segunda-feira, 9 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Dança macabra (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 

Capítulo V

Dança macabra 
.
continuando...

     Joachim pouco tinha que opor a esse projeto. – É contrário ao regulamento da casa – disse. – Sob certo ponto de vista, você o infringiria. Mas, excepcionalmente, e como você insiste tanto, pode ser que o Behrens lhe dê a licença. Refira-se ao seu interesse pela medicina. 

– Sim, entre outras coisas vou me referir a isso também – respondeu Hans Castorp, e, realmente, os motivos de que nascera o seu desejo eram complexos. O protesto contra o egoísmo reinante era apenas um dentre eles. O que ainda contribuía para a sua decisão era, antes de tudo, a necessidade que experimentava o seu espírito de tomar a sério e de poder honrar o sofrimento e a morte; necessidade que ele esperava satisfazer e fortificar pelo contato com os enfermos graves e os agonizantes; tal contato compensaria os múltiplos insultos a que a dita necessidade se via exposta a cada passo, cada dia e cada momento, e que confirmavam, de um modo chocante, certas opiniões de Settembrini. Exemplos que corroborassem isso existiam em abundância. Se interrogássemos Hans Castorp, ele citaria, talvez, em primeiro lugar certos habitantes do Berghof que, segundo a sua própria confissão, absolutamente não estavam doentes e viviam ali por livre e espontânea vontade, sob o pretexto oficial de uma ligeira infecção, mas em realidade só para se divertir, e porque lhes comprazia o estilo de vida dos enfermos; um caso desses era a viúva Hessenfeld, já mencionada ocasionalmente, mulher muito viva cuja paixão era apostar. Apostava com os cavalheiros, apostava a respeito de qualquer assunto, apostava no tempo que haveria, nos pratos que seriam servidos, nos resultados dos futuros exames gerais e no número de meses que seriam impostos a determinada pessoa, em certos trenós, campeões de esqui ou de patinação, quando das competições desportivas, no desenvolvimento das intrigas amorosas que eram tecidas entre os pensionistas, enfim, em mil coisas na sua maioria insignificantes e indiferentes; apostava chocolate, champanha ou caviar, que então eram solenemente consumidos no restaurante, apostava dinheiro, entradas de cinema e beijos a dar ou a receber – numa palavra, com essa sua mania animava e enchia de vida a sala de refeições. Mas tal conduta afigurava-se pouco séria ao jovem Hans Castorp, e a sua simples existência parecia-lhe uma afronta à dignidade desse lugar de sofrimentos.  
     Pois, no íntimo, ele se empenhava lealmente em proteger essa dignidade e em mantê-la perante si próprio, por mais difícil que isso se lhe tornasse depois de quase meio ano de permanência entre os dali de cima. Os olhares que pouco a pouco conseguira lançar à vida, às atividades, aos hábitos e aos conceitos desse pessoal não eram apropriados para incrementar a sua boa vontade. Havia lá aqueles dois peralvilhos magros, de dezessete e dezoito anos, respectivamente, e cognominados de “Max e Moritz”; suas escapadas noturnas, com o fim de jogar pôquer ou de cair na bebedeira, davam abundante assunto às conversas do mundo feminino. Recentemente, isto é, oito dias depois do Ano-Novo – não nos esqueçamos de que, enquanto contamos a nossa história, o tempo progride sem descanso no seu curso silencioso –, difundiu-se, durante o almoço, a notícia de que o massagista encontrara, em plena manhã, os dois rapazes estendidos sobre as suas camas, ainda trajando os smokings amarrotados. Também Hans Castorp se riu disso; mas essa história, por mais que lhe envergonhasse os sentimentos elevados, não era nada em comparação com as aventuras do advogado Einhuf, de Jüterbog, um quarentão com cavanhaque e com mãos cobertas de pelos negros, que fazia algum tempo ocupava, à mesa de Settembrini, o antigo lugar do sueco restabelecido; não somente voltava ele noite após noite a casa em estado de completa embriaguez, mas alguns dias atrás nem sequer regressara, sendo encontrado no dia seguinte estatelado no jardim. Passava por um estroina perigoso, e a Srª. Stöhr era capaz de apontar com o dedo para a jovem noiva de um senhor na planície, que, a determinada hora, fora vista saindo do quarto de Einhuf, envolta unicamente num abrigo de peles, sob o qual, segundo o que se afirmava, havia apenas uma combinação. Era escandaloso, não só com respeito à moral em si, mas também escandaloso e ofensivo para Hans Castorp pessoalmente, em consideração aos seus esforços espirituais. Acrescia a isso que ele era incapaz de pensar na pessoa do advogado, sem incluir nos seus pensamentos também Fränzchen Oberdank, aquela mocinha de cabelos lisos, que havia poucas semanas chegara ali, apresentada pela mãe, uma digna matrona provinciana. Quando da sua chegada e após o primeiro exame, Fränzchen Oberdank fora considerada um caso leve. Mas, seja porque houvesse cometido alguma imprudência, seja porque se tratasse de um daqueles casos em que o ar era bom não para combater, senão para fomentar a doença, ou seja ainda porque a pequena se tivesse enredado em certas intrigas e desgostos que lhe tinham prejudicado a saúde – em todo caso sucedeu o seguinte quatro semanas depois do seu internamento: ao voltar de um segundo exame e ao entrar na sala de refeições, jogou a bolsinha ao ar e exclamou em voz muito alta: “Viva! Tenho de ficar aqui um ano inteiro!”, o que provocou uma gargalhada homérica em toda a sala. Quinze dias após, porém, circulou o rumor de que o advogado Einhuf se portara como um canalha para com Fränzchen Oberdank. Aliás, essa expressão é nossa, ou melhor: vai por conta de Hans Castorp, já que os portadores do boato não julgavam o assunto de natureza bastante inédita para justificar palavras tão violentas. Além disso, deram a entender, encolhendo os ombros, que para tais coisas era indispensável a presença de duas pessoas e que, sem dúvida, nada ocorrera sem o consentimento e o desejo de ambos os interessados. Pelo menos era essa a atitude e a opinião moral da Srª. Stöhr diante do caso em apreço.
     Carolina Stöhr era simplesmente horrorosa. Se havia algo capaz de perturbar Hans Castorp nos seus sinceros esforços espirituais era a existência e o comportamento dessa mulher. Suas gafes contínuas já teriam bastado. Dizia “agônia” em vez de “agonia”, “insolvente” em lugar de “insolente”, e produzia as mais espantosas tolices sobre os fenômenos astronômicos que originavam um eclipse solar. Afirmava que o excesso de neve era um verdadeiro “flagício”, e certo dia provocou a prolongada surpresa do Sr. Settembrini ao dizer que estava lendo um livro, tirado da biblioteca do estabelecimento, e que lhe interessaria: “Benedetto Cenelli, na tradução de Schiller” [1]. Ela usava de preferência lugares-comuns que atacavam os nervos do jovem Hans Castorp, devido à sua insipidez e à vulgaridade inerente a locuções em moda, como, por exemplo, “É de tirar o chapéu” ou “É um colosso”. E como o adjetivo “formidável”, que o linguajar da moda durante muito tempo usara em lugar de “esplêndido” ou “perfeito”, se mostrasse totalmente gasto, debilitado, prostituído e, por isso, antiquado, adotou ela o último grito, que era a palavra “fenomenal”, achando desde então, seriamente ou por brincadeira, tudo fenomenal, a pista de trenós tanto como a sobremesa vienense e a temperatura do seu próprio corpo – o que igualmente causava uma impressão asquerosa. Acrescia a isso a sua desmedida mania de mexericar. Que ela contasse que a Srª. Salomon usava hoje a sua mais preciosa calcinha de rendas, visto ter hora marcada para um exame e ostentar nessas horas a sua roupa-branca mais fina diante dos médicos, seria ainda admissível; o próprio Hans Castorp já tivera a impressão de que o ato do exame médico, independente do seu resultado, causava prazer às senhoras, que para essa ocasião se enfeitavam com uma garridice toda especial. Mas, que se deveria pensar quando a Srª. Stöhr assegurava que a Srª. Redisch, de Posen, suspeita de sofrer de tuberculose da medula espinhal, era obrigada a marchar uma vez por semana, completamente nua diante do Dr. Behrens? A inverossimilhança dessa afirmação quase igualava o seu caráter escabroso, mas a Srª. Stöhr defendia-a com a maior obstinação e jurava dizer a verdade, apesar de ser difícil compreender por que a coitada despendia tanto zelo, ênfase e insistência em tais assuntos, uma vez que suas próprias preocupações já lhe davam bastante que fazer. De vez em quando acossavam-na acessos de um desassossego covarde e lamuriento, motivado aparentemente por um aumento da sua “lassidão” ou pela ascensão da sua curva. Chegava ela então à mesa soluçando, as faces ásperas e vermelhas inundadas de lágrimas; abafando o choro com o lenço, contava que o Behrens tencionava metê-la na cama; mas ela queria saber o que o médico dissera às suas costas, queria saber o que tinha, o que seria dela, queria arrostar a verdade. Com grande espanto notou certo dia que os pés da sua cama achavam-se dirigidos para o portão de entrada, e quase que desfaleceu ao fazer essa descoberta. Sua raiva e seu horror não foram compreendidos imediatamente; sobretudo Hans Castorp custou a encontrar uma explicação plausível. E daí? Como era isso? Por que não devia a cama estar colocada dessa maneira? – Mas, por amor de Deus, o senhor não compreende? “Com os pés para a frente!...” – Fez um estardalhaço medonho, e foi necessário mudar a posição da cama, se bem que, depois, a luz lhe desse em pleno rosto e lhe prejudicasse o sono.
     Tudo isso não era sério e ajudava muito pouco as aspirações espirituais de Hans Castorp. Um incidente pavoroso, que naquela época ocorreu durante uma das refeições, causou ao jovem uma impressão particularmente profunda. Um pensionista recém-chegado, o Professor Popov, homem macilento e taciturno, que tinha o seu lugar à mesa dos “russos distintos”, em companhia da sua noiva igualmente magra e silenciosa, foi tomado, no meio do almoço, por um violento ataque de epilepsia; lançando aquele grito cujo caráter demoníaco e inumano tem sido descrito frequentemente, caiu ao chão e revirou-se ao lado da cadeira, nas mais horripilantes contorções, agitando os braços e as pernas. Acrescia a isso uma circunstância agravante: acabavam de servir um prato de peixe, de maneira que era de recear que Popov, no seu enlevo convulsivo, cravasse alguma espinha na garganta. O tumulto foi indescritível. As mulheres – em primeiro lugar a Srª. Stöhr, sem que, no entanto, lhe ficassem atrás as senhoras Salomon, Redisch, Hessenfeld, Magnus, Iltis, Levi, etc. – tiveram os mais variados chiliques, a ponto de algumas se igualarem ao Sr. Popov. Seus gritos eram estridentes. Não se via mais que olhos histericamente cerrados, bocas abertas e corpos retorcidos. Uma única senhora preferiu desmaiar em silêncio. Houve crises de sufocação, já que todos haviam sido surpreendidos pelo tremendo incidente no ato de mastigar e de engolir. Parte dos pensionistas desapareceu por tudo que era porta, também pelas do avarandado, não obstante o frio e a umidade que reinavam fora. Mas essa ocorrência tinha, além do seu caráter horrendo, ainda um cunho especial e chocante, em virtude de uma associação de ideias que se impunha e a relacionava com a última conferência do Dr. Krokowski. É que o analista, no decorrer das suas explanações acerca do amor como fator patogênico, tratara justamente na segunda-feira passada da epilepsia; esse mal que a humanidade, em tempos pré analíticos, considerara alternadamente uma prova sagrada, até mesmo profética, e uma possessão do Demônio – o Dr. Krokowski qualificara-o, em termos ora poéticos, ora inexoravelmente científicos, de equivalente do amor e de orgasmo do cérebro; numa palavra, interpretara-o de tal forma que, aos seus ouvintes, o comportamento do Professor Popov, espécie de ilustração da conferência, afigurava-se como uma revelação descomedida ou um escândalo misterioso. Assim se exprimiu um certo pudor na fuga das senhoras. O próprio Dr. Behrens assistiu a essa refeição, e foi ele, com o auxílio da Mylendonk e de alguns companheiros de mesa jovens e robustos, quem retirou da sala o extático, azul, espumejante, rígido e desfigurado, e o transportou ao vestíbulo, onde Popov permaneceu ainda muito tempo sem sentidos, enquanto os médicos, a Superiora e outros membros do pessoal da casa se ocupavam com ele, antes de o levar numa padiola. Pouco depois, porém, viu-se de novo o Professor Popov, com a noiva, à mesa dos “russos distintos”, terminando, silenciosos e satisfeitos, o almoço, como se nada tivesse acontecido.
     Hans Castorp presenciara o incidente com os sinais exteriores de um respeitoso espanto, se bem que, no fundo, também isso não lhe parecesse muito sério, Deus o perdoe! Verdade é que Popov poderia ter se engasgado, por estar com a boca cheia de peixe; mas, em realidade, não se engasgara; apesar da fúria e do paroxismo inconsciente, ainda tivera um pouco de cuidado e fazendo como se jamais se tivesse comportado qual um louco ou um ébrio raivoso. Talvez nem sequer se lembrasse do ocorrido. Essa figura tampouco era de molde a fortalecer o respeito que Hans Castorp sentia diante do sofrimento; também ela aumentava, à sua maneira, o número das impressões de licenciosidade frívola, às quais o jovem, malgrado seu, se via exposto ali em cima, e que desejava enfrentar por meio de uma ocupação com os doentes graves e moribundos, ainda que isso fosse contrário ao uso estabelecido.
     No andar dos primos, não longe dos seus quartos, achava-se acamada uma mocinha muito nova ainda, de nome Leila Gerngross, a qual, segundo as informações da Irmã Berta, estava a ponto de morrer. No espaço de dez dias tivera quatro hemoptises violentíssimas, e seus pais acabavam de chegar, a fim de levá-la para casa, enquanto viva, se fosse possível. Tornara-se manifesto, porém, que isso era impraticável. O conselheiro declarara que a pobre da pequena Gerngross não poderia ser transportada. Tinha ela dezesseis ou dezessete anos. Hans Castorp achou que esta era a oportunidade desejada para realizar o seu projeto do vaso de flores e dos votos de restabelecimento. Na verdade, Leila não estava fazendo anos, o que, segundo as previsões humanas, nunca mais ocorreria, já que a data do seu aniversário, como Hans Castorp descobrira, só chegaria na primavera. Mas – opinou ele – isso não devia constituir nenhum obstáculo à tal homenagem caridosa. Num dos seus passeios do meio-dia pela zona da estância balneária, entrou junto com o primo na loja de um florista, respirando com o peito emocionado a atmosfera carregada de perfumes e de um cheiro de terra úmida. Comprou um lindo pé de hortênsias, que enviou ao quarto da jovem moribunda, anonimamente, com um cartão, no qual se lia apenas: “Da parte de dois companheiros, com os melhores votos para o seu pronto restabelecimento”. Sentiu-se alegre ao dar a respectiva ordem, agradavelmente entontecido pelo aroma das plantas e o tépido ar da loja, que, depois do frio exterior, lhe fazia lacrimejar os olhos; seu coração palpitava, e enchia-o uma sensação de aventura, de audácia e do caráter oportuno dessa empresa insignificante, à qual atribuía, em segredo, uma envergadura simbólica.
     Leila Gerngross não tinha enfermeira particular; achava-se confiada aos cuidados imediatos da Srta. von Mylendonk e dos médicos. No entanto, a Irmã Berta entrava a toda hora no seu quarto, e foi ela quem informou os jovens quanto ao efeito que produzira a atenção deles. A pequena, naquele mundo estreito em que a confinava o seu estado desesperador, sentira um prazer louco ante a saudação procedente de mãos desconhecidas. A planta achava-se ao lado da cama; a mocinha acariciava-a com os olhos e as mãos, fazia questão que a regassem, e mesmo durante os piores acessos de tosse que a sacudiam ainda mantinha cravados nela os olhos torturados. Também os pais, o major aposentado, Sr. Gerngross, e sua esposa, estavam comovidos e simpaticamente impressionados, e como não conhecessem os habitantes da casa e não soubessem adivinhar o nome dos ofertantes, a Srta. Schildknecht não pudera deixar – como ela própria confessou – de correr o véu do anonimato e de designar os primos como os autores do mimo. Transmitiu-lhes o convite dos três Gerngross, para que fossem apresentar-se e receber a expressão da sua gratidão. Aconteceu pois que, dois dias após, conduzidos pela enfermeira, pisassem sobre a ponta dos pés na câmara de martírio de Leila.
     A agonizante era uma criatura sumamente graciosa, lourinha, com uns olhos cor de miosótis; apesar das terríveis perdas de sangue e de uma respiração realizada apenas com um resto insuficiente de tecido pulmonar aproveitável, oferecia um aspecto sem dúvida frágil, mas, no fundo, nada lastimoso. Agradeceu e iniciou a conversa numa voz agradável, embora apagada. Um brilho rosado surgiu-lhe nas faces e nelas permaneceu. Hans Castorp, após ter explicado os motivos da sua ação aos pais e à enferma e quase se ter desculpado por ela, falou numa voz abafada e comovida, cheio de carinhosa deferência. Faltou pouco – e em todo caso existiu o impulso íntimo nesse sentido – para que ajoelhasse ao pé da cama. Durante muito tempo conservou a mão de Leila entre as suas, posto que essa mãozinha quente não estivesse apenas úmida, mas até alagada de suor, pois a menina transpirava abundantemente; suava com tamanha intensidade que sua carne deveria ter-se encolhido e estiolado há muito tempo, não fosse para compensar a transudação, o consumo ávido de limonada, que se achava numa garrafa sobre o criado-mudo. Os pais, aflitos como estavam, mantinham a conversa, em conformidade com o bom-tom, por meio de perguntas a respeito do estado de saúde dos primos e de outros recursos convencionais. O major era um homem espadaúdo, de testa baixa e bigode eriçado, um gigante, cuja inocência orgânica quanto à disposição mórbida e ao físico débil da filha era manifesta. Parecia óbvia a responsabilidade da mulher, uma baixinha de tipo decididamente tísico, cuja consciência se mostrava deveras pesada em virtude da herança que legara à filha. Quando Leila, ao cabo de dez minutos, deu sinais de fadiga – o rosado das faces intensificou-se, enquanto os olhos de miosótis brilharam de forma inquietante – e os primos, advertidos pelos olhares da Irmã Alfreda, despediram-se, a Srª. Gerngross acompanhou-os até fora do quarto, entregando-se a acusações a si própria, que emocionaram singularmente Hans Castorp. Ela, só ela, podia ter a culpa – afirmou a mulher totalmente compungida –, era exclusivamente por sua causa que a pobre menina tinha “aquilo”; o marido nada tinha que ver com a coisa, era absolutamente inocente. Mas também ela – assim assegurou – não sofrera do mal, senão de forma passageira, leve e superficial, quando mocinha. Depois se curara por completo, como lhe haviam garantido, quando quisera casar-se. Gostava tanto da vida e do casamento, que assim conseguira a cura; ao entrar no matrimônio já estava completamente sadia e restabelecida, e seu querido esposo, forte como um carvalho, nunca pensara em tais histórias. No entanto, por mais puro e vigoroso que fosse o marido, sua influência não pudera impedir a desgraça. Pois na filha, reaparecera o horror, o mal enterrado e esquecido, e a menina não fora capaz de vencê-lo, sucumbiria a ele, ao passo que ela própria, a mãe, triunfara e chegara a uma idade menos exposta. A coitadinha, a querida garota, ia morrer; os médicos já não davam nenhuma esperança, e somente a mãe tinha culpa disso, devido aos seus antecedentes.
     Os jovens empenharam-se em consolá-la, sugerindo a possibilidade de um desfecho feliz. Mas a mulher do major limitou-se a soluçar. Mais uma vez lhes agradeceu tudo quanto haviam feito pela filha, a hortênsia e a visita com a qual acabavam de distrair a menina e de lhe proporcionar um pouquinho de felicidade. A pobrezinha achava-se deitada ali, no seu tormento e na sua solidão, enquanto outras mocinhas gozavam a vida e dançavam com rapazes bonitos, desejo que a enfermidade absolutamente não aniquilava. Os primos haviam-lhe transmitido alguns raios de sol, talvez os últimos, infelizmente. O pé de hortênsia era como um triunfo num baile, e a conversa com os dois cavalheiros de boa aparência representara para a garota a mesma coisa que um interessante e rápido flerte, como ela – a mãe Gerngross – notara muito bem.
     Essas palavras causaram a Hans Castorp impressão desagradável, sobretudo porque a mulher do major pronunciara a palavra “flerte”, não corretamente, à maneira inglesa, senão à alemã, com um nítido “i”, o que o irritou violentamente. Além disso não era ele um cavalheiro de boa aparência, mas visitara a pequena Leila em sinal de protesto contra o egoísmo reinante e num intuito entre médico e sacerdotal. Numa palavra, sentiu-se um tanto decepcionado pelo modo como terminara a empresa, pelo menos no que dizia respeito à opinião da mãe. De resto, porém, a realização do projeto deixou-o animado e satisfeito. Duas sensações, principalmente – o cheiro de terra na loja do florista e a umidade da mãozinha de Leila – haviam remanescido na sua alma e no seu espírito. E como dera o primeiro passo, combinou ainda no mesmo dia com a Irmã Berta uma visita ao paciente dela, Fritz Rotbein, que aborrecia terrivelmente, não só a enfermeira, mas também a si próprio, conquanto, segundo todos os indícios, não lhe restasse mais do que pouco tempo de vida.
     De nada adiantou a resistência do bom Joachim; não lhe foi possível esquivar-se. A atividade caritativa e o espírito empreendedor de Hans Castorp foram mais fortes do que a repugnância do primo, cuja manifestação se limitou ao silêncio e aos olhos baixos, uma vez que não poderia justificá-la sem faltar aos sentimentos cristãos. Hans Castorp percebeu isso nitidamente e tirou partido desse fato. Compreendia também com a mais absoluta clareza o sentido militar daquela falta de entusiasmo. Ora, ele próprio sentia-se animado e feliz devido a essas iniciativas, que lhe pareciam proveitosas. Nesse caso era preciso não se importar com a silenciosa resistência de Joachim. Deliberaram juntos sobre se era conveniente mandar ou levar flores também ao jovem Fritz Rotbein, se bem que se tratasse de um moribundo de sexo masculino. Hans Castorp insistia em fazê-lo; na sua opinião, as flores eram indispensáveis; o precedente do pé de hortênsia, de cor violeta e de formas bonitas, agradara-lhe sobremaneira. Assim, decidiu que o sexo de Rotbein era compensado por seu estado desesperador, e que não era preciso que o moço fizesse anos para receber flores, visto os agonizantes terem o direito irrestrito e permanente de ser tratados como aniversariantes. Assim disposto, foi mais uma vez, em companhia do primo, aspirar a atmosfera terrosa e tépida da loja de flores. Entraram, então, no quarto do Sr. Rotbein, com um ramalhete oloroso e recém-molhado de rosas, cravos e goivos, introduzidos por Alfreda Schildknecht, que anunciara a chegada dos jovens.
     O moço gravemente enfermo, de apenas vinte anos, mas já um pouco calvo e grisalho, com uma tez de cera e o rosto emaciadado, tinha grandes mãos, grande nariz e grandes orelhas. Quase chorou de tão grato pelo consolo e pela distração. Com efeito, tinha os olhos úmidos de fraqueza quando cumprimentou os dois primos e recebeu o ramo de flores. A seguir, porém, passou a falar, sem transição, embora num quase cochicho, sobre o comércio de flores na Europa e o seu crescente desenvolvimento, sobre a enorme exportação dos horticultores de Nice e de Cannes, sobre os vagões carregados e as remessas postais que saíam diariamente daqueles lugares em todas as direções; discorreu acerca dos mercados atacadistas de Paris e de Berlim, e do abastecimento da Rússia. Bem, ele era comerciante, e seus interesses continuariam orientados nesse sentido, enquanto houvesse vida nele. Seu pai, fabricante de bonecos em Coburgo, enviara o à Inglaterra para educar-se – contou murmurando – e fora ali que adoecera. Mas haviam diagnosticado a sua moléstia febril como sendo de caráter tifoide e, tratando-a como tal, tinham no submetido a um regime de sopas aguadas que o debilitara sobremaneira. Ali em cima lhe fora permitido comer, e ele o fizera; sentado na cama, esforçara-se por alimentar-se, com o suor no seu rosto. Entretanto, já era tarde. O mal, desgraçadamente, já lhe atacara os intestinos. Era inútil que lhe enviassem de casa línguas e enguias defumadas, visto ele não suportar mais nada. Agora, seu pai partira de Coburgo, chamado por um telegrama de Behrens. Ia-se fazer uma intervenção decisiva, a ressecção de costelas. Queriam tentá-la em todo caso, se bem que as probabilidades de êxito fossem mínimas. Rotbein cochichou a respeito de tudo isso com a maior objetividade, considerando também o problema da operação exclusivamente sob o ângulo comercial; enquanto vivesse, encararia qualquer assunto sob esse ponto de vista. O preço da intervenção – murmurou –, inclusive a anestesia raquidiana, elevava-se a mil francos, pois tencionavam tirar quase todo o tórax, entre seis e oito costelas, e tratava-se de saber se o capital assim empatado daria algum lucro. O Behrens animava-o, mas tinha interesse evidente em fazer a intervenção, ao passo que o do paciente parecia duvidoso. Ninguém podia dizer-lhe se não era preferível morrer tranquilamente, na posse de todas as suas costelas.

continua pág 198...
___________________

Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Dança macabra (b)
___________________

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
____________

[1] Referência a Vita, memórias do escultor Benvenuto Cellini, traduzidas por Goethe. (N. do E.)

Nenhum comentário:

Postar um comentário