quinta-feira, 26 de junho de 2025

Massa e Poder - A Malta: A Malta e as Maltas

Elias Canetti

A MALTA

      A Malta e as Maltas

     Os cristais de massa e a própria massa, no sentido moderno da palavra, derivam ambos de uma unidade mais antiga, unidade esta na qual ainda coincidiam. Essa unidade mais antiga é a malta. Nas hordas de número reduzido, vagando em pequenos bandos de dez ou vinte homens, a malta é a forma que assume a excitação coletiva, visível em toda parte.
     Característico da malta é o fato de ela não poder crescer. No vazio que a circunda inexistem pessoas que possam juntar-se a ela. A malta consiste em um grupo de pessoas excitadas que nada mais deseja tão veementemente do que ser mais. O que quer que façam em conjunto — quer partam para a caça ou para a guerra —, melhor seria para elas que fossem em maior número. Para o grupo que é constituído de tão poucos membros, cada indivíduo que a ele se juntasse significaria um claro acréscimo, importante, imprescindível. A força que tal indivíduo traria consigo equivaleria a um décimo ou um vigésimo da força total. Todos atentariam cuidadosamente para o lugar que ele ocuparia. Tal indivíduo teria para a economia do grupo uma importância real que, hoje, pouquíssimos de nós podem ter.
     Na malta que, de tempos em tempos, se forma a partir do grupo e exprime com o máximo vigor seu sentimento de unidade não é possível ao indivíduo perder-se tão completamente quanto, nos dias de hoje, o homem moderno se perde numa massa qualquer. Ele estará continuamente à margem das cambiantes constelações da malta, de suas danças e suas expedições. Estará em seu interior e, em seguida, à sua margem; à margem e, logo depois, novamente em seu interior. Quando a malta forma um anel em torno do fogo, cada um de seus membros pode ter vizinhos à direita e à esquerda, mas não terá ninguém às suas costas; as costas apresentam-se expostas à vastidão. A densidade no interior da malta tem sempre algo de simulado: as pessoas comprimem-se, talvez, umas às outras e representam a multidão com movimentos rítmicos tradicionais. Contudo, elas não são muitas, mas poucas; compensam com a intensidade o que lhes falta em densidade real.
     Das quatro qualidades essenciais da massa, conforme as aprendemos, duas são fictícias na malta — isto é, são desejadas e representadas com a máxima ênfase; as duas outras, em compensação, encontram-se efetivamente presentes, e com tanto maior vigor. O crescimento e a densidade são representados; a igualdade e o direcionamento estão presentes. A primeira coisa que chama a atenção na malta é o caráter inequívoco de sua direção. Quanto à igualdade, porém, está se expressa no fato de estarem todos possuídos por uma única e mesma meta — a visão de um animal, por exemplo, que desejem abater.
     A malta é limitada em mais de um aspecto. Não se trata apenas do fato de ela ser integrada por relativamente poucos — dez, vinte pessoas, raras vezes um número maior, todas elas, porém, conhecendo-se muito bem umas às outras. Essas poucas pessoas sempre viveram juntas, encontram-se diariamente, aprenderam a avaliar com precisão uma à outra em muitas empreitadas conjuntas. Dificilmente pode a malta experimentar um crescimento inesperado; são muito poucos os homens que vivem sob tais condições, e eles se encontram espalhados. Como, porém, constitui-se apenas de conhecidos, a malta é superior à massa — esta, capaz de crescer infinitamente — em um ponto: mesmo quando dispersada por circunstâncias adversas, a malta sempre torna a reunir-se. Ela pode contar com a permanência; enquanto seus membros viverem, sua durabilidade estará garantida. A malta pode desenvolver certos ritos e cerimônias, aqueles que devem executá-los apresentar-se-ão. Pode-se confiar neles. Sabem qual o seu lugar e não se deixam atrair para outras partes. Tais tentações são insignificantes, tão insignificantes que não chega a formar-se o hábito de ceder a elas.
     Em sendo possível às maltas fazerem-se maiores, tal crescimento se dá quanticamente, e com a concordância de seus participantes. Uma malta que se tenha formado a partir de um segundo grupo pode deparar com a primeira e, caso não lutem entre si, é possível que ambas se juntem para empreitadas passageiras. Contudo, sempre há de conservar se a consciência própria de cada um desses quanta; talvez essa consciência desapareça momentaneamente no calor da ação conjunta, mas não por muito tempo. De todo modo, ela reaparecerá na distribuição das honrarias ou em outras cerimônias. Mais forte do que o sentimento daquilo que se é como indivíduo, quando não se está em ação em companhia da malta, é sempre o sentimento da própria malta. O sentimento quântico desta é decisivo para um determinado nível da convivência humana, e nada pode abalá-lo.
     Deliberadamente, contrapõe-se aqui uma nova unidade — a da malta — a tudo quanto se costuma designar por tribo, estirpe ou clã. Por mais importantes que sejam, esses conhecidos conceitos sociológicos têm todos algo de estático. A malta, pelo contrário, é uma unidade de ação que se manifesta de forma concreta. Dela há de partir todo aquele que deseja investigar as origens do comportamento das massas. A malta é a forma mais antiga e mais limitada que a massa assume entre os homens; ela já existia antes do aparecimento das massas humanas, no sentido moderno da palavra. E manifesta-se das mais diversas formas. É sempre claramente palpável. Sua atividade ao longo de milhares de décadas foi tão intensa que a malta deixou vestígios por toda parte, e mesmo em nossa época, tão inteiramente diversa, seguem vivendo ainda algumas formações que derivam diretamente dela.
     Desde sempre, a malta apresenta-se sob quatro diferentes formas ou funções. Estas têm todas algo de fluido, transformando-se com facilidade umas nas outras; importante é, porém, definir, antes de mais nada, em que elas diferem. A malta mais natural e genuína é aquela da qual a palavra deriva: a malta de caça. Esta se forma em qualquer parte onde se trate de enfrentar um animal perigoso ou forte, dificilmente capturável por um indivíduo sozinho; forma-se, ademais, onde quer que uma presa se apresente em massa, massa esta da qual se deseja perder o menos possível. O tamanho do animal abatido, seja ele uma baleia ou elefante, e ainda que tenha sido atingido por indivíduos isolados, resulta em que ele só possa ser capturado e partilhado por muitas pessoas agindo em conjunto. A malta de caça passa, assim, a um estado de partilha; por vezes, o que se tem é apenas este último estado, mas ambos — caça e partilha — encontram-se intimamente ligados e precisam ser investigados em conjunto. O objeto comum a ambos esses estados é a presa, e somente esta, seu comportamento, sua singularidade — quando viva e quando morta —, determina com precisão o comportamento da malta que se forma por sua causa.
     A segunda forma assumida pela malta, possuindo muito em comum com a de caça e a esta atrelada por muitos elementos, é a malta de guerra. Esta pressupõe a existência de uma segunda malta de homens contra a qual ela se volta e a qual percebe mesmo que, no momento, essa segunda malta nem sequer exista ainda. Em sua forma mais antiga, a malta de guerra persegue uma única vítima, da qual tem de vingar-se. Na certeza da vítima a ser morta, a malta de guerra aproxima-se bastante da de caça.
     A terceira forma da malta é a de lamentação. Esta forma-se quando um membro do grupo é arrebatado pela morte. O grupo, que é pequeno e sente cada perda como insubstituível, reúne-se então numa malta. É possível que, antes de perdê-lo por completo, o grupo almeje reter o moribundo, arrebatar de sua força vital tanto quanto possa ele próprio incorporar; quererá acalmar-lhe a alma, afim de que esta não se torne inimiga dos vivos. Seja como for, uma ação qualquer afigura-se-lhe necessária, e em parte alguma encontram-se homens dispostos a renunciar inteiramente a ela.
      Reúno sob uma quarta forma assumida pela malta uma multiplicidade de fenômenos os quais, a despeito de sua diversidade, possuem uma coisa em comum: o propósito da multiplicação. Maltas de multiplicação formam-se porque o próprio grupo, ou as criaturas a ele vinculadas — sejam elas animais ou plantas — devem fazer-se mais. Frequentemente, tais maltas manifestam-se sob a forma de danças às quais se atribui um certo significado mítico. Também estas são conhecidas onde quer que haja seres humanos vivendo juntos. O que nelas invariavelmente se expressa é que o grupo não está satisfeito com seu tamanho. Uma das características essenciais da massa moderna — o ímpeto de tornar-se maior — aparece, pois, desde cedo, em maltas que, em si, são absolutamente incapazes de crescer. Certos ritos e cerimônias têm por função forçar esse crescimento; seja qual for a nossa opinião acerca de sua eficácia, há que se considerar que, no curso do tempo, ritos e cerimônias assim efetivamente conduziram à formação de grandes massas.
     A investigação pormenorizada dessas quatro formas distintas assumidas pelas maltas leva a resultados surpreendentes. Elas tendem a transformar-se umas nas outras, e nada se revela mais rico em consequências do que a transformação de uma espécie de malta em outra. A instabilidade da massa — massa esta que é bem maior que a malta — verifica-se já nessas formações pequenas e aparentemente mais sólidas. Suas transformações frequentemente ensejam singulares fenômenos religiosos. Demonstrar-se-á aqui de que maneira as maltas de caça podem converter-se em maltas de lamentação, e como mitos e cultos específicos desenvolveram-se em torno desse fenômeno. Quando isso ocorre, os lamentadores não mais desejam assumir que foram caçadores, e a vítima que lamentam existe para expiar a culpa deles pela morte da caça.
     A escolha do termo malta para designar essa forma mais antiga e limitada da massa pretende lembrar que também ela deve seu surgimento entre os homens a um modelo animal: aos bandos de animais caçando em conjunto. Os lobos, que o homem conhecia bem e educou ao longo de milênios, transformando-os em cães, impressionaram-no desde cedo. Sua presença como animal mítico entre tantos povos; as diversas concepções do lobisomem; as histórias versando sobre homens que, disfarçados de lobos, assaltam e dilaceram outros homens; as lendas sobre a origem de crianças criadas por lobos — tudo isso, e muito mais, demonstra quão próximo o lobo estava do homem.
     A malta de caça — pela qual hoje se entende uma matilha de cães adestrados para a caça conjunta — é o resquício vivo daquela antiga união. Os homens aprenderam com os lobos. Seu ser lobo era, por assim dizer, exercitado em diversas danças. Naturalmente, outros animais deram também a sua contribuição para o desenvolvimento de habilidades semelhantes entre os povos caçadores. Emprego o termo malta com referência aos homens, em vez de relativamente aos animais, porque ele é o que melhor expressa o caráter conjunto do movimento rápido, bem como a meta concreta diante dos olhos — meta esta que é aí o que importa. A malta deseja uma presa: quer seu sangue e sua morte. Se deseja obtê-la, tem de persegui-la com rapidez e sem desviar se, com astúcia e perseverança. Estimula-se a si própria latindo em conjunto. Não se pode subestimar o significado desse ruído, no qual se juntam as vozes de cada um dos animais. Ele pode diminuir e, então, novamente aumentar, mas é imperturbável: contém em si o ataque. A presa, enfim alcançada e abatida, é devorada por todos. Verifica-se de um modo geral o “costume” de reservar algum pedaço da presa abatida para cada participante; rudimentos até mesmo de uma malta de partilha podem ser encontrados entre os animais. Utilizo o termo malta também para as três outras formas básicas mencionadas, embora dificilmente se possa falar aí em modelos animais. Não conheço palavra melhor para exprimir o caráter concreto, direcionado e intenso desses fenômenos.
     Também a sua história justifica o uso do termo nesse sentido. A palavra malta deriva do latim médio movita, que significa “movimento”. Meute, a palavra do francês antigo que daí se originou, possui um duplo sentido, podendo signi car tanto “revolta, sublevação” quanto “partida de caça”. O elemento humano apresenta-se aí ainda vigorosamente em primeiro plano. A palavra antiga designa com exatidão aquilo que se deseja compreender aqui por “malta”: é precisamente esse duplo sentido que nos interessa. O uso mais restrito do termo, no sentido de “matilha de cães de caça”, é muito posterior e, no alemão, conhecido somente a partir de meados do século XVIII, ao passo que palavras como amotinador e motim — derivadas da antiga palavra francesa — aparecem já por volta de 1500.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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