segunda-feira, 16 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Era um tipo de raciocínio)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Era um tipo de raciocínio de que o Sr. de Norpois, formado na mesma escola que o príncipe, seria capaz. Pode-se troçar da pedantesca simplicidade com que os diplomatas do tipo de Norpois se extasiam diante de uma palavra oficial mais ou menos insignificante. Mas a sua infantilidade tem uma contrapartida: os diplomatas sabem que, na balança que assegura esse equilíbrio, europeu ou outro, que se denomina paz, os bons sentimentos, os bons discursos e as súplicas pesam muito pouco; e que o peso pesado, o verdadeiro, o determinante, consiste em outra coisa, na possibilidade que o adversário tem, se é bastante forte, ou não tem, de contentar um desejo por meio de troca. Essa ordem de verdades, que uma pessoa inteiramente desinteressada, como a minha avó, por exemplo, não teria compreendido, o Sr. de Norpois e o príncipe von*** se tinham muitas vezes visto às voltas com ela. Encarregado dos negócios em países com os quais muitas vezes tínhamos estado a dois passos da guerra, o Sr. de Norpois, ansioso com o aspecto que iam tomando os acontecimentos, sabia muito bem que não era por meio da palavra "Paz", ou da palavra "Guerra" que elas lhe seriam notificadas, mas por uma outra, aparentemente banal, terrível ou abençoada, que o diplomata, com a ajuda de sua cifra, saberia ler de imediato, e à qual, para resguardar a dignidade da França, responderia com outra palavra, igualmente banal, mas por baixo da qual o ministro da nação inimiga veria logo: Guerra. E até mesmo, segundo um costume antigo, análogo ao que dava ao primeiro encontro de dois seres prometidos um ao outro a forma de uma entrevista fortuita num espetáculo do Teatro do Ginásio, o diálogo em que o destino ditaria a palavra "Guerra" ou a palavra "Paz" em geral não ocorria no gabinete do ministro, mas no banco de um "Kurgarten", onde o ministro e o Sr. Norpois iam ambos beber copinhos de uma água curativa nas fontes termais. Por uma espécie de tácita convenção, eles se encontravam à hora regulamentar, primeiramente dando juntos alguns passos de um passeio que, sob sua aparência benigna, os dois interlocutores sabiam que era tão trágico quanto uma ordem de mobilização. Ora, em um negócio privado como aquela candidatura ao Instituto, o príncipe utilizara-se do mesmo sistema de induções que havia posto em prática na carreira, e do mesmo método de leitura através dos símbolos superpostos. 
     Decerto não se pode pretender que minha avó e seus raros semelhantes fossem os únicos a ignorar esse gênero de cálculo. Em parte, a média da humanidade, exercendo profissões traçadas com antecedência, fica, devido à sua falta de intuição, no mesmo nível de ignorância de minha avó, que o devia ao seu grande desinteresse. Muitas vezes é preciso descer até os seres sustentados, homens ou mulheres, para ter de procurar o móvel da ação ou palavras aparentemente as mais inocentes, no interesse e na necessidade de viver. Qual o homem que não sabe que, quando vai pagar a uma mulher e esta lhe diz: "Não falemos de dinheiro", esta frase deve ser interpretada, como se diz em música, como "um compasso de silêncio", e que, se mais tarde ela lhe declara: "Fizeste-me sofrer muito, muitas vezes me ocultaste a verdade, não aguento mais", ele deve entender: 

"Um outro protetor mais me oferece"? E mesmo isso não passa da linguagem de uma cocote bem próxima das mulheres da sociedade. Os apaches fornecem exemplos mais impressionantes. Mas o Sr. de Norpois e o príncipe alemão, se os apaches lhes eram desconhecidos, tinham se acostumado a viver no mesmo plano das nações, as quais também são, apesar de sua grandeza, criaturas de astúcia e egoísmo, que só se domam pela força, pela consideração do seu interesse, que pode levá-las ao assassínio, um assassínio também muita vez simbólico, já que a simples hesitação em combater ou a recusa em combater podem significar para uma nação: "perecer". Mas, como tudo isso não está escrito nos diversos Livros Amarelos e outros, o povo é de índole pacifista; se é guerreiro, o é instintivamente, por ódio, por rancor, e não pelos motivos que moveram os estadistas prevenidos pelos Norpois.

     No inverno seguinte, o príncipe esteve seriamente enfermo; curou-se, mas seu coração ficou irremediavelmente afetado.

"Diabo!", pensou, "não há tempo a perder no caso do Instituto; pois, se demoro muito, arrisco-me a morrer antes de ser nomeado. Seria verdadeiramente desagradável."

     Escreveu um ensaio sobre a política dos últimos vinte anos para a Revue des Deux Mondes e, em muitos pontos, referiu-se ao Sr. de Norpois nos termos mais elogiosos. Este foi visitá-lo para agradecer, acrescentando que não sabia como expressar a sua gratidão. O príncipe disse para si mesmo, como alguém que acaba de experimentar outra chave para a fechadura: "Ainda não é esta", e, sentindo-se um tanto sufocado ao levar o Sr. de Norpois até a porta, pensou: "Com os diabos! Esses sujeitos vão me deixar arrebentar antes de me aceitarem. Apressemo-nos."
     Na mesma noite, encontrou-se com o Sr. de Norpois na ópera:

- Meu caro embaixador - disse-lhe -, o senhor me dizia esta manhã que não sabia como me provar o seu reconhecimento; é muito exagero de sua parte, pois não me deve coisa alguma, mas vou ter a indelicadeza de tomá-lo ao pé da letra.

     O Sr. de Norpois não estimava menos o tato do príncipe do que o príncipe o seu. Compreendeu logo que não era um pedido que lhe ia fazer o príncipe de Faffenheim, e sim um oferecimento, e, com uma sorridente afabilidade, achou-se no dever de escutá-lo. 

- Bom, vai me achar muito indiscreto. Existem duas pessoas às quais sou muito ligado, e de forma completamente diversa, como vai compreender, e que se fixaram há pouco em Paris, onde contam viver de agora em diante: minha mulher e a grã-duquesa Jean. Elas darão alguns jantares, principalmente em honra ao rei e à rainha da Inglaterra, e o seu sonho seria de poder oferecer aos convivas uma pessoa a quem, sem a conhecer, ambas tributam grande admiração. Confesso que não sabia como fazer para lhes contentar o desejo, quando soube há pouco, pelo maior dos acasos, que o senhor conhecia essa pessoa; sei que vive muito retirada, só deseja ver pouca gente, happy few; mas, se o senhor me der o seu apoio, com a benevolência que me tem testemunhado, estou certo de que ela permitiria que o senhor me apresentasse em sua casa e que eu lhe transmitisse o desejo da grã-duquesa e da princesa. Talvez até consentisse em vir jantar com a rainha da Inglaterra e, quem sabe, se não a aborrecermos demais, passar conosco o feriado da Páscoa em Beaulieu, na casa da grã-duquesa Jean. Esta pessoa se chama a marquesa de Villeparisis. Confesso que a esperança de me tornar um dos convivas habituais de semelhante círculo de espírito me consolaria, me faria encarar sem tédio a renúncia a me candidatar ao Instituto. Em sua casa, também se cuida de coisas da inteligência e de finas conversas.

     Com uma sensação inexprimível de prazer, o príncipe sentiu que a fechadura não resistia e que, por fim, aquela chave entrava. 

- Uma tal opção é bem inútil, meu caro príncipe - respondeu o Sr. de Norpois -; nada se harmoniza melhor com o Instituto que o salão do qual o senhor está falando e que é um autêntico viveiro de acadêmicos. Transmitirei o seu pedido à senhora marquesa de Villeparisis: ela certamente ficará lisonjeada. Quanto a ir jantar em sua casa, ela sai muito pouco, e isso talvez seja mais difícil. Mas eu o apresentarei, e o senhor mesmo poderá defender a sua causa. Principalmente, não é necessário renunciar à Academia; almoço precisamente, de amanhã a quinze dias, na casa de Leroy Beaulieu, para logo depois ir em sua companhia a uma sessão importante. Sem ele, ninguém pode ser eleito; eu já lhe havia falado no seu nome, que ele naturalmente conhece às maravilhas. Fez-me algumas objeções. Mas acontece que ele precisa do apoio do meu grupo para a próxima eleição, e tenho a intenção de voltar à carga; dir-lhe-ei muito francamente os laços bastante cordiais que nos unem, não lhe esconderei que, se o senhor se candidatar, pediria a todos os meus amigos que votassem no senhor (o príncipe soltou um profundo suspiro de alívio), e ele sabe que tenho amigos. Acho que, se conseguisse me certificar do seu concurso, suas chances seriam bem fortes. Vá, portanto, nesse dia, às seis da tarde, à casa da Sra. de Villeparisis; eu o introduzirei e poderei lhe dar conta da minha entrevista da manhã.  

     Assim é que o príncipe de Faffenheim fora induzido a visitar a Sra. de Villeparisis. Minha profunda desilusão se deu quando ele falou. Eu não imaginara que, se uma época tem traços característicos e gerais mais fortes que uma nacionalidade, de modo que, num dicionário ilustrado, onde se dá até o retrato legítimo de Minerva, Leibnitz, com sua peruca e seu mantéu, difere pouco de Marivaux ou de Samuel Bernard, uma nacionalidade tem traços particulares mais fortes que uma casta. Ora, tais traços se traduziram diante de mim, não por um discurso em que julgasse de antemão ouvir o roçagar dos elfos e a dança dos Kobolds, mas por uma transposição que não menos legitimava essa origem poética: o fato de que, inclinando-se pequeno, vermelho e barrigudo, diante da Sra. de Villeparisis, o governador do Reno lhe disse:

- Pom tia, zenhorra marrquesa - com o mesmo sotaque de um porteiro alsaciano. 
- Não quer que lhe alcance uma taça de chá ou um pedaço de torta recheada? Está muito boa - disse-me a Sra. de Guermantes, desejosa de se mostrar o mais gentil possível. 
- Faço as honras desta casa como se fosse a minha - acrescentou num tom irônico, que dava à sua voz algo um tanto gutural, como se ela estivesse abafando um riso rouco. 
- O senhor - disse a Sra. de Villeparisis ao Sr. de Norpois - vai lembrar que daqui a pouco tem algo a dizer ao príncipe a respeito da Academia? - 

     A Sra. de Guermantes baixou os olhos, e deu uma virada no pulso para ver as horas. 

- Oh, meu Deus; é tempo de me despedir da minha tia, devo ainda passar na casa da Sra. de Saint-Ferréol, e vou cear na casa da Sra. Leroi. 

     E levantou-se sem se despedir de mim. Acabava de ver a Sra. Swann, que pareceu bem constrangida ao dar comigo. Sem dúvida, lembrava-se de me ter dito, antes que a qualquer outra pessoa, estar convencida da inocência de Dreyfus. 

- Não quero que minha mãe me apresente à Sra. Swann - disse-me Saint-Loup. - É uma antiga prostituta. Seu marido é judeu, e ela nos prega o nacionalismo. Ora, aí está o meu tio Palamede.

     A presença da Sra. Swann tinha para mim um interesse especial, por causa de um fato ocorrido alguns dias antes e que é preciso relatar, devido às conseqüências que teria mais tarde, e que seguiremos em detalhe no momento oportuno. Assim, alguns dias antes desta visita, recebi uma que de modo algum esperava: a de Charles Morei, o filho, desconhecido de mim, do antigo criado de quarto do meu tio-avô. Esse tio-avô (em cuja casa eu vira a dama cor-de-rosa) tinha morrido no ano anterior. Seu criado de quarto manifestara diversas vezes a intenção de vir visitar me; eu ignorava o motivo de sua visita, mas tê-lo-ia recebido de boa vontade, pois sabia por Françoise que ele conservara um verdadeiro culto à memória de meu tio e em todas as oportunidades fazia a sua romaria ao cemitério. Obrigado, no entanto, a ir tratar-se em sua terra, e contando ficar muito tempo lá, enviou-me o filho. Fiquei surpreso ao ver entrar um belo moço de dezoito anos, vestido antes com luxo do que bom gosto, mas que, entretanto, parecia tudo, menos um lacaio. Aliás, fez questão, desde o começo, de cortar os laços com a domesticidade de onde saía, informando-me, com um sorriso satisfeito, que obtivera o primeiro prêmio do Conservatório. O objetivo de sua visita era este: dentre as lembranças recebidas de meu tio Adolphe, seu pai separara algumas que julgara inconveniente enviar a meus pais, mas que, segundo pensava, eram de natureza a interessar um rapaz da minha idade. Eram fotografias de atrizes célebres, de grandes cocotes que meu tio conhecera, as últimas imagens daquela vida de velho boêmio que ele separava, por um compartimento estanque, de sua vida de família. Enquanto o jovem Morei as mostrava, dei-me conta de que ele procurava me falar como a um igual. Sentia, em dizer "você" e usar o menos possível "senhor", o prazer de alguém cujo pai nunca havia empregado, ao dirigir-se a meus pais, senão a "terceira pessoa". Quase todas as fotos traziam uma dedicatória do tipo: "Ao meu. melhor amigo." Uma atriz mais ingrata e mais prudente escrevera: "Ao melhor dos amigos", o que lhe permitia, conforme me asseguraram, dizer que meu tio não era de modo algum o seu melhor amigo, mas o amigo que lhe prestara o maior número de pequenos serviços, o amigo de que ela se servia, um homem excelente, quase um velho animal. Por mais que o jovem Morei procurasse fugir às suas origens, sentia-se que a sombra de meu tio Adolphe, venerável e desmedida aos olhos do velho lacaio, não cessara de flutuar, quase sagrada, sobre a infância e a juventude do filho. Enquanto eu olhava as fotografias, Charles Morei examinava o meu quarto. E, como eu procurasse um lugar para guardá-las: 

- Mas como é que - disse ele (num tom em que a censura não tinha necessidade de se expressar, de tanto que se continha nas próprias palavras) não vejo uma só fotografia do seu tio neste quarto?

     Senti a vermelhidão me subir ao rosto, e balbuciei: 

- Acho que não tenho. 
- Mas como, você não tem uma só fotografia de seu tio Adolphe, de quem gostava tanto? Vou lhe mandar uma, que pegarei dentre as muitas que meu pai possui, e espero que a colocará no lugar de honra, sobre esta cômoda que lhe proveio justamente de seu tio. -

     É verdade que, como eu não tinha sequer uma fotografia de meu pai ou de minha mãe no quarto, não havia nada de chocante que ali não existisse uma do meu tio Adolphe. Mas não era difícil adivinhar que, para Morei, que transmitira ao filho essa maneira de ser, meu tio era o personagem importante da família, de quem meus pais unicamente herdavam um brilho amortecido. Eu era mais favorecido porque meu tio dizia diariamente que eu seria uma espécie de Racine, de Vaulabelle, e Morei me considerava mais ou menos como um filho adotivo, como o filho de eleição de meu tio. Bem depressa percebi que o filho de Morei era bastante "arrivista". Assim, naquele dia, perguntou-me, por ser também o seu tanto compositor, e capaz de musicar alguns versos, se eu não conhecia algum poeta de posição importante no mundo da nobreza. Citei-lhe um. Ele não conhecia as obras desse poeta e jamais ouvira falar no seu nome, de que tomou nota.
     Ora, soube que pouco depois ele escrevera ao poeta, dizendo-lhe ser admirador fanático de suas obras e que musicara um soneto seu, e ficaria feliz se o libretista lhe conseguisse uma audição na casa da condessa***. Era ir um pouco depressa demais e desmascarar o seu plano. O poeta, melindrado, não respondeu.
     Aliás, Morei parecia possuir, além da ambição, uma viva tendência às realidades mais concretas. Havia reparado, no pátio, na sobrinha de Jupien ocupada em fazer um colete e, embora me dissesse apenas ter precisamente necessidade de um colete "de fantasia", senti que a moça lhe causara uma grande impressão. Não hesitou em pedir que descesse e o apresentasse, "mas não relacionado com a sua família, o senhor me compreende, conto com sua discrição quanto a meu pai, diga apenas um grande artista seu amigo, compreende, é preciso impressionar bem os comerciantes." Embora me tivesse insinuado que, não o conhecendo bastante para chamá-lo "caro amigo", ele compreendia, eu poderia lhe dizer, diante da moça, algo como "não caro Mestre, evidentemente..., mas, se quiser: ''caro grande artista"' evitei, na loja, "qualificá-lo", como diria Saint-Simon, e me limitei a responder aos seus "você" com "você". Entre algumas peças de veludo, ele encomendou uma do mais vivo vermelho, e tão gritante que, apesar do seu mau gosto, nunca mais pôde usar esse colete. A moça voltou a trabalhar com suas duas "aprendizes", mas pareceu-me que a impressão fora recíproca, e que Charles Morei, que ela julgou pertencesse ao "meu mundo" (apenas mais elegante e mais endinheirado), lhe agradara singularmente. Como eu ficara muito espantado por encontrar, entre as fotografias que me enviara seu pai, uma do retrato de Miss Sacripant (isto é, Odette) por Elstir, disse a Charles Morei, acompanhando-o até o portão principal:

- Receio que você não possa me informar. Será que meu tio conhecia bastante esta senhora? Não vejo em que época da vida de meu tio possa situá-la; e isto me interessa, por causa do Sr. Swann... - Justamente eu me esquecia de lhe dizer que meu pai havia recomendado que chamasse a sua atenção para essa senhora.

     De fato, essa demi-mondaine almoçava na casa do seu tio no último dia em que o viu. Meu pai estava indeciso se podia ou não fazê-la entrar. Parece que o senhor agradou bastante àquela mulher leviana, e ela esperava revê-lo. Mas, justamente por aquela época, houve uma briga na família, pelo que me disse meu pai, e o senhor nunca mais avistou seu tio. - Sorriu nesse instante para a sobrinha de Jupien, dando-lhe adeus de longe. Ela o observava, sem dúvida admirando o seu rosto magro, de feições regulares, seus cabelos leves e os olhos alegres. Apertando-lhe a mão, eu pensava na Sra. Swann, e dizia para mim mesmo, espantado, de tal modo eram diferentes e separadas na minha recordação, que de agora em diante teria de identificá-la com a "dama cor-de-rosa".
     O Sr. de Charlus logo se sentou ao lado da Sra. Swann. Em todas as reuniões em que se achava, e desdenhoso quanto aos homens, cortejado pelas mulheres, ia logo se juntar à mais elegante, de cuja toalete se sentia envaidecido. A casaca ou o fraque do barão faziam-no parecer se com esses retratos, pintados por um grande colorista, de um homem de preto, mas que tem perto de si, sobre uma cadeira, uma capa deslumbrante que vai pôr para um baile à fantasia. Essa familiaridade, em geral com alguma Alteza, proporcionava ao Sr. de Charlus as distinções que apreciava. Por exemplo, em decorrência disso, acontecia que as donas de casa deixavam, numa festa, que o barão tivesse uma cadeira só para ele na frente, na companhia das damas, enquanto os outros homens se amontoavam no fundo. Além disso, muito absorto, ao que parecia, em contar em voz alta histórias divertidas à dama encantada, o Sr. de Charlus estava dispensado de cumprimentar os outros e, por conseguinte, de ter deveres a cumprir.
     Por detrás da barreira perfumada que lhe erguia a beldade escolhida, ele estava isolado no meio de um salão como num camarote no meio de uma sala de espetáculos e, quando vinham cumprimentá-lo, através, por assim dizer, da formosura da sua companheira, era desculpável que respondesse com muita brevidade e sem interromper o que falava a uma senhora. Decerto a Sra. Swann não era exatamente o tipo de pessoa com quem ele apreciava se mostrar desse modo. Mas professava admiração por ela, amizade por Swann, sabia que ela ficaria lisonjeada com o seu desvelo, e ele próprio sentia-se encantado por estar comprometido com a mais bela pessoa ali presente.
     A Sra. de Villeparisis, aliás, só estava meio contente com a visita do Sr. de Charlus. Este, apesar de lhe achar graves defeitos, gostava muito dela. Mas, por momentos, sob o ímpeto da cólera, devido a agravos imaginários, endereçava-lhe, sem resistir a seus impulsos, cartas de extrema violência em que levava em conta coisas miúdas que até então parecia não ter notado. Entre outros exemplos, posso citar este fato, porque minha temporada em Balbec me pôs ao corrente dele: a Sra. de Villeparisis, receando não ter levado dinheiro suficiente para prolongar suas férias em Balbec, e não querendo mandar vir dinheiro de Paris por ser avara e por temer os gastos supérfluos, pedira emprestados três mil francos ao Sr. de Charlus. Este, um mês depois, descontente com a tia por um motivo insignificante, reclamou o empréstimo por um despacho telegráfico. Recebeu dois mil novecentos e noventa e alguns francos. Vendo a tia alguns dias após em Paris e conversando amistosamente com ela, fez-lhe notar, com muita doçura, o erro cometido pelo banco encarregado da remessa. 

- Mas não houve erro - respondeu a Sra. de Villeparisis -, o despacho pelo telégrafo custa seis francos e setenta e cinco cêntimos. 
- Ah, desde o momento em que não é intencional, tudo bem - replicou o Sr. de Charlus. - Falei apenas para o caso da senhora ignorá-lo, porque então, se o banco tivesse agido da mesma forma com pessoas que lhe sejam menos íntimas do que eu, isso poderia contrariá-la. 
- Não, não há erro algum. 
- No fundo, a senhora teve toda a razão - concluiu alegremente o Sr. de Charlus, beijando com ternura a mão da tia. De fato, ele não lhe queria mal por isso, de modo algum, e sorria apenas daquela pequena mesquinharia. Mas, pouco tempo depois, julgando que, num caso de família, sua tia quisera enganá-lo e "armar todo um complô contra ele", e, como ela se escudasse bobamente atrás de homens de negócios com os quais precisamente achava que ela se aliara contra ele, o Sr. de Charlus lhe escrevera uma carta transbordante de furor e insolência. "Não me contentarei em me vingar", acrescentou em pós-escrito, "vou torná-la ridícula. A partir de amanhã vou contar a todo o mundo a história do despacho telegráfico e dos seis francos e setenta e cinco cêntimos que a senhora reteve sobre os três mil francos que lhe emprestei; vou desonrá-la." Em vez disso, foi no dia seguinte pedir perdão à tia Villeparisis, arrependido de uma carta em que havia frases verdadeiramente horríveis. Além disso, a quem poderia ele contar a história do despacho telegráfico? Não desejando a vingança, mas sim uma sincera reconciliação, agora mesmo é que devia calar-se a respeito dela. Mas antes já a contara por toda parte, quando estava de bem com a tia, contando-a sem maldade, para fazer rir, e porque era a indiscrição em pessoa. Contara-a, mas sem que a Sra. de Villeparisis o soubesse. De modo que, tendo sabido pela sua carta que ele pretendia desonrá-la divulgando um episódio onde ele próprio lhe declarara que ela agira bem, a Sra. de Villeparisis pensara que ele se enganara antes, e mentia fingindo amá-la. Tudo isto se pacificara, mas ambos não sabiam exatamente a opinião que um tinha do outro. Decerto, trata-se aí de um caso um tanto especial de brigas intermitentes. De natureza diversa eram as brigas de Bloch e de seus amigos. De outra natureza ainda, as do Sr. de Charlus, como se verá, com pessoas bem diferentes da Sra. de Villeparisis. Apesar disso, é preciso lembrar que a opinião que temos uns dos outros, as relações de amizade, de família, não têm nada de fixo a não ser em aparência, e são eternamente mutáveis como o mar. Daí, tanto rumor de divórcio entre esposos que parecem tão perfeitamente unidos e que, pouco depois, falam ternamente um do outro; tantas infâmias ditas por um amigo que julgávamos inseparável e com quem nos reconciliaremos antes de termos tido tempo de nos recobrar da surpresa; tantas alianças desfeitas entre os povos, em tão pouco tempo. 
- Meu Deus, a coisa está ardendo entre meu tio e a Sra. Swann - disse-me Saint-Loup. - E mamãe que, em sua inocência, vem perturbá-los. Aos puros, tudo é puro!

     Eu observava o Sr. de Charlus. O pequeno tufo de seus cabelos cinzentos, seu olho, cuja sobrancelha estava erguida pelo monóculo e que sorria, sua botoeira com flores rubras, formavam como que os três vértices móveis de um triângulo convulsivo e impressionante. Não ousara cumprimentá-lo, pois ele não me fizera nenhum aceno. Ora, ainda que ele não se tivesse virado na minha direção, eu estava convencido de que me havia visto; enquanto contava alguma história à Sra. Swann, cujo esplêndido manto cor de amor-perfeito flutuava até mesmo sobre um joelho do barão, os olhos errantes do Sr. de Charlus, idênticos aos de um camelô que teme a chegada do rapa, certamente haviam explorado cada parte do salão, descobrindo todas as pessoas que ali se encontravam. O Sr. de Châtellerault foi cumprimentá-lo sem que nada no rosto do Sr. de Charlus revelasse que ele tivesse percebido o jovem duque antes do momento em que este se achou à sua frente. Era assim que, nas reuniões um pouco numerosas como esta, o Sr. de Charlus conservava, de forma quase constante, um sorriso sem direção determinada nem destinação especial, e que, preexistente desse modo aos cumprimentos dos recém-chegados, apresentava se, quando estes penetravam em sua zona, desprovido de qualquer sinal de amabilidade para com eles. Não obstante, era necessário que eu fosse cumprimentar a Sra. Swann. Mas, como ela ignorava que eu conhecia a Sra. de Marsantes e o Sr. de, Charlus, mostrou-se bastante fria, temendo sem dúvida que eu lhe pedisse para ser apresentado. Então, encaminhei-me para o Sr. de Charlus e logo me arrependi, pois, devendo muito bem ter-me visto, não o deixou transparecer em coisa alguma. No momento em que me inclinei diante dele, encontrei, distante de seu corpo, do qual impedia-me de me aproximar todo o comprimento de seu braço estendido, um dedo viúvo, por assim dizer, de um anel episcopal, que ele dava a impressão de oferecer, para que o beijassem no lugar consagrado, e pareceu que eu havia penetrado, contra a vontade do barão, e por um arrombamento cuja responsabilidade ele me deixava, na permanência e na dispersão anônima e vaga de seu sorriso. Essa frieza não foi própria a encorajar a Sra. Swann a abandonar a sua. 

- Como pareces cansado e inquieto - disse a Sra. de Marsantes ao filho, que tinha vindo saudar o Sr. de Charlus.

     E com efeito, os olhos de Robert pareciam por instantes atingir uma profundeza que logo abandonavam, como um mergulhador que tocou o fundo. Tal fundo, que fazia tanto mal a Robert quando o tocava, que ele o abandonava logo para a ele retornar um momento após, era a idéia de que havia rompido com a amante. 

- Não quer dizer nada - acrescentou sua mãe acariciando-lhe o rosto. - É bom estar com o meu filhinho.
  
continua na página 120...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Era um tipo de raciocínio)
Volume 7

Nenhum comentário:

Postar um comentário