Elias Canetti
A MALTA
A Malta de Caça
Com todos os meios de que dispõe, a malta de caça move-se em
direção a um ser vivo que deseja abater para, então, incorporar. O
abater é, pois, sempre a sua meta mais próxima. O alcançar e o cercar são
seus meios mais importantes. Seu alvo é um único e grande animal, ou
um grande número de animais a fugir em massa diante de seus olhos.
A presa está sempre em movimento e é perseguida. Tudo depende da
rapidez do movimento da malta: ela deve correr mais que a caça, a m
de cansá-la. Em se tratando de animais, e em se conseguindo cercá-los,
a fuga em massa da presa converte-se em pânico: cada um dos animais
caçados procurará, então, safar-se por seus próprios meios do cerco de
seus inimigos.
A caçada estende-se por um espaço amplo e cambiante. No caso da
caça a um único animal, a malta seguirá existindo enquanto a caça for
capaz de defender a própria pele. A excitação aumenta durante a caçada,
exprimindo-se nos gritos que um caçador dirige a outro e que
intensificam a sede de sangue.
A concentração num único objeto — objeto este que está sempre em
movimento, que se perde de vista mas reaparece, que desaparece com
frequência e que se precisa novamente procurar, que jamais se vê livre
do propósito assassino de seu perseguidor e é mantido incessantemente
num estado de medo mortal —, tal concentração é a de todos juntos.
Cada um tem em vista o mesmo objeto e se move em sua direção. A
distância entre a malta e seu objeto, que diminui pouco a pouco, faz-se
menor para todos. A caçada possui um ritmo mortal e comum a todos.
Tal ritmo mantém-se pelo terreno cambiante, e faz-se mais violento
quanto mais próximo se chega do animal. Uma vez que se alcançou o
animal, chegada a hora de atingi-lo, todos têm oportunidade de matar,
e todos experimentam fazê-lo. Suas lanças ou flechas podem
concentrar-se numa única criatura. Elas constituem o prolongamento
dos olhares cobiçosos ao longo da caçada.
Todo estado dessa espécie tem seu m natural. Se clara e nítida é a
meta almejada, nítida e súbita é também a transformação da malta, uma
vez atingida aquela meta. O frenesi diminui no momento de abatê-la.
Postados ao redor da vítima tombada, todos se fazem subitamente
silentes. Os presentes formam o círculo de todos aqueles aos quais cabe
uma porção da presa. Qual lobos, eles poderiam fincar os dentes na
caça. Contudo, a incorporação a que as alcateias dão início com a
vítima ainda viva é adiada pelos homens para um momento posterior. A
partilha ocorre sem desavenças e segundo determinadas regras.
Pouco importa se o que se abateu é grande ou vário: se a caçada foi
empreendida por toda uma malta, a partilha da presa entre seus
membros é indispensável. O processo que então tem início é
exatamente o oposto daquele da formação da malta. Agora, cada um quer
a sua parte, e que ela seja a maior possível. Não possuísse a partilha
regras precisas; não houvesse algo como uma antiga lei a regulá-la, e
homens experientes a velar por seu cumprimento, ela haveria de
terminar em assassinato e morte. A lei da partilha é a mais antiga das leis.
Da partilha, há duas versões fundamentalmente diversas: segundo
uma, ela se restringe unicamente ao círculo de caçadores; segundo a
outra, acrescem a estes também as mulheres e aqueles homens que não
participaram da malta de caça. Originalmente, aquele que preside a
partilha, a quem cabe zelar para que sua execução se dê em ordem, não
extrai desse seu posto vantagem alguma. Pode mesmo ocorrer,
conforme é o caso nas caças de alguns esquimós a baleias, que, em nome
de sua honra, ele renuncie a tudo. O sentimento do caráter comunitário
da presa pode ir bem longe: entre os koriaks da Sibéria, o caçador ideal
convida a todos a servirem-se de sua presa, contentando-se com os
restos que lhe deixarem.
A lei da partilha é assaz complexa e variável. A porção de honra da
presa nem sempre cabe àquele que lhe desferiu o golpe mortal. O
direito a tal porção é, por vezes, daquele que viu primeiro a caça.
Contudo, mesmo quem, de longe, foi apenas testemunha da morte pode
ter direito a uma parte da presa. Nesse caso, os espectadores são
considerados cúmplices do ato e, sendo corresponsáveis por ele, gozam
também de seus frutos. Cito esse preceito extremo e não tão frequente
com o intuito de mostrar quão forte é o sentimento de unidade que
irradia da malta de caça. Qualquer que seja a regulamentação que reja a
partilha, avistar e matar a presa são os dois atos considerados decisivos.
continua página 146...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - A Malta: A Malta de Caça
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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