terça-feira, 17 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Noite de Valburga (a)

Thomas Mann


A Montanha Mágica 

Capítulo V

Noite de Valburga 
.
continuando...

     Dentro de poucos dias faria sete meses que o jovem Hans Castorp se achava nessas alturas, ao passo que o primo Joachim, com cinco meses a mais nas costas, já se podia lembrar de quase doze meses de estadia, um ano inteiro, em conta redonda – redonda no sentido cósmico, uma vez que a Terra, desde o dia em que ali o deixara a potente locomotivazinha, dera uma volta completa em torno do Sol e regressara ao ponto onde então se achava. Estava-se na época do carnaval. Aproximavam-se os folguedos da terça-feira, e Hans Castorp indagou dos pensionistas com mais de um ano de permanência que tal era a festa ali em cima. 

– Magnífica! – respondeu Settembrini, a quem os primos haviam encontrado durante o exercício matinal. – Esplêndida! – acrescentou. – É tão alegre como no Prater; o senhor vai ver, engenheiro. “Cá viemos mui lampeiros figurar de cavalheiros...” – citou, e sua boca se pôs a transbordar de ironias, que ele acompanhou de gestos apropriados da cabeça, dos braços e dos ombros: – Que quer o senhor? Na própria maison de santé realizam-se às vezes bailes para os loucos e os idiotas. Pelo menos é o que li em alguma parte. Por que razão não o fariam também aqui? O programa contém as mais diversas danças macabras. Infelizmente, alguns dos convidados do ano passado não poderão estar presentes, uma vez que a festa termina às nove e meia... 
– Isso significa... Ah, sim! Essa é boa! – riu-se Hans Castorp. – O senhor inventa cada coisa! Às nove e meia! Você ouviu esta? É muito cedo para que “certa parte” da assistência do ano passado possa comparecer, acha o Sr. Settembrini. Ah, ah! é fantástico! Trata-se da parte que nesse ínterim disse definitivamente vale à carne, sabe? Você compreendeu o meu trocadilho?...[1] Mas estou mesmo curioso para ver isso – continuou. – Parece-me muito certo que aqui se celebrem as festas quando se apresentam. Assim, as etapas são marcadas, como de costume, por meio de entalhes, para que não haja uma monotonia confusa, que seria muito tediosa. Tivemos o Natal, e notamos o começo do ano novo. E agora vem o carnaval. Depois se aproximará o Domingo de Ramos -será que aqui servem rosquinhas? —, haverá a Semana Santa, a Páscoa e Pentecostes, seis semanas mais tarde. Em seguida será o dia mais longo do ano, o solstício de verão, e logo nos encaminharemos para o outono... 
– Pare! Pare com isso! – exclamou Settembrini, elevando os olhos para o céu e comprimindo as têmporas com as palmas da mão. – Cale-se! Não posso ouvir como o senhor se excede dessa maneira... 
– Perdão, quero dizer, justamente... Bem, parece que o Behrens se decidirá finalmente a me dar aquelas injeções para me desintoxicar. Tenho constantemente temperaturas entre 37,4 e 37,7. Isso não se modifica. Sou e continuo sendo um filho enfermiço da vida. Não sou propriamente um paciente a longo prazo. Radamanto nunca me condenou a uma pena determinada, mas acha que seria absurdo interromper o tratamento prematuramente, depois de tantos meses que estou aqui, e depois de ter, por assim dizer, empatado um tempo considerável. De que serviria fixar um prazo? Isso não significaria nada, pois quando ele diz, por exemplo: “Meio ano, pouco mais ou menos”, trata-se do mínimo, e é preciso que a gente se prepare para mais. Vejo isso no caso de meu primo, cujo fim devia ter chegado ao princípio deste mês – digo “fim” no sentido da alta definitiva —, mas, da última vez, o Behrens lhe acrescentou mais quatro meses até a cura completa. Sim, senhor, e depois que haverá? Haverá o solstício de verão, como eu já disse, sem a mínima intenção de melindrá-lo, e novamente estaremos a caminho do inverno. Ora, por enquanto só teremos o carnaval, e o senhor já sabe que acho muito acertado e bonito que a gente celebre todas as festas na ordem, como estão marcadas no calendário. A Srª. Stöhr me contou que o porteiro tem à venda umas cornetas de brinquedo.
     Era verdade. Desde o café da manhã na terça-feira de carnaval, que chegara depressa, ainda antes que se tivesse tempo de avistá-la de longe – desde as primeiras horas da manhã, ouvia-se na sala de refeições toda espécie de sons produzidos por instrumentos de sopro, que roncavam ou trilavam carregados do melhor humor. Durante o almoço foram jogadas serpentinas da mesa de Gänser, Rasmussen e da Kleefeld; algumas pessoas, como a Marusja dos olhos redondos, já levavam carapuças de papel, igualmente compradas no alojamento do porteiro coxo. Pela noite, porém, desenvolveu-se na sala e nas dependências uma animação festiva, no decorrer da qual... Unicamente o autor sabe por ora o que se passou no decorrer dessa animação festiva do carnaval, devido ao espírito empreendedor de Hans Castorp. Mas não nos deixemos arrastar pelo nosso conhecimento da história a abandonar a circunspeção do nosso estilo. Atribuamos ao tempo a honra que merece e não precipitemos a narrativa. Talvez até retardemos um pouco o curso dos acontecimentos, participando das inibições morais do jovem Hans Castorp, que por tanto tempo haviam atrasado a sua realização.
     À tarde, todo mundo foi a Davos-Platz para olhar o movimento carnavalesco nas ruas. Desfilavam as fantasias, os pierrôs e os arlequins, agitando as matracas. Entre os pedestres e as pessoas fantasiadas que ocupavam os trenós enfeitados e providos de guizos, iam sendo travadas batalhas de confete. Na hora do jantar, os pensionistas reuniram-se sumamente alegres em torno das sete mesas, decididos a manter o entusiasmo público nesse recinto fechado. As carapuças de papel, as cuícas e as cornetas do porteiro tinham sido vendidas com grande rapidez. O Promotor Paravant dera início aos disfarces mais completos, vestindo um quimono de senhora e um rabicho postiço, que, segundo as exclamações vindas de todos os lados, pertencia à esposa do Cônsul-Geral Wurmbrand; por meio de um encrespador, puxara para baixo as pontas do bigode, de maneira que parecia um chinês perfeito. A “administração” não ficava atrás. Cada mesa estava adornada de uma lanterna de papel, que mostrava uma lua multicor e tinha no seu interior uma vela acesa. Settembrini, ao entrar na sala e passar perto da mesa de Hans Castorp, citou uns versos que podiam referir-se a essa iluminação:

– “Perceberá candeios de mil cores. 
 Há lá festa; há de achar-se acompanhado...”

– murmurou com um sorriso fino e seco, enquanto, negligentemente, se dirigia ao seu lugar, onde o receberam com pequenos projéteis, bolinhas cheias de um líquido perfumado, que se quebravam com o choque e molhavam as vítimas. Numa palavra, a animação festiva foi extraordinária desde o início. Estrondeavam gargalhadas; serpentinas dependuradas dos lustres balançavam-se agitadas pelas correntes de ar; no molho dos assados boiavam confetes. A anã não tardou a trazer, com passo apressado, a primeira garrafa de champanha num recipiente de gelo. Misturavam o champanha com vinho da Borgonha, obedecendo a uma sugestão do advogado Einhuf. Pelo fim da refeição, apagaram-se as luzes do teto e a iluminação limitou-se às lanternas, que lançavam sobre o ambiente o claro-escuro variegado de uma noite italiana. A essa altura dos acontecimentos o bom humor era geral, e na mesa de Hans Castorp houve muitos aplausos quando Settembrini entregou um bilhete a Marusja, que tinha o lugar mais próximo dele. A moça, enfeitada de um gorro de jóquei, de papel de seda verde, fez circular o papelzinho, no qual se liam os seguintes escritos a lápis:

“Mas veja que esta noite é a festa das diabruras cá no monte; e eu também sou uma das figuras. Mas vá lá; faltarei contanto que releve a um pobre fogo-fátuo o modo como o leve”. 

     O Dr. Blumenkohl que, a essa época, novamente andava muito mal de saúde, esboçou aquela expressão, ou melhor, aquela contração dos lábios que lhe era peculiar, e murmurou algumas palavras relativas à procedência desses versos. Hans Castorp, por sua vez, achou-se na obrigação de dar uma resposta humorística. Tencionou escrever no bilhete uma réplica, que, na verdade, não poderia ser muito significativa. Remexeu os bolsos em busca de um lápis, mas não o encontrou e tampouco pôde consegui-lo de Joachim ou da professora. Pedindo auxílio, seus olhos estriados de vermelho dirigiram-se para o leste, no canto traseiro da sala, bem à esquerda. Viu-se então como aquela intenção fugaz degenerava em associações de ideias tão longínquas, que Hans Castorp empalideceu, esquecendo-se totalmente de seu intuito primitivo.  
     Havia, além disso, outros motivos para empalidecer. Mme. Chauchat, que tinha o seu lugar ali atrás, engalanara-se por causa do carnaval; trajava um vestido novo, ou pelo menos um vestido que Hans Castorp nunca a vira usar – de uma seda leve e escura, quase preta, que não cambiava senão de vez em quando com um brilho dourado-castanho; o decote, redondo e discreto, qual o de um vestido de garota, mal mostrava o pescoço, a junção das clavículas e, atrás, as vértebras da nuca, um tanto salientes sob os cabelos soltos, em virtude da posição avançada da cabeça; mas os braços de Clávdia estavam desnudos até os ombros, esses braços delgados e todavia cheios, braços frios, provavelmente, e que se destacavam tão brancos da seda escura do vestido, que Hans Castorp, fechando os olhos, murmurou de si para si: – Deus meu! – Nunca antes deparara com esse tipo de vestido. Conhecia vestidos de baile com decotes tais como permitia ou até prescrevia o caráter da festa, decotes muito mais amplos do que este, sem, contudo, produzirem efeito igualmente sensacional. Evidenciou-se, antes de tudo, ter-se enganado redondamente o pobre Hans Castorp, ao supor que o encanto e a insensata sedução desses braços, que só conhecia através de um véu de gaze fina, iam ser menos intensos sem essa auréola sugestiva. Engano! Ilusão fatal! A nudez completa, acentuada e deslumbrante desses magníficos membros de um organismo intoxicado, constituía um espetáculo muito mais emocionante do que a auréola de outrora, uma visão à qual não se podia responder de outra maneira que baixando a cabeça e repetindo, em voz surda: - Deus meu!
     Pouco mais tarde chegou outro bilhete com o seguinte conteúdo:

 “Quem viu jamais melhor sociedade? 
 Tudo moças, perfeitas donzelas! 
 Tudo moços digníssimos delas! 
 Que promessas à posteridade!” 

      Ressoavam aclamações e bravos. Já tinham progredido até o cafezinho, que era servido em pequenos bules de barro pardo; outros tomaram licores, como por exemplo a Srª. Stöhr, que gostava imensamente de bebidas fortes e doces. Os comensais começaram a levantar-se e a circular pela sala. Visitavam-se uns aos outros; trocavam de mesa. Parte dos pensionistas já passara para os salões, enquanto outros, mais sedentários, continuavam a fazer honra à mistura de vinhos. Settembrini chegou então pessoalmente, com a xícara de café na mão e o palito entre os dentes. Sentou-se como visitante à cabeceira da mesa, entre Hans Castorp e a professora. 

– “Montanhas do Harz” – disse. – “Região entre Schierke e Elend.[2]“ Será que lhe prometi demais, engenheiro? “Que feira! Gira-me a cabeça!” Mas espere um pouco, ainda não se esgotou o nosso engenho. Ainda não chegamos ao apogeu; estamos longe do fim. Como se ouve dizer, haverá outros disfarces. Algumas pessoas se retiraram, e isso nos permite esperar muita coisa. O senhor vai ver.

     Com efeito, apareciam novas fantasias. Senhoras vestidas de homem, com os rostos enegrecidos mediante rolhas tisnadas, e que ofereciam um aspecto pouco natural, de opereta, pela opulência das suas formas. Cavalheiros que, por sua vez, se haviam fantasiado de mulher, trajando longos vestidos, em cujas saias tropeçavam, como, por exemplo, o estudante Rasmussen, numa roupa preta, enfeitada de lantejoulas, exibindo um decote cheio de espinhas e abanando-se, pela frente e por trás, com um leque de papel. Apareceu um mendigo, arrastando-se de joelhos dobrados, apoiado numa muleta. Um pensionista transformara roupas de baixo e um chapéu de senhora numa fantasia de pierrô; empoara o rosto de tal maneira que os olhos adquiriam uma expressão estranha, e, por meio de batom, dera à boca um certo relevo de sanguinolência; era o rapazote de unha comprida. Um grego da mesa dos “russos ordinários”, dotado de pernas bonitas, pavoneava-se em ceroulas de malha lilás, com uma golilha de papel e um florete, pretendendo ser um fidalgo espanhol ou um príncipe de conto de fadas, Todas essas fantasias haviam sido improvisadas, a toda a pressa, depois do fim da refeição. A Srª. Stöhr também não pôde permanecer no seu lugar por mais tempo. Sumiu, para logo reaparecer disfarçada de arrumadeira, com a saia e as mangas arregaçadas; tinha as fitas da touca de papel amarradas por baixo do queixo; munida de balde e vassoura, pôs-se a trabalhar, passando o pano molhado sob as mesas, entre as pernas das pessoas sentadas.

“A velha Baubo vem sozinha...”,

citou Settembrini ao vê-la, e não deixou de acrescentar, na sua pronúncia clara e plástica, o verso seguinte. Quando ela ouviu essas palavras, chamou-o de “galo italiano” e mandou-o parar com essas “porcarias”. Em nome da liberdade própria das máscaras, tuteou-o; pois esse tratamento já fora adotado em toda parte durante a refeição. Settembrini esteve a ponto de retrucar, quando uma barulheira e uma onda de gargalhadas, vindas do vestíbulo, o interromperam e atraíram a atenção da sala. 
     Seguidas de pensionistas que saíam dos salões, entraram solenemente duas estranhas figuras, que apenas acabavam de fantasiar-se. Uma vinha em trajes de diaconisa, mas seu hábito preto estava coberto, desde o pescoço até a barra, de faixas brancas, transversais; listras curtas, próximas umas das outras, e longas, mais espaçadas, dispostas à maneira da marcação de um termômetro. Levava um dos indicadores à boca pálida e trazia, na outra mão, uma papeleta de temperatura. O outro mascarado vinha vestido de azul, com os lábios e os sobrolhos pintados de azul, e com manchas azuis no rosto e no pescoço; usava um gorro de lã azul, colocado obliquamente na cabeça, e trajava uma espécie de macacão de alpaca azul, feito de uma só peça, atado nos tornozelos por meio de fitas e com enchimento na parte central do corpo para formar uma enorme barriga. As figuras foram reconhecidas como sendo a Srª. Iltis e o Sr. Albin. Ambos levavam cartazes de papelão, nos quais se podia ler: “A Irmã Muda” e “Joãozinho Azul”. A passo saltitante deram volta à sala.
     Quantos aplausos não receberam! Houve aclamações a não acabar. A Srª. Stöhr, com a vassoura debaixo do braço e com as mãos fincadas nos joelhos, riu-se desmedida e ordinariamente, como lhe permitia o seu papel de arrumadeira. Unicamente Settembrini mostrou se reservado. Seus lábios, sob a bela curva do bigode, comprimiram-se sobremaneira, após um rápido olhar aos dois mascarados, alvo de tantas palmas.
     Entre as pessoas que, formando o cortejo do Azul e da Muda, haviam voltado das dependências à sala de refeições, achava-se também Clávdia Chauchat, em companhia de Tamara, a moça dos cabelos lanosos, e daquele comensal de tórax côncavo, um certo Buligin, que usava smoking. Mme. Chauchat, no seu vestido novo, roçando a mesa de Hans Castorp, passou pela sala em diagonal, até a mesa do jovem Gänser e da Kleefeld, onde estacou, mãos nas costas, conversando e rindo, com os olhos oblíquos, enquanto os seus companheiros continuavam a seguir os fantasmas alegóricos e abandonavam a sala atrás deles. Também Mme. Chauchat enfeitara-se com uma carapuça de carnaval. Não era nem sequer um gorro comprado, mas sim daquele tipo que se faz para crianças, um tricórnio dobrado de papel branco. Usava-o atravessado, o que lhe ficava muito bem. O vestido de seda cambiante entre marrom-escuro e dourado deixava ver os pés e tinha saia godê. Nada mais diremos dos braços. Estavam nus até os ombros.

– “Repara!” – ouviu Hans Castorp a voz do Sr. Settembrini recitar como que de longe, enquanto seus olhares acompanhavam Mme. Chauchat, que, prosseguindo no caminho, se aproximava da porta envidraçada e saía da sala. – “É Lilith.” 
– Que Lilith? – perguntou Hans Castorp.
 
     O literato, gostando da pergunta correspondente ao texto, replicou: 

– “Lilith, a primeira mulher de Adão. Cuidado!...”

     Além deles, somente o Dr. Blumenkohl ainda permanecia à mesa, no seu lugar distante. Os demais companheiros, entre eles Joachim, tinham passado para os salões. Hans Castorp disse: 

– Hoje estás cheio de poesia e de versos. Que Lilith é essa, afinal? Adão casou-se duas vezes? Eu não sabia disso... 
– É a lenda hebraica que o diz. A tal Lilith transformou-se num fantasma noturno, perigoso aos jovens, sobre tudo pelos seus lindos cabelos. 
– Que horror! Um fantasma noturno com lindos cabelos! Isso não te agrada, hein? Então chegas e acendes, por assim dizer, a luz elétrica, para fazer os jovens voltarem ao bom caminho, não é? – disse Hans Castorp, divagando, porque bebera grandes quantidades daquela mistura de vinhos. 
– Escute, engenheiro, deixe disso! – ordenou Settembrini, de cenho carregado. – Sirva-se do tratamento que se emprega no Ocidente entre as pessoas cultas; use a terceira pessoa, por favor! Essa maneira de falar que o senhor está experimentando absolutamente não condiz com a sua pessoa. 
– Mas por que não? É carnaval. É a forma geralmente aceita nesta noite... 
– Sim, senhor, devido a um prazer imoral. O “tu” entre pessoas estranhas, isto é, entre pessoas que normalmente se tratam por “o senhor”, constitui repugnante selvageria, um jogo com o estado primitivo, um jogo silencioso que abomino, porque, no fundo, se dirige contra a civilização e contra a humanidade desenvolvida, e isso de uma forma insolente e despudorada. Eu não tratei o senhor por “tu”. Apenas citei um trecho da obra-prima da sua literatura nacional. Servi-me, portanto, de uma linguagem poética... 
– Eu também! Também eu falo, em certo sentido, poeticamente. É porque o momento me parece próprio para fazê-lo, só por isso! Não digo que me seja natural e fácil tratar-te por “tu”. Pelo contrário, custa-me certo esforço; lenho que me obrigar a isso. Mas faço-o com prazer, faço-o alegremente e de todo o coração... 
– De todo o coração? 
– Sim, de todo o coração. Podes acreditar-me. Já faz tempo que vivemos juntos aqui em cima! Uns sete meses; podes fazer o cálculo. Segundo os conceitos daqui não é grande coisa, mas, quando penso nas ideias que reinam lá embaixo, é tempo considerável. Bem, e esse tempo, nós o passamos um ao lado do outro, porque a vida nos reuniu aqui. Encontramo-nos quase todos os dias e tivemos palestras interessantes, frequentemente sobre assuntos dos quais lá embaixo eu não entenderia patavina. Mas aqui era diferente. Aqui achei-os importantes e pertinentes, de modo que todas as vezes que a gente discutia, prestei muita atenção. Ou melhor: todas as vezes que tu me explicavas as coisas na qualidade de um homo humanus, pois eu, com a minha falta de experiência, pouco sabia contribuir para o tema e apenas me limitava a achar digno de ser ouvido tudo quanto dizias. Graças a ti aprendi e compreendi muita coisa... O que me contaste de Carducci é o de menos, mas as relações que existem entre a república e o belo estilo, ou entre o tempo e o progresso da humanidade – se não houvesse o tempo seria impossível o progresso da humanidade, e o mundo não passaria de um charco estagnado e uma poça pútrida... Que saberia eu de tudo isso, se tu não me tivesses ensinado? Trato-te simplesmente por “tu” e não te dou outro nome. Desculpa-me, mas não sei como te falar de outra forma. Não há jeito. Aí te achas sentado, e chamo-te “tu”, simplesmente; é o quanto basta. Tu não és um homem qualquer que leva um nome, tu és um representante, Sr. Settembrini, um representante, neste lugar e a meu lado. Eis o que és – confirmou Hans Castorp, e com a palma da mão bateu sobre a toalha. – E agora quero agradecer-te – prosseguiu, aproximando a sua taça, cheia de borgonha misturado com champanha, da xícara de café do Sr. Settembrini, para tocá-la em cima da mesa –, agradecer te pelos cuidados que, durante estes sete meses, me devotaste de maneira muito amável; quero agradecer-te porque ajudaste nos seus exercícios e nas suas experiências o calouro que eu era e que se via assaltado por tantas impressões novas; porque procuraste exercer sobre mim uma influência corretiva, totalmente sine pecunia, por meio de historietas ou de forma abstrata. Tenho a sensação nítida de que chegou o momento de expressar a minha gratidão por isso e por tudo, e de pedir-te perdão por ter sido um mau aluno, um “filho enfermiço da vida”, como me chamaste. Quando me disseste isso, fiquei muito comovido, e cada vez que me lembro sinto a mesma emoção. Um filho enfermiço é o que fui sem dúvida também para ti e para a tua veia pedagógica, da qual me falaste logo no primeiro dia. Claro, pois aí temos mais uma dessas relações que tu me mostraste, a que existe entre o humanismo e a pedagogia. Com o tempo, eu descobriria muitas outras relações ainda... Perdoa-me e não guardes de mim recordações desfavoráveis! À tua saúde, Sr. Settembrini, viva! Esvazio a minha taça em homenagem aos teus esforços literários pelo extermínio dos sofrimentos humanos – terminou; e, inclinando-se para trás, sorveu em grandes tragos a mistura de vinhos. A seguir levantou-se, dizendo: – E agora vamos reunir-nos aos outros. 
– Escute, engenheiro, que lhe deu na veneta? – perguntou o italiano, com os olhos cheios de surpresa, e também se pôs de pé. – Isso soa como uma despedida... 
– Não; por que despedida? – respondeu Hans Castorp, esquivo. Esquivou-se não somente nas suas palavras, mas também fisicamente, descrevendo meio círculo com o corpo e avizinhando-se da professora, Srta. Engelhart, que viera buscá-los. No salão de música – anunciou ela – o conselheiro em pessoa estava preparando e distribuindo um ponche de carnaval, que a “administração” oferecia aos pensionistas. Que fossem para lá imediatamente se desejassem beber um copo. E eles se puseram a caminho.
   
continua pág 215...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Noite de Valburga (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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[1] “Vale” é uma palavra latina que significa “adeus”. É usada no final de um texto quando o autor se despede dos leitores. O trocadilho aqui se refere à palavra “carnaval” (Karneval = carne + vale). (N. do E.)
[2] Cenas do Fausto de Goethe. As demais citações de Settembrini são extraídas da mesma obra, particularmente da seção intitulada “Noite de Valburga”. (N. do E.)  

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