Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
2.2 - Os Primórdios do Antissemitismo
É regra óbvia, se bem que frequentemente esquecida, que o sentimento antijudaico adquire relevância
política somente quando pode ser combinado com uma questão política importante, ou quando os
interesses grupais dos judeus entram em conflito aberto com os de uma classe dirigente ou aspirante ao
poder. O moderno antissemitismo, tal como o vimos em países da Europa central e ocidental, tinha causas
políticas e não econômicas, enquanto na Polônia e na Romênia foram as complicadas condições de classe
que geraram o violento ódio popular contra os judeus. Ali, devido à incapacidade dos governos de
resolver a questão de terras e de criar no Estado-nação o mínimo de igualdade através da libertação dos
camponeses, a aristocracia ainda feudal pôde não apenas manter seu domínio político, mas também evitar
o surgimento de uma classe média. Os judeus desses países, numerosos embora desprovidos de força,
aparentemente preenchiam as funções da classe média, porque eram, na maioria, donos de lojas e
comerciantes, e porque, como grupo, situavam-se entre os grandes latifundiários e os grupos sociais sem
propriedades. A rigor, pequenos proprietários podem existir tão bem numa economia feudal como numa
economia capitalista. Mas os judeus da Europa oriental, como aliás em outros lugares, não podiam, não
sabiam ou não queriam evoluir segundo o modelo capitalista industrial, de modo que o resultado final de
suas atividades era uma organização de consumo dispersa e ineficaz, carente de sistema adequado de
produção. As posições judaicas criavam obstáculo ao desenvolvimento capitalista, porque pareciam ser as
únicas de onde se poderia esperar progresso econômico, quando, na realidade, não eram capazes de
satisfazer essa expectativa. Assim, os interesses judaicos eram tidos como conflitantes com aqueles
setores da população dos quais poderia normalmente ter surgido uma classe média. Os governos, por
outro lado, numa ambivalência insensata, tentavam tibiamente encorajar uma classe média, mas sem
pressionar ou enfraquecer a nobreza e os latifundiários. A única tentativa séria que fizeram foi a
liquidação econômica dos judeus — em parte como concessão à opinião pública, e em parte porque os
judeus realmente ainda representavam um elemento que sobreviveu à antiga ordem feudal. Durante
séculos, haviam sido intermediários entre a nobreza e os camponeses; agora constituíam uma classe
média sem exercer suas funções produtivas, dificultando assim a industrialização e a capitalização.[23] Essas condições da Europa oriental, contudo, embora constituíssem a essência da problemática das
massas judias, têm pouca importância no nosso contexto. Seu significado político limitava-se a países
atrasados, onde o ódio aos judeus foi por demais onipresente para que servisse como arma para fins
específicos.
O antissemitismo flamejou primeiro na Prússia, imediatamente após a derrota ante Napoleão em 1807,
quando a mudança da estrutura política levou a nobreza à perda de seus privilégios e a classe média conquistou o direito à ascensão. Essa
reforma, uma "revolução de cima", transformou a estrutura semifeudal do despotismo esclarecido
prussiano num Estado-nação mais ou menos moderno, cujo estágio final foi o Reich alemão de 1871.
Embora naquela época a maioria dos banqueiros de Berlim fosse judia, as reformas não necessitavam de
considerável auxílio financeiro de sua parte. As francas simpatias dos reformadores da Prússia para com
os judeus e a posição de defesa da emancipação judaica que eles assumiam resultavam da necessidade de
impor a igualdade a todos os cidadãos, abolindo os privilégios, em face da introdução do livre comércio.
Não estavam interessados na conservação dos judeus como judeus para fins determinados. Sua resposta
ao argumento de que, sob condições de igualdade, "os judeus cessariam de existir" era esta: "E o que
importa isso a um governo que pede apenas que eles se tornem bons cidadãos?".[24] Além disso, a
emancipação não tinha muita importância para o país, pois a Prússia havia acabado de perder para a
Rússia as províncias orientais, recém-anexadas da Polônia, onde era realmente numerosa (e pobre) a
população judaica. Assim, o decreto de emancipação dos judeus da Prússia, de 1812, referia-se apenas
àqueles grupos judeus, úteis e ricos, que já gozavam da maioria dos direitos civis e que, com a abolição
geral dos privilégios, sofreriam grave perda do seu status específico. Mas por outro lado, para estes
grupos a emancipação, no sentido geral, apenas confirmava o status quç.
Mas as simpatias dos reformadores prussianos pelos judeus encobriam a consequência lógica de suas
aspirações políticas gerais. Quando, quase uma década depois, e em meio à crescente onda de antissemitismo, Wilhelm von Humboldt declarou que "amo os judeus realmente só en masse; en détail, prefiro
evitá-los",[25] estava naturalmente opondo-se à moda da época, que favorecia os judeus como indivíduos,
mas que desprezava o povo judeu. Verdadeiro democrata, Humboldt desejava, ao contrário, libertar um
povo oprimido, mas não outorgar privilégios a indivíduos. Essa atitude seguia também a tradição das
antigas autoridades do governo da Prússia, cuja constante insistência, durante todo o século XVIII, em
melhorar as condições de vida e aprimorar a educação para os judeus foi amplamente reconhecida. Esse
apoio não era motivado apenas pelas razões econômicas ou de Estado, mas por simpatia natural de um
grupo por um outro que também se colocava fora do corpo social e dentro da esfera do Estado, embora
por motivos completamente diferentes. Tratava-se do funcionalismo civil, cuja lealdade ao Estado
independia das mudanças de governo, e que também desconhecia os laços de classe. Esse grupo é
decisivo na Prússia do século XVIII, e é ele que forma os precursores da reforma pós-napoleônica. Ele é
a peça principal da máquina do Estado durante todo o século XIX, embora depois do Congresso de Viena, passageiramente, perdesse muito de sua influência para
a aristocracia.[26]
Quando ouviu falar de uma possível conversão em massa dos judeus, Frederico II da Prússia exclamou:
"Espero que não façam coisa tão diabólica!".[27] Mas depois de Napoleão a necessidade do reconhecimento
da utilidade dos judeus como tais deixou de existir. A emancipação foi-lhes concedida em nome de
princípios, e, de acordo com a mentalidade da época, teria sido sacrílega qualquer alusão a serviços
especiais prestados pelos judeus como judeus. As condições especiais que haviam levado à emancipação,
embora conhecidas de todos os interessados, eram acobertadas como se fossem um segredo. O próprio
édito, por outro lado, havia sido recebido como a última e, em certo sentido, a mais brilhante conquista na
mudança de um Estado feudal para um Estado-nação onde, de então em diante, não haveria mais
quaisquer privilégios especiais para nenhum grupo.
Entre as reações naturalmente amargas da aristocracia, que era a classe mais atingida pelas mudanças,
estava uma súbita e inesperada irrupção de anti-semitismo. Seu mais eloqüente porta-voz, Ludwig von
der Marwitz, proeminente ideólogo conservador, apresentou ao governo uma petição na qual apresentava
os judeus como único grupo a gozar de reais vantagens em conseqüência da alteração legal do sistema,
anunciando "a transformação da antiga e imponente monarquia prussiana em um Estado judeu". O ataque
político foi seguido de um boicote social, que alterou o aspecto da sociedade de Berlim. Os aristocratas
eram os primeiros a estabelecer relações sociais amistosas com os judeus, e a sua presença havia tornado
famosos os salões de anfitriãs judias no fim do século XVIII, onde se reuniam grupos socialmente mistos.
É verdade que, até certo ponto, essa ausência de preconceito resultava dos serviços prestados pelos
agiotas judeus que, excluídos das transações comerciais maiores, encontravam sua única oportunidade
nos empréstimos, economicamente improdutivos e insignificantes, mas socialmente importantes, a
pessoas que tendiam a viver acima de suas posses. Essas relações sociais sobreviveram às monarquias
absolutistas, que, com suas amplas possibilidades financeiras, tornaram obsoletos os negócios de
empréstimos privados e, por conseguinte, a figura do judeu-da-corte. A natural necessidade de um nobre
em manter segura a fonte de auxílio em emergência levava-o, frequentemente, ao casamento com jovem
filha do judeu rico, o que enfraquecia entre a nobreza o ódio aos judeus. Este surgia, porém, quando um
judeu, mesmo que rico, deixava de socorrê-lo como judeu.
A explosão do antissemitismo aristocrático não resultava, como se pode supor, do contato mais
íntimo cultivado entre judeus e nobreza, contato que os unia na aversão contra os novos valores
burgueses. Essa aversão procedia de fontes muito semelhantes. Nas famílias judias, como nas
famílias nobres, o indivíduo era olhado antes de mais nada como membro da família; seus
deveres eram, em primeiro lugar, determinados pela família, que transcendia os anseios e a
importância do próprio indivíduo. Tanto judeus como nobres eram a-nacionais e intereuropeus,
e um compreendia o modo de vida do outro, no qual a afiliação nacional era menos importante
que a lealdade a uma família, geralmente espalhada por toda a Europa. Compartilhavam a noção
de que o presente é nada mais que um laço insignificante na corrente de gerações passadas e
futuras. A escritores liberais antissemitas não passou despercebida essa curiosa semelhança de
princípios. Por isso, concluíam que talvez o melhor modo de se desfazer da nobreza fosse
primeiro desfazer-se dos judeus. Isso não era sugerido por causa das ligações financeiras entre
os dois grupos, mas porque ambos eram considerados como um obstáculo ao desenvolvimento
da "personalidade inata", da ideia do respeito ao indivíduo, que as classes médias usavam como
arma em sua luta contra os conceitos de nascimento, família e linhagem.
A explosão do antissemitismo aristocrático não resultava, como se pode supor, do contato mais
íntimo cultivado entre judeus e nobreza, contato que os unia na aversão contra os novos valores
burgueses. Essa aversão procedia de fontes muito semelhantes. Nas famílias judias, como nas
famílias nobres, o indivíduo era olhado antes de mais nada como membro da família; seus
deveres eram, em primeiro lugar, determinados pela família, que transcendia os anseios e a
importância do próprio indivíduo. Tanto judeus como nobres eram a-nacionais e intereuropeus,
e um compreendia o modo de vida do outro, no qual a afiliação nacional era menos importante
que a lealdade a uma família, geralmente espalhada por toda a Europa. Compartilhavam a noção
de que o presente é nada mais que um laço insignificante na corrente de gerações passadas e
futuras. A escritores liberais antissemitas não passou despercebida essa curiosa semelhança de
princípios. Por isso, concluíam que talvez o melhor modo de se desfazer da nobreza fosse
primeiro desfazer-se dos judeus. Isso não era sugerido por causa das ligações financeiras entre
os dois grupos, mas porque ambos eram considerados como um obstáculo ao desenvolvimento
da "personalidade inata", da ideia do respeito ao indivíduo, que as classes médias usavam como
arma em sua luta contra os conceitos de nascimento, família e linhagem.
Esses fatores tornam mais significativo o fato de terem sido exatamente os aristocratas que
iniciaram a argumentação política de caráter antissemita. Nem os laços econômicos nem a
intimidade social continuavam válidos no momento em que a aristocracia decidiu opor-se ao
Estado-nação igualitário. Socialmente, o ataque contra o Estado identificava os judeus com o
governo; embora os ganhos reais, econômicos e sociais, das reformas coubessem à classe média,
ela raramente era inculpada politicamente, e suportava com indiferença a tradicional atitude
desdenhosa dos aristocratas. Os judeus podiam ser atacados mais facilmente: perderam sua
antiga influência e tradicionalmente catalisavam antipatias. Assim, tornando-se antipática aos
antipatizados judeus, a aristocracia almejava tornar-se simpática na opinião geral.
Após o Congresso de Viena, quando, durante as décadas de reação pacífica sob a Santa Aliança,
a nobreza prussiana havia recuperado grande parte de sua influência sobre o Estado e se tornara
temporariamente ainda mais importante do que havia sido no século XVIII, o antissemitismo
aristocrata transformou-se em tênue discriminação, embora sem significação política.[28] Ao
mesmo tempo, com a ajuda dos intelectuais românticos, o conservatismo alcançou pleno
desenvolvimento como uma das ideologias políticas que, na Alemanha, adotaram uma atitude
característica e engenhosamente equívoca em relação aos judeus. Daí em diante, o Estado
nação, baseado nos argumentos conservadores, fez uma divisão bem distinta entre aqueles
judeus que eram necessários e desejados e os que não o eram. Sob o pretexto do caráter cristão
do Estado — embora esta ideia fosse alheia aos déspotas esclarecidos —, a crescente intelligentsia
judia podia agora sofrer aberta discriminação, sem que fosse causado dano aos negócios de
banqueiros e comerciantes. Esse tipo de discriminação, que tentou fechar as universidades aos
judeus, excluindo-os também do funcionalismo civil, apresentava dupla vantagem: indicava que
o Estado-nação dava maior valor a serviços especiais do que à igualdade, e evitava, ou pelo
menos adiava, o nascimento de um grupo de judeus desprovidos de qualquer utilidade aparente
para o Estado, e que poderiam até ser assimilados pela sociedade.[29] Quando, na década de 1880,
Bismarck fez considerável esforço para proteger os judeus contra a propaganda antissemita de
Stoecker, disse literalmente que desejava protestar tão-só contra os ataques aos "judeus ricos,
cujos interesses estão ligados à conservação de nossas instituições estatais", e que seu amigo, o
banqueiro Bleichroeder, não se queixava dos ataques aos judeus em geral (o que podia até ter
ignorado), mas sim aos judeus ricos (o que o atingia pessoalmente).[30]
Esse aparente equívoco com que as autoridades governamentais protestavam, de um lado, contra
a igualdade (especialmente igualdade profissional) para os judeus, para se queixarem, mais
tarde, da influência judaica na imprensa, enquanto, de outro lado, sinceramente "desejavam que
fossem felizes em tudo",[31] servia mais aos interesses do Estado que o antigo zelo reformador.
Afinal, o Congresso de Viena devolvera à Prússia algumas partes da Polônia desmembrada, nas quais as massas judias pobres haviam vivido durante séculos, e ninguém, a não ser uns poucos
intelectuais que sonhavam com a Revolução Francesa e com os Direitos do Homem, jamais
pensara em lhes dar posição de igualdade, a qual, aliás, os seus irmãos ricos do Ocidente
certamente não desejariam compartilhar, vendo nela futuras consequências nefastas — a
competição e a ameaça à imagem do judeu culto, que ostentavam.[32] Aliás, eles já previam que "cada medida legal ou política no sentido da emancipação dos judeus em geral levaria
necessariamente à deterioração de sua própria situação cívica e social".[33] E também sabiam o quanto seu
poder dependia da posição e prestígio que alcançaram dentro das comunidades judaicas. Assim, "sua
política era de tentar obter mais influência para si, mantendo os correligionários [do Leste] em isolamento
nacional, como se essa separação fizesse parte da religião. [...] Assim, os outros, dependendo deles cada
vez mais, poderiam ser usados exclusivamente por aqueles judeus que alcançaram a posição de mando".[34] As previsões eram corretas: quando, no século XX, a emancipação tornou-se, pela primeira vez, um fato
consumado para as massas judaicas, o poder dos judeus privilegiados havia desaparecido.
Estabeleceu-se assim uma perfeita harmonia de interesses entre os judeus poderosos e o Estado. Os
judeus ricos quiseram e obtiveram o controle de seus correligionários pobres, segregando-os em relação à
sociedade não-judaica, o Estado podia combinar a política de benevolência para com judeus ricos à
discriminação legal contra a intelligentsia judia e a promoção da segregação social, tal como era expressa
na teoria conservadora da essência cristã do Estado.
Enquanto o antissemitismo, entre a nobreza, permaneceu sem consequência política e acalmou-se nas
décadas da Santa Aliança, os intelectuais liberais e radicais inspiraram e lideraram um movimento antissemita imediatamente após o Congresso de Viena. A oposição liberal ao regime policial de Met-ternich
estabelecido no continente europeu e violentos ataques ao governo reacionário prussiano levaram
rapidamente a explosões antissemitas e a verdadeiro dilúvio de panfletos antissemitas. Por serem muito
menos sinceros e francos em sua oposição ao governo que o nobre Marwitz havia sido uma década antes,
os intelectuais atacavam mais os judeus que o governo. Por serem intelectuais, atacavam com maior
eficácia qualitativa e quantitativa. Interessados principalmente na igualdade de oportunidades e
ressentindo a restauração de privilégios da aristocracia (com a qual identificavam os judeus) que
limitavam sua admissão aos serviços públicos, introduziram na discussão a diferença entre judeus
individuais, "nossos irmãos", e o povo judeu como grupo, diferença esta que, daí por diante, se tornaria a
marca registrada do antissemitismo da esquerda. Cunharam — para definir os judeus como grupo — as
expressões nacionalistas "Estado dentro de um Estado" e "nação dentro de outra nação". Positivamente
errados no primeiro caso, porquanto os judeus não tinham ambições políticas próprias e eram
simplesmente o único grupo social incondicionalmente leal ao Estado, estavam certos no segundo, porque
os judeus, tomados como um grupo social e não político, realmente constituíam um corpo separado dentro da nação.[35]
Na Prússia, embora não na Áustria ou na França, esse antissemitismo radical foi tão efêmero e
inconsequente como o antigo antissemitismo da pobreza. Os radicais foram gradualmente absorvidos pelo
liberalismo das classes médias economicamente ascendentes, que passaram a exigir por sua vez a
emancipação dos judeus como símbolo da institucionalização da igualdade política. Contudo, esse antissemitismo estabeleceu certa tradição teórica e até mesmo literária, cuja influência se pode sentir nos
famosos escritos antijudaicos do jovem Marx, tão frequente e injustamente acusado de antissemitismo. O
fato de o judeu Karl Marx poder escrever do mesmo modo que os radicais antijudeus prova apenas quão
pouco essa argumentação antijudaica tinha a ver com o antissemitismo ideologicamente maduro. Como
indivíduo judeu, Marx sentia-se tão pouco vexado por esses argumentos contra "o povo judeu" quanto
Nietzsche, por exemplo, no tocante aos seus argumentos contra a Alemanha. É verdade que Marx, nos
últimos anos de vida, jamais escreveu ou expressou opinião sobre a questão judaica, mas isso dificilmente
pode ser atribuído à mudança fundamental de sua atitude. Sua preocupação exclusiva com a luta de
classes e com os problemas da produção capitalista, na qual os judeus não estavam envolvidos nem como
consumidores nem como fornecedores da mão-de-obra, e seu completo descaso pelas questões políticas
automaticamente impediam que ele investigasse mais a fundo a estrutura do Estado e, portanto, o papel
nele desempenhado pelos judeus. A forte influência do marxismo no movimento trabalhista da Alemanha
é uma das principais razões pelas quais os movimentos revolucionários alemães mostraram tão poucos
sinais de sentimento antijudeu.[36] Os judeus realmente tinham pouca ou nenhuma importância nas lutas
sociais da época.
Os primórdios do movimento antissemita moderno datam, em toda parte, do último terço do século XIX.
Na Alemanha começou, de modo inesperado, novamente entre a nobreza, cuja oposição ao Estado foi de
novo provocada pela transformação da monarquia prussiana num Estado-nação completado depois de
1871. Bismarck, o verdadeiro fundador do Reich alemão, havia mantido estreitas relações com os judeus
desde a época em que era primeiro-ministro; agora era acusado de depender e de aceitar o suborno dos
judeus. Sua tentativa — e o parcial sucesso — de abolir os vestígios feudais resultou inevitavelmente em
conflito com a aristocracia; os ataques a Bismarck mostravam-no como vítima inocente, ou como agente, a soldo do judeu Bleichroeder. Na realidade, a relação era
exatamente oposta: Bleichroeder era sem dúvida um agente muito estimado e bem pago de
Bismarck.[37]
Não obstante, a aristocracia feudal, embora ainda bastante poderosa para influenciar a opinião
pública, não era por si mesma bastante forte ou importante para iniciar um verdadeiro
movimento antissemita, como o que começou na década de 80. Seu porta-voz, o capelão da
corte Stoecker, ele próprio nascido na classe média inferior, era representante muito menos
sagaz dos interesses conservadores do que os seus predecessores, os intelectuais românticos, que
haviam formulado os pontos principais da ideologia conservadora uns cinquenta anos antes.
Além disso, descobriu a utilidade da propaganda antissemita não graças a considerações práticas
ou teóricas, mas por acaso, quando percebeu a sua utilidade para lotar auditórios que, de outra
forma, permaneceriam vazios. Mas, sem compreender seu repentino sucesso, como capelão da
corte e empregado tanto da família real como do governo, ele dificilmente estava em posição de
usá-lo adequadamente. Seu público entusiasmado era composto exclusivamente de pequenos
burgueses, isto é, de lojistas e negociantes, artesãos e artífices à moda antiga, e os sentimentos
antijudaicos dessa gente não eram ainda, e por certo não exclusivamente, motivados pelo
conflito com o Estado.
continua página 46...
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Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.2)
___________________
[23] James Parkes, The emergence ofthe Jewish problem, 1879-1939, 1946, discute essas condições de forma sintética e
imparcial nos capítulos IV e VI.
[24] Christian Wilhelm Dohm, Über die bürgeliche Verbesserung der Juden [Da melhoria cívica dos judeus], Berlim e Stettin,
1781,1,174.
[25] Wilhelm und Caroline von Humboldt in ihren Briefen [W. e C. von H. em suas cartas], Berlim, 1900, vol. V, p. 236.
[26] Excelente descrição desses servidores civis, que não diferiam de um país para outro, encontra-se em Henri Pirenne, A
history ofEuropefrom tke Invasions to the XVI century, Londres, 1939, pp. 361-2: "Sem preconceitos de classe e hostis aos
privilégios dos grandes nobres que os desprezavam, (...) não era o rei que falava através deles, mas a monarquia anônima,
superior a todos, subjugando a todos com o seu poder". [O original francês foi publicado em 1936.]
[27] VeroKleinesJahrbuch des Nützlichen und Angenehmen für Jsraeliten [Pequeno anuá-rio do útil e do agradável aos
israelitas], 1947.
[28] Ao apresentar uma lei de emancipação dos judeus em 1847, quase todos os membros da aristocracia
manifestaram-se a favor dessa iniciativa do governo da Prússia. Ver I. Elbogen, Gesch-ichte derJuden in Deutschland
[História dos judeus na Alemanha], Berlim, 1935, p. 244.
[29] Foi por essa razão que os soberanos da Prússia se preocuparam tanto com a mais estrita conservação dos
costumes e ritos religiosos judeus. Em 1823, Frederico Guilherme III proibiu "as menores inovações", e seu sucessor,
Frederico Guilherme IV, declarou abertamente que " o Estado não deve fazer coisa alguma que possa incrementar a
mistura entre os judeus e os outros habitantes" do seu reino. (Elbogen, op. cit., pp. 223 e 234.)
[30] Numa carta ao Kultusminister (ministro da Religião) von Puttkamer em outubro de 1880. Ver também a carta de
Herbert von Bismarck, de novembro de 1880, a Tiedemann. Ambas estão em Walter Frank, Hofprediger Adolf
Stoecker und die christlich -soziale Bewegung [O capelão da corte A. S. e o movimento social-cristão], 1928, pp. 304
e 305.
[31] August Varnhagen comenta uma observação feita por Frederico Guilherme IV, "Perguntou-se ao rei o que ele
pretendia fazer com os judeus. Ele respondeu: 'Desejo que sejam felizes em tudo, mas quero que sintam que são
judeus'. Estas palavras revelam muitas coisas." (Tage-bücher [Diários], Leipzig, 1861, II, p. 113).
[32] Era do domínio público no século XVIII que a emancipação judaica teria de ser realizada contra os desejos dos
representantes judeus. Mirabeau argumentou perante a Assemblée Nationale em 1789: "Senhores, é porque os judeus
não querem ser cidadãos que vós não os proclamais cidadãos? Num governo como o que vós constituis agora, todos
os homens devem ser homens; deveis expulsar todos aqueles que não o são ou se recusam a tornar-se homens". A
atitude dos judeus alemães no começo do século XIX é relatada por Isaac Markus Jost, Neuere Geschichte der
Israeliten 1815-1845 [Nova história dos israelitas], Berlim, 1846, vol. 10.
[33] Adam Mueller (ver Ausgewàhlte Abhandlungen [Ensaios escolhidos], editados por J. Baxa, Jena, 1921, p. 215) numa carta de
1815 a Metternich.
[34] H. E. G. Paulus, Diejüdische Nationalabsonderung nach Ursprung, Folgen und Besse-rungsmitteln. [A separação nacional dos
judeus segundo origens, consequências e meios de melhoria], 1831.
[35] Para uma apreciação clara e confiável do antissemitismo alemão no século XIX, ver Waldemar Gurian, "Antisemitism in
modern Germany", emEssays on anti-Semitism, editados por K. S. Pinson, 1946.
[36] O único antissemita alemão da esquerda que teve alguma importância foi E. Duehring, que, embora de modo confuso, inventou
uma explicação naturalista da "raça judia" em seu Die Judenfrage ais Frage der Rassenschàdlichkeit für Existem, Sitte und Cultur
der Võlker mit einer weltgeschichtlichen Antwort [A questão judaica como problema da nocividade racial para a existência,
permanência e cultura dos povos, com uma solução historicamente universal], 1880.
[37] Para os ataques antissemitas contra Bismarck, ver Kurt Wawrzinek, Die Entstehung der deutschen Antisemitenparteien [O
surgimento dos partidos antissemitas alemães], 1873-1890, Historische Studien [Estudos históricos], caderno 168, 1927.
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