segunda-feira, 16 de junho de 2025

Massa e Poder - A Areia

Elias Canetti


A AREIA


      Das qualidades da areia que possuem importância no presente contexto, cumpre destacar especialmente duas. A primeira delas é a pequenez, a uniformidade de suas partes. Trata-se aí de uma só qualidade, uma vez que os grãos de areia somente são percebidos como uniformes por serem tão pequenos. A segunda é sua infinidade. Não se pode abrangê-la com os olhos: sua quantidade é sempre maior do que a que eles são capazes de perceber. Onde a areia apresenta-se em pequenos montes não se lhe dá atenção. Realmente notável ela se faz apenas quando incontável, como a areia do mar e a do deserto.
     O movimento incessante da areia faz com que ela se situe aproximadamente a meio caminho entre os símbolos de massa líquidos e os sólidos. Ela forma ondas como o mar e pode rodopiar no ar qual uma nuvem; o pó é uma areia ainda mais na. Uma sua característica significativa é o modo pelo qual a areia constitui uma ameaça, a maneira pela qual ela se apresenta ao indivíduo como algo agressivo e hostil. O caráter uniforme, gigantesco e inanimado do deserto coloca o homem diante de um poder quase insuperável, um poder composto de incontáveis partículas homogêneas. Tal poder o sufoca como o mar, mas de uma maneira mais astuciosa, porque mais demorada.
     A relação do homem com a areia do deserto antecipa algumas de suas atitudes futuras: a luta que, com um poder crescente, ele tem de travar contra enormes legiões de minúsculos inimigos. A secura da areia foi transferida para os gafanhotos. O homem que cultiva plantas os teme feito à areia: o que eles deixam para trás é o deserto.
     É de se admirar que a areia tenha podido algum dia tornar-se um símbolo da descendência. Mas o fato que tão bem conhecemos da Bíblia demonstra quão violento é o desejo de uma multiplicação gigantesca. A ênfase absolutamente não recai aí apenas sobre a qualidade. Decerto, o que se deseja para si é toda uma legião de filhos vigorosos e íntegros. No que se refere, porém, ao futuro mais distante, enquanto soma da vida de gerações, o que se quer é mais do que grupos ou legiões: quer-se uma massa de descendentes, e a maior, a mais extensa e incontável das massas que se conhece é a da areia. Em que pouca medida importa aí a valoração individual dos descendentes, tal é o que se depreende de um símbolo chinês equivalente. Os chineses equiparam os descendentes a uma nuvem de gafanhotos, e as qualidades do número, da coesão e da inseparabilidade destes tornam-se um modelo obrigatório para a descendência.
     Um outro símbolo para a descendência utilizado na Bíblia são as estrelas. Também aí o que importa é seu caráter incontável; não se fala da qualidade de estrelas isoladas e excepcionais. Mas que elas permaneçam, que jamais pereçam, que estejam sempre presentes, isso é importante.

continua página 134...
____________________

Leia também:

Massa e Poder - A Areia
____________________


ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
_______________________

Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

Nenhum comentário:

Postar um comentário