sábado, 7 de junho de 2025

Massa e Poder - A Floresta

Elias Canetti


A FLORESTA


      A floresta está acima do homem. Ela pode ser fechada e coberta de todo tipo de mato; entrar nela pode exigir esforço, e sair, mais ainda. Contudo, sua verdadeira densidade, aquilo que realmente a compõe — sua folhagem —, está no alto. É a folhagem das árvores isoladas que se entrelaça, formando um teto coeso; é a folhagem que absorve boa parte da luz, lançando sombras enormes sobre toda a floresta. 
     O homem, ereto como uma árvore, alinha-se entre as demais árvores. Mas elas são bem maiores que ele, de modo que, para vê-las, ele precisa olhar para cima. Inexiste à sua volta qualquer outro fenômeno natural que paire tão constantemente sobre ele, apresentando-se lhe ao mesmo tempo tão próximo e múltiplo. As nuvens seguem adiante, a chuva escoa-se e as estrelas estão distantes. De todos esses múltiplos fenômenos que atuam de cima para baixo, nenhum possui a proximidade constante da floresta. A altura das árvores é acessível; os homens trepam nelas, trazendo para baixo seus frutos; já viveram lá em cima. 
     A direção para a qual a floresta atrai o olhar humano é a de sua própria transformação: a floresta segue crescendo constantemente para cima. A igualdade dos troncos é aproximada; também ela é, na verdade, uma igualdade de direção. Quem está na floresta sente-se seguro; não está em seu ponto mais alto, onde ela segue crescendo, nem tampouco no local onde ela é mais densa. Precisamente essa densidade é que protege o homem, e tal proteção encontra-se lá em cima. A floresta transformou-se, assim, num modelo da devoção. Ela obriga os homens a olhar para cima, agradecidos pela proteção superior. Esse olhar para cima, ao longo dos muitos troncos, torna-se um erguer dos olhos em si. A floresta antecipa aquilo que se sente numa igreja: o estar de pé diante de deus, entre colunas e pilares. Sua expressão mais harmoniosa e, por isso, mais perfeita é a cúpula abaulada, todos os troncos entrelaçados numa unidade suprema e inseparável.
     Um outro e não menos importante aspecto da floresta é sua múltipla imobilidade. Cada tronco em particular encontra-se firmemente enraizado, não cedendo a nenhuma ameaça exterior. Sua resistência é absoluta; ele não sai do lugar. Pode-se cortá-lo, mas não deslocá-lo. Assim, a floresta tornou-se o símbolo do exército: um exército em posição; um exército que não foge em circunstância alguma e que se deixa ceifar em pedaços até o último homem antes de ceder um palmo de chão.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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