quinta-feira, 5 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Pesquisas (b)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 

Capítulo V

Pesquisas 
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continuando...

     Agasalhado de lã e de peles destinadas a evitarem perda de calor, o jovem Hans Castorp repousava acima do vale cintilante, enquanto, nessa noite glacial, iluminado pelo brilho do satélite morto, aparecia-lhe a imagem da vida. Essa imagem flutuava diante dele, em algum lugar do espaço, longínqua e todavia próxima dos sentidos; havia o corpo, de uma brancura embaciada, viscoso, a exalar odores e vapores; havia a pele com toda a impureza e toda a imperfeição que lhe eram peculiares, com manchas, papilas, rugas, descolorações, zonas granulosas ou escamosas, a pele revestida das finas correntes e dos delicados torvelinhos da lanugem rudimentar. Distante do frio da matéria inanimada, essa imagem pairava na sua própria esfera vaporosa, assumindo uma atitude relaxada, com a cabeça coroada de alguma coisa fresca, córnea, pigmentária, que era um produto da sua pele, e com as mãos unidas por detrás da nuca; de sob as pálpebras baixas, mirava o espectador, com aqueles olhos que uma variante da formação da pele na comissura interior fazia aparecer oblíquos, e com os lábios um tanto grossos, entreabertos; apoiava-se numa das pernas, de modo que o osso ilíaco, que suportava o peso, ressaltava nitidamente sob a carne, ao passo que, na perna relaxada, o joelho levemente dobrado roçava o interior da perna de apoio e o pé tocava o solo apenas com a ponta dos dedos. Assim se quedava a imagem; voltava-se sorrindo, certa da sua graça, com os cotovelos luzidios apontando para a frente, na simetria dos membros gêmeos e dos sinais do corpo. À sombra das axilas, de exalação acre, correspondia, num triângulo místico, a noite do regaço, assim como aos olhos a boca vermelha, epitelial, e às corolas rubras dos seios o umbigo alongado em sentido vertical. Sob o impulso de um órgão central e de nervos motores que partiam da medula espinhal, moviam-se o ventre e o tórax, dilatava-se e encolhia-se a cavidade pleuroperitoneal; o hálito, esquentado e umedecido pelas mucosas do trato respiratório, saturado de secreções, escapava por entre os lábios, após ter combinado, nos alvéolos dos pulmões, o seu oxigênio com a hemoglobina do sangue, para possibilitar a respiração interna. Hans Castorp compreendia que esse corpo vivo, a repousar no misterioso equilíbrio da estrutura das suas partes alimentadas de sangue, percorridas por nervos, veias, artérias, capilares, e banhadas pela linfa, esse corpo com a armação interna formada por ossos ocos, cheios de tutano gorduroso, por ossos chatos, ossos curtos e vértebras, consolidados, com a ajuda de sais calcáreos e de cola, à base do tecido gelatinoso, a substância primitiva de apoio, com as cápsulas, as cavidades lubrificadas, os tendões, as cartilagens das suas articulações, com seus mais de duzentos músculos, com seus órgãos centrais a serviço da nutrição, da respiração, da recepção e da emissão de estímulos, com suas membranas protetoras, cavidades cerosas e glândulas ricas em secreções, com o sistema de canais e de fendas da sua complicada superfície interna, que pelos orifícios do corpo desembocava no mundo exterior – Hans Castorp compreendia, pois, que esse Eu era uma unidade viva de categoria superior, muito distante daqueles seres mais simples, reduzidos a respirar, alimentar-se e mesmo pensar com toda a superfície do seu corpo, e se compunha de miríades de tais organismos minúsculos, que, tendo a sua origem num único dentre eles, e multiplicando-se mediante uma divisão sempre e sempre repetida, haviam organizado, diferenciado, desenvolvido os mais diversos usos e funções e tinham chegado a produzir formas que eram a condição e o efeito do seu crescimento.
     O corpo que então se lhe afigurava, esse ser singular e esse Eu vivente, era, portanto, uma enorme pluralidade de indivíduos que respiravam e se alimentavam, que, em virtude da sua subordinação orgânica e da sua adaptação a uma finalidade especial, tinham perdido a sua existência própria, a sua liberdade e a sua vida independente, haviam se transformado em elementos anatômicos, a tal ponto que a função de alguns se restringia à irritabilidade em face dos estímulos da luz, do som, do tato, do calor, ao passo que outros apenas sabiam modificar a sua forma, mediante contração, ou segregar líquidos digestivos, e ainda outros estavam desenvolvidos e aptos exclusivamente para proteger, sustentar, veicular humores ou servir à procriação. Havia casos em que se afrouxavam os laços dessa pluralidade orgânica, reunida para formar um Eu elevado, casos nos quais a multidão de indivíduos inferiores não se associava, senão de uma forma superficial e incerta, numa unidade de vida superior. O nosso estudioso meditava acerca do fenômeno das colônias de células; inteirava-se da existência de semi-organismos, de algas cujas células avulsas, apenas envoltas num manto gelatinoso, frequentemente se achavam muito distantes umas das outras, tratando-se, sem embargo, de formações multicelulares, que, porém, se fossem interrogadas, seriam incapazes de dizer se preferiam ser consideradas uma aglomeração de indivíduos unicelulares ou um ser único, e, referindo-se a si próprias, oscilariam estranhamente entre o “eu” e o “nós”. Aqui a natureza dispunha de um estado intermediário entre a associação altamente social de inúmeros indivíduos elementares a formarem os tecidos e os órgãos de um Eu superior e a livre existência individual dessas unidades avulsas: o organismo multicelular era tão-somente uma dentre as formas do processo clínico segundo o qual decorria a vida, e que constituía um movimento circulatório de ato gerador em ato gerador. A fecundação, a fusão sexual de dois corpos de células, achava-se no início da construção de todo indivíduo multicelular, como também se encontrava no começo de cada série de gerações de criaturas elementares de vida isolada, e sempre reconduzia a si própria. Pois esse ato persistia através de numerosas gerações que não necessitavam dele para se multiplicar mediante contínua divisão, até chegar o momento em que os descendentes nascidos sem o concurso do sexo se vissem novamente obrigados à cópula e o ciclo voltasse a se fechar. Assim, o Estado multiforme da vida, originado da fusão nuclear de duas células geradoras, era a coletividade de muitas gerações de indivíduos celulares, produzidos de modo assexual. Seu crescimento coincidia com a multiplicação deles, e o ciclo gerador fechava-se quando as células sexuais, elementos desenvolvidos com o fim especial da procriação, haviam se formado nele e encontravam o caminho de uma junção que desse um novo impulso à vida.
     O corpo que então se lhe afigurava, esse ser singular e esse Eu vivente, era, portanto, uma enorme pluralidade de indivíduos que respiravam e se alimentavam, que, em virtude da sua subordinação orgânica e da sua adaptação a uma finalidade especial, tinham perdido a sua existência própria, a sua liberdade e a sua vida independente, haviam se transformado em elementos anatômicos, a tal ponto que a função de alguns se restringia à irritabilidade em face dos estímulos da luz, do som, do tato, do calor, ao passo que outros apenas sabiam modificar a sua forma, mediante contração, ou segregar líquidos digestivos, e ainda outros estavam desenvolvidos e aptos exclusivamente para proteger, sustentar, veicular humores ou servir à procriação. Havia casos em que se afrouxavam os laços dessa pluralidade orgânica, reunida para formar um Eu elevado, casos nos quais a multidão de indivíduos inferiores não se associava, senão de uma forma superficial e incerta, numa unidade de vida superior. O nosso estudioso meditava acerca do fenômeno das colônias de células; inteirava-se da existência de semi-organismos, de algas cujas células avulsas, apenas envoltas num manto gelatinoso, frequentemente se achavam muito distantes umas das outras, tratando-se, sem embargo, de formações multicelulares, que, porém, se fossem interrogadas, seriam incapazes de dizer se preferiam ser consideradas uma aglomeração de indivíduos unicelulares ou um ser único, e, referindo-se a si próprias, oscilariam estranhamente entre o “eu” e o “nós”. Aqui a natureza dispunha de um estado intermediário entre a associação altamente social de inúmeros indivíduos elementares a formarem os tecidos e os órgãos de um Eu superior e a livre existência individual dessas unidades avulsas: o organismo multicelular era tão-somente uma dentre as formas do processo clínico segundo o qual decorria a vida, e que constituía um movimento circulatório de ato gerador em ato gerador. A fecundação, a fusão sexual de dois corpos de células, achava-se no início da construção de todo indivíduo multicelular, como também se encontrava no começo de cada série de gerações de criaturas elementares de vida isolada, e sempre reconduzia a si própria. Pois esse ato persistia através de numerosas gerações que não necessitavam dele para se multiplicar mediante contínua divisão, até chegar o momento em que os descendentes nascidos sem o concurso do sexo se vissem novamente obrigados à cópula e o ciclo voltasse a se fechar. Assim, o Estado multiforme da vida, originado da fusão nuclear de duas células geradoras, era a coletividade de muitas gerações de indivíduos celulares, produzidos de modo assexual. Seu crescimento coincidia com a multiplicação deles, e o ciclo gerador fechava-se quando as células sexuais, elementos desenvolvidos com o fim especial da procriação, haviam se formado nele e encontravam o caminho de uma junção que desse um novo impulso à vida.
     A anatomia esfolava e dissecava, para o nosso pesquisador, os membros do corpo humano; mostrava-lhe os músculos e os tendões, tanto os superficiais como os subjacentes, profundos, os da coxa e da perna, do pé e sobretudo do braço; ensinava-lhe os nomes latinos, com que a medicina, esse matiz do espírito humanístico, os designara e distinguira generosa e galantemente; permitia ao jovem avançar até o esqueleto, cuja estrutura lhe abria novas perspectivas sobre a unidade de tudo quanto é humano, e sobre o fato de se acharem relacionadas com isso todas as disciplinas. Pois nesse ponto recordava-se, de um modo sumamente estranho, da sua verdadeira ou, talvez seja melhor dizer, da sua antiga profissão, do título científico do qual se declarara portador, ao chegar ali, perante as pessoas que encontrara - o Dr. Krokowski e o Sr. Settembrini. Para aprender alguma coisa – fora-lhe bem indiferente o quê – inteirara-se, nas universidades, deste ou daquele fato referente à estática, aos suportes capazes de flexão, à carga e à construção como sendo um emprego vantajoso do material mecânico. Teria sido pueril opinar que a ciência do engenheiro, as leis da mecânica, aplicavam-se à natureza orgânica; mas tampouco se podia pretender que tinham sido deduzidas desta. Apareciam simplesmente reproduzidas e confirmadas por ela. O princípio do cilindro vazado predominava na estrutura dos longos ossos medulares, de maneira que o mínimo exato de substância sólida supria as necessidades estáticas. Um corpo – assim o aprendera Hans Castorp – que, conforme as exigências feitas a ele quanto à tração e à pressão, estivesse composto tão-somente de varas e tirantes de um material mecanicamente adequado poderia suportar a mesma carga que um corpo maciço de igual composição. Da mesma forma era possível observar, na evolução dos ossos medulares, como, à medida que a superfície se ossificava, as partes internas, mecanicamente supérfluas, se transformavam em tecidos gordurosos, o tutano amarelo. O osso femural era uma grua em cuja construção a natureza orgânica, pela flexão que dera às pecinhas ósseas, executava exatamente as mesmas curvas de tração e de pressão que Hans Castorp teria de traçar para a apresentação correta de um aparelho destinado a se desempenhar das mesmas incumbências. O jovem verificava com satisfação que, dessa forma, dispunha de uma tripla relação com o fêmur, ou com a natureza orgânica em geral: a relação lírica, a relação médica e a relação técnica – tão intensos eram os estímulos que acabava de receber. E essas três relações, assim lhe parecia, chegavam a ser uma só pelo seu caráter humano, eram variantes de uma e mesma aspiração premente, eram escolas do pensamento humanístico...
     Contudo permanecia inexplicável a obra do protoplasma. Parecia vedado à vida compreender-se a si própria. A maioria dos processos bioquímicos não somente eram desconhecidos, como também era inerente à sua natureza esquivar-se à compreensão. Quase nada se sabia da estrutura, da composição dessa unidade de vida que se chamava a “célula”. Que adiantava demonstrar as partes do músculo morto? Não se podia analisar quimicamente o músculo vivo; já as modificações produzidas pela rigidez cadavérica bastavam para desvalorizar quaisquer experiências. Ninguém compreendia o metabolismo, ninguém sabia nada da natureza da função nervosa. A que qualidades deviam as papilas gustativas a faculdade do gosto? Em que consistiam os diferentes tipos de excitação que os odores produziam em certos nervos sensitivos? Em quê, o cheiro em geral? O odor específico dos animais e dos homens baseava-se na evaporação de substâncias que ninguém era capaz de definir. A composição do líquido que se chamava suor era pouco clara. As glândulas que o segregavam produziam aromas que, entre os mamíferos, desempenhavam indubitavelmente um papel destacado, e cuja importância para a vida humana os cientistas se declaravam incapazes de explicar. A função fisiológica de partes do corpo evidentemente importantes permanecia obscura. Que se deixasse sem solução o problema do apêndice vermiforme, que era um mistério, e o qual, entre os coelhos, sempre se encontrava cheio de um conteúdo pastoso que não se sabia como ali entrava nem como se renovava. Mas, qual era a explicação da substância branca e cinzenta da medulla oblongata, qual a do tálamo que se comunicava com o nervo óptico, e qual a das substâncias cinzentas que se encontram na ponte de Varólio? A medula cerebral e espinhal era a tal ponto sujeita à desintegração, que não havia esperança de penetrar-lhe jamais o segredo da estrutura. A que circunstância se devia a suspensão das unidades do córtex cerebral? O que impedia o estômago de se digerir a si próprio, fato que ocorria às vezes nos cadáveres? Respondia-se: a vida, um singular poder de resistência do protoplasma vivo – e fingia-se não perceber que essa era uma explicação mística. A teoria de um fenômeno tão comum como era a febre estava cheia de contradições. O aumento das combustões tinha como resultado uma produção mais intensa de calor. Mas, por que não aumentava também, como em outras ocasiões, o gasto de calor, para compensar esse fato? Originava-se a paralisia das glândulas sudoríparas de uma contração da pele? Entretanto, tal não se observara senão em casos de calafrios, ao passo que, fora isso, a pele se mostrava quente. A experiência da “picada bulbar” indicava o sistema nervoso central como a sede dos fatores que causavam o aumento da intensidade das combustões, bem como a referida particularidade da pele, que era qualificada de anormal porque ninguém sabia explicá-la.
     No entanto, que significava toda essa ignorância em confronto com a desorientação da ciência em face de fenômenos como o da memória, ou daquela memória ampliada, digna da mais alta admiração, que se denominava transmissão hereditária de qualidades adquiridas? Era totalmente impossível chegar apenas a uma ideia vaga de uma explicação mecânica desse trabalho realizado pela substância celular. O espermatozoide que transmitia ao óvulo as inúmeras e complexas peculiaridades da espécie e da individualidade do pai era visível somente com o auxílio do microscópio, e o máximo aumento não bastava para apresentá-lo sob outro aspecto que o de um corpo homogêneo, e para permitir a determinação da sua origem, pois que o sêmen de todos os tipos de animais aparecia idêntico. Eram esses os fatores da organização que impunham a hipótese segundo a qual o mesmo que se passava no corpo superior ocorria nas células que o compunham, quer dizer, que estas também eram organismos superiores, compostos, por sua vez, de minúsculos corpos vivos, de unidades de vida individuais. Dava-se, portanto, um passo do elemento que se supusera como o menor, para outro de dimensões ainda mais reduzidas; sob a pressão da necessidade, as partes elementares eram decompostas em partículas subelementares. Não havia dúvida: assim como o reino animal era formado de diversas espécies de animais, e o organismo dos animais e dos homens de todo um reino de espécies de células, o organismo da célula compunha-se de um novo e múltiplo reino animal em unidades elementares da vida, cujo tamanho ficava muito longe do limite do que era possível ver ao microscópio; unidades que cresciam independentemente, que se multiplicavam segundo a lei de que cada qual só podia reproduzir suas semelhantes, e que, em conformidade com o princípio da divisão do trabalho, serviam, num esforço coletivo, à categoria de vida imediatamente superior à sua.
     Eram esses os genes, os bioblastos, os bióforos que Hans Castorp estava encantado de conhecer, naquela noite glacial. Mas, como se achasse inspirado, perguntou-se a si próprio como se apresentaria a natureza elementar dessas unidades a quem as examinasse ainda mais de perto. Sendo portadoras de vida, deviam estar organizadas, pois a vida fundava-se na organização; mas, estando organizadas, não podiam ser elementares, já que um organismo não é elementar, senão múltiplo. Tratava-se, portanto, de unidades de vida inferiores à célula que compunham organicamente. Assim sendo, era, porém, forçoso que elas, apesar do seu tamanho incrivelmente pequeno, fossem por sua vez “construídas”, organicamente construídas, como formas de vida. Pois a ideia da unidade viva identificava-se com a da construção à base de unidades menores, subordinadas, isto é: destinadas às finalidades de uma vida superior. Enquanto a divisão tinha por resultado unidades orgânicas, dotadas das particularidades da vida – a saber, as faculdades de assimilação, de crescimento e de multiplicação –, não havia limites para ela. Com referência a unidades de vida, seria, pois, errado falar de unidades elementares, visto o conceito da unidade encerrar, ad infinitum, o conceito acessório da unidade subordinada e componente; não existia vida elementar, quer dizer, alguma coisa que já fosse vida e ainda continuasse sendo elementar.
     No entanto, embora a lógica não lhe aceitasse a existência, devia em última análise existir qualquer coisa dessas, visto que a ideia da geração espontânea, e com isso, da vida originada do não-vivente, não podia ser rejeitada; aquele abismo que em vão se procurava fechar na natureza exterior, o abismo entre a vida e o inanimado, devia de certa forma ser enchido ou transposto no seio orgânico da natureza. Em algum momento tinha essa divisão de conduzir a “unidades”, que, muito embora compostas, ainda não estivessem organizadas e servissem de intermediárias entre a vida e a não-vida, grupos de moléculas que formassem a transição entre as categorias da vida e a mera química. Mas quem chegasse à molécula química já se encontraria nas proximidades de um abismo, cujas fauces escondiam um mistério muito maior ainda do que o que se abre entre as naturezas orgânica e inorgânica. E o abismo que separa o material do imaterial. Pois a molécula se compunha de átomos, e o átomo não tinha nem sequer tamanho suficiente para que fosse adequada a qualificação de “extraordinariamente pequeno”. Era de um tamanho tão reduzido, uma condensação tão ínfima, tão precoce e tão transitória do imaterial, do ainda-não-material, mas já semelhante à matéria, à energia, que mal era possível considerá-lo como matéria, senão como um quê intermediário, limítrofe, entre o material e o imaterial Surgia o problema de uma outra geração espontânea, linda mais enigmática e fantástica do que a gênese original orgânica: o da origem da matéria no imaterial. Com efeito, o abismo entre matéria e não-matéria exigia ser transposto, tão insistentemente, ou ainda com maior insistência do que aquele que existe entre a natureza orgânica e a inorgânica. Necessariamente devia haver uma química do imaterial, das combinações de que resultava o material, assim como os organismos nasciam de combinações inorgânicas. Podia ser que os átomos fossem os protozoários e as moneras da matéria – materiais, quanto à sua natureza, e todavia ainda imateriais. Mas, a quem alcançasse o ponto onde se trata daquilo que “nem sequer é pequeno”, escaparia toda a medida; “nem sequer pequeno” equivalia a “infinitamente grande”, e o passo dado em direção ao átomo manifestava-se, sem exagero, como falta no mais alto grau. Pois, no instante da mais extrema dissecação e diminuição do material, descortinava-se de repente o cosmo astronômico.
     O átomo era um sistema cósmico carregado de energia, e em cujo seio gravitavam planetas, numa rotação de espantosa rapidez, em torno de um centro semelhante ao sol, e cujo éter era percorrido, a uma velocidade só mensurável em anos-luz, por cometas mantidos nas suas órbitas excêntricas pela força do corpo central. E isso não é uma simples comparação, como tampouco o seria a que define o organismo multicelular como um “Estado de células”. A cidade, o Estado, a comunidade social organizada segundo o princípio da divisão do trabalho não somente era comparável à vida orgânica, mas até a repetia exatamente. Da mesma forma repetia se no seio da natureza, na mais extrema redução, o macrocosmo estelar, cujos grupos, nebulosas, constelações, configurações, pairavam, empalidecidos pela lua, ante os olhos do nosso adepto, por cima do vale cintilante de neve. Não seria lícito pensar que certos planetas do sistema solar atômico – esses enxames e essas vias-lácteas de sistemas solares que compunham a matéria –, que um e outro desses corpos celestes do mundo interior se encontravam numa condição semelhante àquela que fazia da Terra uma sede da vida? Para um jovem adepto um tanto embriagado no seu íntimo, e cuja pele se achava num estado “anormal”, para um homem que já não estava completamente sem experiência no terreno das coisas proibidas, tal suposição não somente não era extravagante, mas até se impunha com uma insistência inelutável, parecendo evidente e tendo todo o cunho de lógica e de verdade. A “pequenez” dos corpos celestes do mundo interior seria uma objeção pouco incisiva, já que a medida do que era grande ou pequeno se perdia o mais tardar no momento em que se evidenciava o caráter cósmico das partes “minúsculas” da matéria, e os conceitos de “exterior” e “interior” igualmente viam abalada a sua solidez. O mundo do átomo era um “exterior”, ao passo que, provavelmente, o astro terrestre que habitamos era, organicamente considerado, um profundo “interior”. Não chegara certo sábio, nos seus sonhos audaciosos, a falar dos animais da Via-Láctea, monstros cósmicos, cuja carne, cujo esqueleto e cérebro se compunham de sistemas solares? Mas, se isso sucedia assim como se afigurava a Hans Castorp, tudo começava apenas no instante em que se imaginava ter alcançado o término. No fundo íntimo e mais remoto do seu ser, talvez se encontrasse, ele mesmo, o jovem Hans Castorp, mais uma vez, mais cem vezes, bem agasalhado, num compartimento de sacada com vista sobre a noite glacial e enluarada dos Alpes, a estudar a vida do corpo, com os dedos enregelados e as faces ardentes, sob o impulso de um interesse médico e humanista.
     A anatomia patológica, cujo manual ele segurava, inclinado para a luz vermelha da lampadazinha, informava-o, por meio de um texto entremeado de ilustrações, acerca da natureza da aglomeração parasítica de células e dos tumores infecciosos. Eram formas de tecidos – formas de caráter especialmente exuberante – provocadas pela irrupção de células estranhas num organismo que se mostrara acolhedor e de algum modo – talvez seja preciso dizer: de um modo um tanto perverso – oferecia condições favoráveis ao seu crescimento. O mal não era que o parasita privasse de alimentos o tecido circundante; mas, no decorrer do metabolismo peculiar a toda célula, produzia ele combinações orgânicas surpreendentemente tóxicas e inevitavelmente perniciosas. Conseguira-se isolar e apresentar, sob uma forma concentrada, as toxinas de alguns microrganismos e causara surpresa ver quão minúsculas doses dessas substâncias, que eram simples combinações de albumina, bastavam para originar os mais perigosos fenômenos de envenenamento e a mais rapace perdição, quando introduzidas na circulação de um animal. A aparência exterior dessa corrupção era a de uma excrescência dos tecidos, o tumor patológico, que constituía a reação das células contra o estímulo exercido pelos bacilos estabelecidos entre elas. Formavam-se nódulos do tamanho de grãos de painço, compostos de células cuja estrutura se parecia com a dos tecidos das mucosas, e entre as quais, ou nas quais, se instalavam os bacilos; algumas dessas células, extraordinariamente ricas em protoplasma, tornavam-se gigantescas e multinucleares. Mas essa exuberância conduzia a uma rápida ruína, pois que os núcleos dessas células monstruosas começavam logo a se atrofiar e a se decompor, estragando-se o seu protoplasma em virtude da coagulação; novas zonas do tecido vizinho eram invadidas por aquela irritação estranha; fenômenos de inflamação iam se alastrando e atacavam os vasos adjacentes; os glóbulos brancos, irresistivelmente atraídos, encaminhavam-se ao local do desastre; progredia a morte por coagulação, e nesse ínterim os venenos solúveis das bactérias já haviam embriagado os centros nervosos; o organismo alcançara uma temperatura elevadíssima, e cambaleava, por assim dizer, com ânimo alegre, rumo à própria dissolução.
     Até esse ponto adiantava-se a patologia, a teoria da enfermidade, a acentuação da dor física, que, no entanto, como acentuação do elemento corporal, acentuava também a volúpia. A enfermidade era a forma licenciosa da vida. E a vida, por sua vez? Não passava ela, quiçá, de uma doença infecciosa da matéria, assim como aquilo que se podia denominar de geração espontânea da matéria talvez fosse apenas uma enfermidade, uma excrescência causada por uma irritação do imaterial? O início da marcha para o mal, para a voluptuosidade e para a morte dava-se, sem dúvida, no lugar onde, provocada pelo prurido de uma infiltração desconhecida, realizava-se aquela primeira condensação do espírito, aquela vegetação patologicamente exuberante do seu tecido, mescla de prazer e de repulsa, que constituía a fase mais primitiva do substancial, a transição do imaterial ao material. Eis o que era o pecado original. A segunda geração espontânea, a criação do orgânico pelo inorgânico já não era mais do que uma intensificação maligna do progresso do corpo em direção à consciência, da mesma forma que a enfermidade do organismo era um exagero ébrio e um relevo indecente da sua natureza física. A vida chegava a ser apenas o próximo passo no caminho aventuroso do espírito que se tornara impudico, o cálido reflexo do pudor da matéria que fora despertada à sensibilidade e se mostrara disposta a corresponder ao apelo...
     Montões de livros achavam-se empilhados na mesinha com a lâmpada. Um jazia no chão, ao lado da espreguiçadeira, sobre a esteira da sacada, e aquele que Hans Castorp estudara por último pesava-lhe sobre o estômago, oprimindo-o e embargando-lhe a respiração, sem que, entretanto, do córtex cerebral partissem aos músculos competentes ordens no sentido de o afastarem. O jovem lera a página até o fim, e seu queixo alcançara o peito. As pálpebras haviam se fechado espontaneamente por cima dos singelos olhos azuis. Via ele a imagem da vida, a estrutura dos seus membros florescentes, a beleza cuja portadora era a carne. Ela retirara as mãos da nuca; abria os braços, a cujo lado interior, antes de tudo sob a pele delicada da articulação do cotovelo, se desenhavam, azulados, os vasos de sangue, as duas ramificações das grandes veias, e esses braços eram de uma indizível doçura. A imagem aproximou-se dele, inclinou-se para ele, sobre ele. Hans Castorp sentiu-lhe o odor orgânico, sentiu-lhe o pulsar do coração. Alguma coisa quente e delicada enlaçou o pescoço de Hans Castorp, e enquanto ele, desfalecendo de volúpia e de angústia, pousava as mãos sobre o lado externo desses braços, ali onde a pele granulosa, tensa sobre o tricípite era de delicada frescura, sentiu nos lábios a úmida sucção de um beijo.

continua pág 187...
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Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Pesquisas (b)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

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