Londres, 1939, pp. 361-2: "Sem preconceitos de classe e hostis aos privilégios dos grandes nobres que os desprezavam, (...) não era o rei que falava através deles, mas a monarquia anônima, superior a todos, subjugando a todos com o seu poder". [O original francês foi publicado em 1936.]
[27] VeroKleinesJahrbuch des Nützlichen und Angenehmen für Jsraeliten [Pequeno anuá-rio do útil e do agradável aos israelitas], 1947.
[28] Ao apresentar uma lei de emancipação dos judeus em 1847, quase todos os membros da aristocracia manifestaram-se a favor dessa iniciativa do governo da Prússia. Ver I. Elbogen, Gesch-ichte derJuden in Deutschland [História dos judeus na Alemanha], Berlim, 1935, p. 244.
[29] Foi por essa razão que os soberanos da Prússia se preocuparam tanto com a mais estrita conservação dos costumes e ritos religiosos judeus. Em 1823, Frederico Guilherme III proibiu "as menores inovações", e seu sucessor, Frederico Guilherme IV, declarou abertamente que " o Estado não deve fazer coisa alguma que possa incrementar a mistura entre os judeus e os outros habitantes" do seu reino. (Elbogen, op. cit., pp. 223 e 234.)
[30] Numa carta ao Kultusminister (ministro da Religião) von Puttkamer em outubro de 1880. Ver também a carta de Herbert von Bismarck, de novembro de 1880, a Tiedemann. Ambas estão em Walter Frank, Hofprediger Adolf Stoecker und die christlich -soziale Bewegung [O capelão da corte A. S. e o movimento social-cristão], 1928, pp. 304 e 305.
[31] August Varnhagen comenta uma observação feita por Frederico Guilherme IV, "Perguntou-se ao rei o que ele pretendia fazer com os judeus. Ele respondeu: 'Desejo que sejam felizes em tudo, mas quero que sintam que são judeus'. Estas palavras revelam muitas coisas." (Tage-bücher [Diários], Leipzig, 1861, II, p. 113).
[32] Era do domínio público no século XVIII que a emancipação judaica teria de ser realizada contra os desejos dos representantes judeus. Mirabeau argumentou perante a Assemblée Nationale em 1789: "Senhores, é porque os judeus não querem ser cidadãos que vós não os proclamais cidadãos? Num governo como o que vós constituis agora, todos os homens devem ser homens; deveis expulsar todos aqueles que não o são ou se recusam a tornar-se homens". A atitude dos judeus alemães no começo do século XIX é relatada por Isaac Markus Jost, Neuere Geschichte der Israeliten 1815-1845 [Nova história dos israelitas], Berlim, 1846, vol. 10.
[33] Adam Mueller (ver Ausgewàhlte Abhandlungen [Ensaios escolhidos], editados por J. Baxa, Jena, 1921, p. 215) numa carta de 1815 a Metternich.
[34]  H. E. G. Paulus, Diejüdische Nationalabsonderung nach Ursprung, Folgen und Besse-rungsmitteln. [A separação nacional dos judeus segundo origens, consequências e meios de melhoria], 1831.
[35]  Para uma apreciação clara e confiável do antissemitismo alemão no século XIX, ver Waldemar Gurian, "Antisemitism in modern Germany", emEssays on anti-Semitism, editados por K. S. Pinson, 1946.
[36] O único antissemita alemão da esquerda que teve alguma importância foi E. Duehring, que, embora de modo confuso, inventou uma explicação naturalista da "raça judia" em seu Die Judenfrage ais Frage der Rassenschàdlichkeit für Existem, Sitte und Cultur der Võlker mit einer weltgeschichtlichen Antwort [A questão judaica como problema da nocividade racial para a existência, permanência e cultura dos povos, com uma solução historicamente universal], 1880.
[37] Para os ataques antissemitas contra Bismarck, ver Kurt Wawrzinek, Die Entstehung der deutschen Antisemitenparteien [O surgimento dos partidos antissemitas alemães], 1873-1890, Historische Studien [Estudos históricos], caderno 168, 1927.

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