A Montanha Mágica
Capítulo V
.
continuando...
Agasalhado de lã e de peles destinadas a evitarem perda de calor, o jovem Hans Castorp
repousava acima do vale cintilante, enquanto, nessa noite glacial, iluminado pelo brilho do satélite
morto, aparecia-lhe a imagem da vida. Essa imagem flutuava diante dele, em algum lugar do
espaço, longínqua e todavia próxima dos sentidos; havia o corpo, de uma brancura embaciada,
viscoso, a exalar odores e vapores; havia a pele com toda a impureza e toda a imperfeição que lhe
eram peculiares, com manchas, papilas, rugas, descolorações, zonas granulosas ou escamosas, a
pele revestida das finas correntes e dos delicados torvelinhos da lanugem rudimentar. Distante do
frio da matéria inanimada, essa imagem pairava na sua própria esfera vaporosa, assumindo uma
atitude relaxada, com a cabeça coroada de alguma coisa fresca, córnea, pigmentária, que era um
produto da sua pele, e com as mãos unidas por detrás da nuca; de sob as pálpebras baixas, mirava
o espectador, com aqueles olhos que uma variante da formação da pele na comissura interior
fazia aparecer oblíquos, e com os lábios um tanto grossos, entreabertos; apoiava-se numa das
pernas, de modo que o osso ilíaco, que suportava o peso, ressaltava nitidamente sob a carne, ao
passo que, na perna relaxada, o joelho levemente dobrado roçava o interior da perna de apoio e o
pé tocava o solo apenas com a ponta dos dedos. Assim se quedava a imagem; voltava-se sorrindo,
certa da sua graça, com os cotovelos luzidios apontando para a frente, na simetria dos membros
gêmeos e dos sinais do corpo. À sombra das axilas, de exalação acre, correspondia, num triângulo
místico, a noite do regaço, assim como aos olhos a boca vermelha, epitelial, e às corolas rubras
dos seios o umbigo alongado em sentido vertical. Sob o impulso de um órgão central e de nervos
motores que partiam da medula espinhal, moviam-se o ventre e o tórax, dilatava-se e encolhia-se
a cavidade pleuroperitoneal; o hálito, esquentado e umedecido pelas mucosas do trato
respiratório, saturado de secreções, escapava por entre os lábios, após ter combinado, nos
alvéolos dos pulmões, o seu oxigênio com a hemoglobina do sangue, para possibilitar a
respiração interna. Hans Castorp compreendia que esse corpo vivo, a repousar no misterioso
equilíbrio da estrutura das suas partes alimentadas de sangue, percorridas por nervos, veias,
artérias, capilares, e banhadas pela linfa, esse corpo com a armação interna formada por ossos
ocos, cheios de tutano gorduroso, por ossos chatos, ossos curtos e vértebras, consolidados, com
a ajuda de sais calcáreos e de cola, à base do tecido gelatinoso, a substância primitiva de apoio,
com as cápsulas, as cavidades lubrificadas, os tendões, as cartilagens das suas articulações, com
seus mais de duzentos músculos, com seus órgãos centrais a serviço da nutrição, da respiração, da
recepção e da emissão de estímulos, com suas membranas protetoras, cavidades cerosas e
glândulas ricas em secreções, com o sistema de canais e de fendas da sua complicada superfície
interna, que pelos orifícios do corpo desembocava no mundo exterior – Hans Castorp
compreendia, pois, que esse Eu era uma unidade viva de categoria superior, muito distante
daqueles seres mais simples, reduzidos a respirar, alimentar-se e mesmo pensar com toda a
superfície do seu corpo, e se compunha de miríades de tais organismos minúsculos, que, tendo a
sua origem num único dentre eles, e multiplicando-se mediante uma divisão sempre e sempre
repetida, haviam organizado, diferenciado, desenvolvido os mais diversos usos e funções e
tinham chegado a produzir formas que eram a condição e o efeito do seu crescimento.
O corpo que então se lhe afigurava, esse ser singular e esse Eu vivente, era, portanto, uma
enorme pluralidade de indivíduos que respiravam e se alimentavam, que, em virtude da sua
subordinação orgânica e da sua adaptação a uma finalidade especial, tinham perdido a sua
existência própria, a sua liberdade e a sua vida independente, haviam se transformado em
elementos anatômicos, a tal ponto que a função de alguns se restringia à irritabilidade em face dos
estímulos da luz, do som, do tato, do calor, ao passo que outros apenas sabiam modificar a sua
forma, mediante contração, ou segregar líquidos digestivos, e ainda outros estavam desenvolvidos
e aptos exclusivamente para proteger, sustentar, veicular humores ou servir à procriação. Havia
casos em que se afrouxavam os laços dessa pluralidade orgânica, reunida para formar um Eu
elevado, casos nos quais a multidão de indivíduos inferiores não se associava, senão de uma
forma superficial e incerta, numa unidade de vida superior. O nosso estudioso meditava acerca do
fenômeno das colônias de células; inteirava-se da existência de semi-organismos, de algas cujas
células avulsas, apenas envoltas num manto gelatinoso, frequentemente se achavam muito
distantes umas das outras, tratando-se, sem embargo, de formações multicelulares, que, porém, se
fossem interrogadas, seriam incapazes de dizer se preferiam ser consideradas uma aglomeração
de indivíduos unicelulares ou um ser único, e, referindo-se a si próprias, oscilariam
estranhamente entre o “eu” e o “nós”. Aqui a natureza dispunha de um estado intermediário
entre a associação altamente social de inúmeros indivíduos elementares a formarem os tecidos e
os órgãos de um Eu superior e a livre existência individual dessas unidades avulsas: o organismo
multicelular era tão-somente uma dentre as formas do processo clínico segundo o qual decorria a
vida, e que constituía um movimento circulatório de ato gerador em ato gerador. A fecundação, a
fusão sexual de dois corpos de células, achava-se no início da construção de todo indivíduo
multicelular, como também se encontrava no começo de cada série de gerações de criaturas
elementares de vida isolada, e sempre reconduzia a si própria. Pois esse ato persistia através de
numerosas gerações que não necessitavam dele para se multiplicar mediante contínua divisão, até
chegar o momento em que os descendentes nascidos sem o concurso do sexo se vissem
novamente obrigados à cópula e o ciclo voltasse a se fechar. Assim, o Estado multiforme da vida,
originado da fusão nuclear de duas células geradoras, era a coletividade de muitas gerações de
indivíduos celulares, produzidos de modo assexual. Seu crescimento coincidia com a
multiplicação deles, e o ciclo gerador fechava-se quando as células sexuais, elementos
desenvolvidos com o fim especial da procriação, haviam se formado nele e encontravam o
caminho de uma junção que desse um novo impulso à vida.
O corpo que então se lhe afigurava, esse ser singular e esse Eu vivente, era, portanto, uma
enorme pluralidade de indivíduos que respiravam e se alimentavam, que, em virtude da sua
subordinação orgânica e da sua adaptação a uma finalidade especial, tinham perdido a sua
existência própria, a sua liberdade e a sua vida independente, haviam se transformado em
elementos anatômicos, a tal ponto que a função de alguns se restringia à irritabilidade em face dos
estímulos da luz, do som, do tato, do calor, ao passo que outros apenas sabiam modificar a sua
forma, mediante contração, ou segregar líquidos digestivos, e ainda outros estavam desenvolvidos
e aptos exclusivamente para proteger, sustentar, veicular humores ou servir à procriação. Havia
casos em que se afrouxavam os laços dessa pluralidade orgânica, reunida para formar um Eu
elevado, casos nos quais a multidão de indivíduos inferiores não se associava, senão de uma
forma superficial e incerta, numa unidade de vida superior. O nosso estudioso meditava acerca do
fenômeno das colônias de células; inteirava-se da existência de semi-organismos, de algas cujas
células avulsas, apenas envoltas num manto gelatinoso, frequentemente se achavam muito
distantes umas das outras, tratando-se, sem embargo, de formações multicelulares, que, porém, se
fossem interrogadas, seriam incapazes de dizer se preferiam ser consideradas uma aglomeração
de indivíduos unicelulares ou um ser único, e, referindo-se a si próprias, oscilariam
estranhamente entre o “eu” e o “nós”. Aqui a natureza dispunha de um estado intermediário
entre a associação altamente social de inúmeros indivíduos elementares a formarem os tecidos e
os órgãos de um Eu superior e a livre existência individual dessas unidades avulsas: o organismo
multicelular era tão-somente uma dentre as formas do processo clínico segundo o qual decorria a
vida, e que constituía um movimento circulatório de ato gerador em ato gerador. A fecundação, a
fusão sexual de dois corpos de células, achava-se no início da construção de todo indivíduo
multicelular, como também se encontrava no começo de cada série de gerações de criaturas
elementares de vida isolada, e sempre reconduzia a si própria. Pois esse ato persistia através de
numerosas gerações que não necessitavam dele para se multiplicar mediante contínua divisão, até
chegar o momento em que os descendentes nascidos sem o concurso do sexo se vissem
novamente obrigados à cópula e o ciclo voltasse a se fechar. Assim, o Estado multiforme da vida,
originado da fusão nuclear de duas células geradoras, era a coletividade de muitas gerações de
indivíduos celulares, produzidos de modo assexual. Seu crescimento coincidia com a
multiplicação deles, e o ciclo gerador fechava-se quando as células sexuais, elementos
desenvolvidos com o fim especial da procriação, haviam se formado nele e encontravam o
caminho de uma junção que desse um novo impulso à vida.
A anatomia esfolava e dissecava, para o nosso pesquisador, os membros do corpo
humano; mostrava-lhe os músculos e os tendões, tanto os superficiais como os subjacentes,
profundos, os da coxa e da perna, do pé e sobretudo do braço; ensinava-lhe os nomes latinos,
com que a medicina, esse matiz do espírito humanístico, os designara e distinguira generosa e
galantemente; permitia ao jovem avançar até o esqueleto, cuja estrutura lhe abria novas
perspectivas sobre a unidade de tudo quanto é humano, e sobre o fato de se acharem
relacionadas com isso todas as disciplinas. Pois nesse ponto recordava-se, de um modo
sumamente estranho, da sua verdadeira ou, talvez seja melhor dizer, da sua antiga profissão, do
título científico do qual se declarara portador, ao chegar ali, perante as pessoas que encontrara - o
Dr. Krokowski e o Sr. Settembrini. Para aprender alguma coisa – fora-lhe bem indiferente o quê – inteirara-se, nas universidades, deste ou daquele fato referente à estática, aos suportes capazes
de flexão, à carga e à construção como sendo um emprego vantajoso do material mecânico. Teria
sido pueril opinar que a ciência do engenheiro, as leis da mecânica, aplicavam-se à natureza
orgânica; mas tampouco se podia pretender que tinham sido deduzidas desta. Apareciam
simplesmente reproduzidas e confirmadas por ela. O princípio do cilindro vazado predominava
na estrutura dos longos ossos medulares, de maneira que o mínimo exato de substância sólida
supria as necessidades estáticas. Um corpo – assim o aprendera Hans Castorp – que, conforme as
exigências feitas a ele quanto à tração e à pressão, estivesse composto tão-somente de varas e
tirantes de um material mecanicamente adequado poderia suportar a mesma carga que um corpo
maciço de igual composição. Da mesma forma era possível observar, na evolução dos ossos
medulares, como, à medida que a superfície se ossificava, as partes internas, mecanicamente
supérfluas, se transformavam em tecidos gordurosos, o tutano amarelo. O osso femural era uma
grua em cuja construção a natureza orgânica, pela flexão que dera às pecinhas ósseas, executava
exatamente as mesmas curvas de tração e de pressão que Hans Castorp teria de traçar para a
apresentação correta de um aparelho destinado a se desempenhar das mesmas incumbências. O
jovem verificava com satisfação que, dessa forma, dispunha de uma tripla relação com o fêmur,
ou com a natureza orgânica em geral: a relação lírica, a relação médica e a relação técnica – tão
intensos eram os estímulos que acabava de receber. E essas três relações, assim lhe parecia,
chegavam a ser uma só pelo seu caráter humano, eram variantes de uma e mesma aspiração
premente, eram escolas do pensamento humanístico...
Contudo permanecia inexplicável a obra do protoplasma. Parecia vedado à vida
compreender-se a si própria. A maioria dos processos bioquímicos não somente eram
desconhecidos, como também era inerente à sua natureza esquivar-se à compreensão. Quase
nada se sabia da estrutura, da composição dessa unidade de vida que se chamava a “célula”. Que
adiantava demonstrar as partes do músculo morto? Não se podia analisar quimicamente o
músculo vivo; já as modificações produzidas pela rigidez cadavérica bastavam para desvalorizar
quaisquer experiências. Ninguém compreendia o metabolismo, ninguém sabia nada da natureza
da função nervosa. A que qualidades deviam as papilas gustativas a faculdade do gosto? Em que
consistiam os diferentes tipos de excitação que os odores produziam em certos nervos sensitivos?
Em quê, o cheiro em geral? O odor específico dos animais e dos homens baseava-se na
evaporação de substâncias que ninguém era capaz de definir. A composição do líquido que se
chamava suor era pouco clara. As glândulas que o segregavam produziam aromas que, entre os
mamíferos, desempenhavam indubitavelmente um papel destacado, e cuja importância para a
vida humana os cientistas se declaravam incapazes de explicar. A função fisiológica de partes do
corpo evidentemente importantes permanecia obscura. Que se deixasse sem solução o problema
do apêndice vermiforme, que era um mistério, e o qual, entre os coelhos, sempre se encontrava
cheio de um conteúdo pastoso que não se sabia como ali entrava nem como se renovava. Mas,
qual era a explicação da substância branca e cinzenta da medulla oblongata, qual a do tálamo que se
comunicava com o nervo óptico, e qual a das substâncias cinzentas que se encontram na ponte
de Varólio? A medula cerebral e espinhal era a tal ponto sujeita à desintegração, que não havia
esperança de penetrar-lhe jamais o segredo da estrutura. A que circunstância se devia a suspensão
das unidades do córtex cerebral? O que impedia o estômago de se digerir a si próprio, fato que
ocorria às vezes nos cadáveres? Respondia-se: a vida, um singular poder de resistência do
protoplasma vivo – e fingia-se não perceber que essa era uma explicação mística. A teoria de um
fenômeno tão comum como era a febre estava cheia de contradições. O aumento das
combustões tinha como resultado uma produção mais intensa de calor. Mas, por que não
aumentava também, como em outras ocasiões, o gasto de calor, para compensar esse fato?
Originava-se a paralisia das glândulas sudoríparas de uma contração da pele? Entretanto, tal não
se observara senão em casos de calafrios, ao passo que, fora isso, a pele se mostrava quente. A
experiência da “picada bulbar” indicava o sistema nervoso central como a sede dos fatores que
causavam o aumento da intensidade das combustões, bem como a referida particularidade da
pele, que era qualificada de anormal porque ninguém sabia explicá-la.
No entanto, que significava toda essa ignorância em confronto com a desorientação da
ciência em face de fenômenos como o da memória, ou daquela memória ampliada, digna da mais
alta admiração, que se denominava transmissão hereditária de qualidades adquiridas? Era
totalmente impossível chegar apenas a uma ideia vaga de uma explicação mecânica desse trabalho
realizado pela substância celular. O espermatozoide que transmitia ao óvulo as inúmeras e
complexas peculiaridades da espécie e da individualidade do pai era visível somente com o auxílio
do microscópio, e o máximo aumento não bastava para apresentá-lo sob outro aspecto que o de
um corpo homogêneo, e para permitir a determinação da sua origem, pois que o sêmen de todos
os tipos de animais aparecia idêntico. Eram esses os fatores da organização que impunham a
hipótese segundo a qual o mesmo que se passava no corpo superior ocorria nas células que o
compunham, quer dizer, que estas também eram organismos superiores, compostos, por sua vez,
de minúsculos corpos vivos, de unidades de vida individuais. Dava-se, portanto, um passo do
elemento que se supusera como o menor, para outro de dimensões ainda mais reduzidas; sob a
pressão da necessidade, as partes elementares eram decompostas em partículas subelementares.
Não havia dúvida: assim como o reino animal era formado de diversas espécies de animais, e o
organismo dos animais e dos homens de todo um reino de espécies de células, o organismo da
célula compunha-se de um novo e múltiplo reino animal em unidades elementares da vida, cujo
tamanho ficava muito longe do limite do que era possível ver ao microscópio; unidades que
cresciam independentemente, que se multiplicavam segundo a lei de que cada qual só podia
reproduzir suas semelhantes, e que, em conformidade com o princípio da divisão do trabalho,
serviam, num esforço coletivo, à categoria de vida imediatamente superior à sua.
Eram esses os genes, os bioblastos, os bióforos que Hans Castorp estava encantado de
conhecer, naquela noite glacial. Mas, como se achasse inspirado, perguntou-se a si próprio como
se apresentaria a natureza elementar dessas unidades a quem as examinasse ainda mais de perto.
Sendo portadoras de vida, deviam estar organizadas, pois a vida fundava-se na organização; mas,
estando organizadas, não podiam ser elementares, já que um organismo não é elementar, senão
múltiplo. Tratava-se, portanto, de unidades de vida inferiores à célula que compunham
organicamente. Assim sendo, era, porém, forçoso que elas, apesar do seu tamanho incrivelmente
pequeno, fossem por sua vez “construídas”, organicamente construídas, como formas de vida.
Pois a ideia da unidade viva identificava-se com a da construção à base de unidades menores,
subordinadas, isto é: destinadas às finalidades de uma vida superior. Enquanto a divisão tinha por
resultado unidades orgânicas, dotadas das particularidades da vida – a saber, as faculdades de
assimilação, de crescimento e de multiplicação –, não havia limites para ela. Com referência a
unidades de vida, seria, pois, errado falar de unidades elementares, visto o conceito da unidade
encerrar, ad infinitum, o conceito acessório da unidade subordinada e componente; não existia vida
elementar, quer dizer, alguma coisa que já fosse vida e ainda continuasse sendo elementar.
No entanto, embora a lógica não lhe aceitasse a existência, devia em última análise existir
qualquer coisa dessas, visto que a ideia da geração espontânea, e com isso, da vida originada do
não-vivente, não podia ser rejeitada; aquele abismo que em vão se procurava fechar na natureza
exterior, o abismo entre a vida e o inanimado, devia de certa forma ser enchido ou transposto no
seio orgânico da natureza. Em algum momento tinha essa divisão de conduzir a “unidades”, que,
muito embora compostas, ainda não estivessem organizadas e servissem de intermediárias entre a
vida e a não-vida, grupos de moléculas que formassem a transição entre as categorias da vida e a
mera química. Mas quem chegasse à molécula química já se encontraria nas proximidades de um
abismo, cujas fauces escondiam um mistério muito maior ainda do que o que se abre entre as
naturezas orgânica e inorgânica. E o abismo que separa o material do imaterial. Pois a molécula se
compunha de átomos, e o átomo não tinha nem sequer tamanho suficiente para que fosse
adequada a qualificação de “extraordinariamente pequeno”. Era de um tamanho tão reduzido,
uma condensação tão ínfima, tão precoce e tão transitória do imaterial, do ainda-não-material,
mas já semelhante à matéria, à energia, que mal era possível considerá-lo como matéria, senão
como um quê intermediário, limítrofe, entre o material e o imaterial Surgia o problema de uma
outra geração espontânea, linda mais enigmática e fantástica do que a gênese original orgânica: o
da origem da matéria no imaterial. Com efeito, o abismo entre matéria e não-matéria exigia ser
transposto, tão insistentemente, ou ainda com maior insistência do que aquele que existe entre a
natureza orgânica e a inorgânica. Necessariamente devia haver uma química do imaterial, das
combinações de que resultava o material, assim como os organismos nasciam de combinações
inorgânicas. Podia ser que os átomos fossem os protozoários e as moneras da matéria – materiais,
quanto à sua natureza, e todavia ainda imateriais. Mas, a quem alcançasse o ponto onde se trata
daquilo que “nem sequer é pequeno”, escaparia toda a medida; “nem sequer pequeno” equivalia a
“infinitamente grande”, e o passo dado em direção ao átomo manifestava-se, sem exagero, como
falta no mais alto grau. Pois, no instante da mais extrema dissecação e diminuição do material,
descortinava-se de repente o cosmo astronômico.
O átomo era um sistema cósmico carregado de energia, e em cujo seio gravitavam
planetas, numa rotação de espantosa rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo
éter era percorrido, a uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas
órbitas excêntricas pela força do corpo central. E isso não é uma simples comparação, como
tampouco o seria a que define o organismo multicelular como um “Estado de células”. A cidade,
o Estado, a comunidade social organizada segundo o princípio da divisão do trabalho não
somente era comparável à vida orgânica, mas até a repetia exatamente. Da mesma forma repetia
se no seio da natureza, na mais extrema redução, o macrocosmo estelar, cujos grupos, nebulosas,
constelações, configurações, pairavam, empalidecidos pela lua, ante os olhos do nosso adepto,
por cima do vale cintilante de neve. Não seria lícito pensar que certos planetas do sistema solar
atômico – esses enxames e essas vias-lácteas de sistemas solares que compunham a matéria –, que
um e outro desses corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante
àquela que fazia da Terra uma sede da vida? Para um jovem adepto um tanto embriagado no seu
íntimo, e cuja pele se achava num estado “anormal”, para um homem que já não estava
completamente sem experiência no terreno das coisas proibidas, tal suposição não somente não
era extravagante, mas até se impunha com uma insistência inelutável, parecendo evidente e tendo
todo o cunho de lógica e de verdade. A “pequenez” dos corpos celestes do mundo interior seria
uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou pequeno se perdia o mais
tardar no momento em que se evidenciava o caráter cósmico das partes “minúsculas” da matéria,
e os conceitos de “exterior” e “interior” igualmente viam abalada a sua solidez. O mundo do
átomo era um “exterior”, ao passo que, provavelmente, o astro terrestre que habitamos era,
organicamente considerado, um profundo “interior”. Não chegara certo sábio, nos seus sonhos
audaciosos, a falar dos animais da Via-Láctea, monstros cósmicos, cuja carne, cujo esqueleto e
cérebro se compunham de sistemas solares? Mas, se isso sucedia assim como se afigurava a Hans
Castorp, tudo começava apenas no instante em que se imaginava ter alcançado o término. No
fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse, ele mesmo, o jovem Hans Castorp,
mais uma vez, mais cem vezes, bem agasalhado, num compartimento de sacada com vista sobre a
noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a vida do corpo, com os dedos enregelados e as
faces ardentes, sob o impulso de um interesse médico e humanista.
A anatomia patológica, cujo manual ele segurava, inclinado para a luz vermelha da
lampadazinha, informava-o, por meio de um texto entremeado de ilustrações, acerca da natureza
da aglomeração parasítica de células e dos tumores infecciosos. Eram formas de tecidos – formas
de caráter especialmente exuberante – provocadas pela irrupção de células estranhas num
organismo que se mostrara acolhedor e de algum modo – talvez seja preciso dizer: de um modo
um tanto perverso – oferecia condições favoráveis ao seu crescimento. O mal não era que o
parasita privasse de alimentos o tecido circundante; mas, no decorrer do metabolismo peculiar a
toda célula, produzia ele combinações orgânicas surpreendentemente tóxicas e inevitavelmente
perniciosas. Conseguira-se isolar e apresentar, sob uma forma concentrada, as toxinas de alguns
microrganismos e causara surpresa ver quão minúsculas doses dessas substâncias, que eram
simples combinações de albumina, bastavam para originar os mais perigosos fenômenos de
envenenamento e a mais rapace perdição, quando introduzidas na circulação de um animal. A
aparência exterior dessa corrupção era a de uma excrescência dos tecidos, o tumor patológico,
que constituía a reação das células contra o estímulo exercido pelos bacilos estabelecidos entre
elas. Formavam-se nódulos do tamanho de grãos de painço, compostos de células cuja estrutura
se parecia com a dos tecidos das mucosas, e entre as quais, ou nas quais, se instalavam os bacilos;
algumas dessas células, extraordinariamente ricas em protoplasma, tornavam-se gigantescas e
multinucleares. Mas essa exuberância conduzia a uma rápida ruína, pois que os núcleos dessas
células monstruosas começavam logo a se atrofiar e a se decompor, estragando-se o seu
protoplasma em virtude da coagulação; novas zonas do tecido vizinho eram invadidas por aquela
irritação estranha; fenômenos de inflamação iam se alastrando e atacavam os vasos adjacentes; os
glóbulos brancos, irresistivelmente atraídos, encaminhavam-se ao local do desastre; progredia a
morte por coagulação, e nesse ínterim os venenos solúveis das bactérias já haviam embriagado os
centros nervosos; o organismo alcançara uma temperatura elevadíssima, e cambaleava, por assim
dizer, com ânimo alegre, rumo à própria dissolução.
Até esse ponto adiantava-se a patologia, a teoria da enfermidade, a acentuação da dor
física, que, no entanto, como acentuação do elemento corporal, acentuava também a volúpia. A
enfermidade era a forma licenciosa da vida. E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma
doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea
da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do
imaterial? O início da marcha para o mal, para a voluptuosidade e para a morte dava-se, sem
dúvida, no lugar onde, provocada pelo prurido de uma infiltração desconhecida, realizava-se
aquela primeira condensação do espírito, aquela vegetação patologicamente exuberante do seu
tecido, mescla de prazer e de repulsa, que constituía a fase mais primitiva do substancial, a
transição do imaterial ao material. Eis o que era o pecado original. A segunda geração espontânea,
a criação do orgânico pelo inorgânico já não era mais do que uma intensificação maligna do
progresso do corpo em direção à consciência, da mesma forma que a enfermidade do organismo
era um exagero ébrio e um relevo indecente da sua natureza física. A vida chegava a ser apenas o
próximo passo no caminho aventuroso do espírito que se tornara impudico, o cálido reflexo do
pudor da matéria que fora despertada à sensibilidade e se mostrara disposta a corresponder ao
apelo...
Montões de livros achavam-se empilhados na mesinha com a lâmpada. Um jazia no chão,
ao lado da espreguiçadeira, sobre a esteira da sacada, e aquele que Hans Castorp estudara por
último pesava-lhe sobre o estômago, oprimindo-o e embargando-lhe a respiração, sem que,
entretanto, do córtex cerebral partissem aos músculos competentes ordens no sentido de o
afastarem. O jovem lera a página até o fim, e seu queixo alcançara o peito. As pálpebras haviam
se fechado espontaneamente por cima dos singelos olhos azuis. Via ele a imagem da vida, a
estrutura dos seus membros florescentes, a beleza cuja portadora era a carne. Ela retirara as mãos
da nuca; abria os braços, a cujo lado interior, antes de tudo sob a pele delicada da articulação do
cotovelo, se desenhavam, azulados, os vasos de sangue, as duas ramificações das grandes veias, e
esses braços eram de uma indizível doçura. A imagem aproximou-se dele, inclinou-se para ele,
sobre ele. Hans Castorp sentiu-lhe o odor orgânico, sentiu-lhe o pulsar do coração. Alguma coisa
quente e delicada enlaçou o pescoço de Hans Castorp, e enquanto ele, desfalecendo de volúpia e
de angústia, pousava as mãos sobre o lado externo desses braços, ali onde a pele granulosa, tensa
sobre o tricípite era de delicada frescura, sentiu nos lábios a úmida sucção de um beijo.
continua pág 187...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Pesquisas (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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