Elias Canetti
A CHUVA
Por toda parte, e sobretudo onde ela é rara, a chuva, antes de cair, é percebida como uma unidade. Na qualidade de nuvem, ela se aproxima e cobre primeiro o céu; antes da chuva, escurece, e tudo se reveste de cinza. Talvez se tenha uma consciência mais una daquele momento em que a chuva afigura-se uma certeza do que do fenômeno propriamente dito. E isso porque, frequentemente, a chuva é desejada, podendo mesmo tornar-se questão de vida ou morte se ela vai cair ou não. Nem sempre ela atende facilmente aos chamados, e os homens socorrem-se então da magia; numerosos e variados são os métodos para atraí-la.
A chuva cai em muitas gotas. As pessoas as veem, e veem muito
particularmente a sua direção. Em todas as línguas diz-se que a chuva
cai. Ela é vista sob a forma de muitos riscos paralelos, e o número das
gotas que caem acentua a unidade de sua direção. Não há direção que
mais impressione o homem do que a da queda; comparadas a ela, todas
as demais têm algo de derivado e de secundário. A queda é o que, desde
pequeno, o homem mais teme, e aquilo contra o qual ele se arma
primeiramente na vida. As pessoas aprendem a proteger-se dela;
fracassar aí faz-se ridículo ou perigoso a partir de uma certa idade. É a
chuva que, contrariamente ao homem, deve cair. Não há nada que caia
com tanta frequência e profusão quanto a chuva.
É possível que o número de gotas prive a queda de algo de seu peso e
dureza. Ouve-se-lhes o ruído, e o som é agradável. Podem ser sentidas
na pele, e a sensação é igualmente agradável. Talvez não seja desprovido
de importância o fato de que pelo menos três dos sentidos estão
envolvidos na percepção da chuva: a visão, a audição e o tato. Todos
esses sentidos percebem-na como multiplicidade. É fácil proteger-se
dela, que raramente faz-se realmente ameaçadora e, na maioria das
vezes, envolve o homem de uma maneira benfazejamente densa.
Sente-se o ruído das gotas como uniforme. O paralelismo dos riscos,
a semelhança do som, a mesma sensação de umidade que cada gota
provoca na pele — tudo isso contribui para acentuar-lhes a igualdade.
A chuva pode tornar-se mais violenta ou mais leve; sua densidade
varia. O número de suas gotas está sujeito a grandes oscilações. Não se
pode, em absoluto, contar com seu constante crescimento; sabe-se, ao
contrário, que tal crescimento tem um fim, e esse fim significa que as
gotas da chuva esvaem-se na terra sem deixar vestígios.
Embora tenha se transformado num símbolo da massa, a chuva
caracteriza não a fase do crescimento frenético e inequívoco que o fogo
representa. Ela nada tem da constância do mar, e somente às vezes
apresenta algo da inesgotabilidade deste último. A chuva é a massa no
momento de sua descarga, caracterizando também a sua desagregação.
As nuvens das quais ela se origina desfazem-se em chuva; as gotas caem
porque não mais conseguem permanecer juntas, e incerto é ainda se e
como elas voltarão a reencontrar-se no futuro.
continua página 126...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - A Chuva
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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