O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
5. A bem dizer, Varvára Ardaliónovna, em sua conversa com o irmão, exagerara
um pouco a veracidade das notícias relativas ao compromisso do príncipe para
com Agláia.
Talvez, como mulher de visão aguda, tivesse adivinhado o que estava para
acontecer em um futuro imediato; talvez, desapontada pelo fato do seu sonho (no
qual, contudo, nunca tinha acreditado, realmente), se ter esfumado, fosse ela
demasiado humana para se pagar essa decepção, destilando amargo veneno no
coração do irmão, exagerando a calamidade, apesar de o amar sinceramente e
se sentir triste por causa dele. Em todo o caso não obtivera tais informações com
suas amigas, as moças Epantchín; havia apenas conjeturas, meias palavras,
silêncios significativos e insinuações. Talvez até as irmãs de Agláia tagarelassem
um pouco com o fim de virem a saber qualquer coisa da própria Varvára
Ardaliónovna. Bem podia ser o caso que nem elas mesmas se pudessem privar
do prazer muito feminino de martirizar uma amiga, um pouco, mormente a
tendo conhecido desde a infância; não podiam deixar de ter pressentido, ao
menos por alto, o que essa amiga alvejava. Por outro lado o príncipe, também,
embora houvesse dito a verdade ao assegurar a Liébediev que não tinha nada
para lhe dizer e que nada de importante lhe acontecera, podia se ter enganado.
Algo de muito estranho certamente estava acontecendo a todos eles; nada tinha
acontecido e, todavia, ao mesmo tempo, muita coisa estava acontecendo. Varvára Ardaliónovna, com o seu infalível instinto feminino, adivinhara este
último fato.
É muito difícil, ainda assim, explicar de maneira categórica como foi
que todo o mundo na casa dos Epantchín foi ferido ao mesmo tempo pela mesma
ideia de que alguma coisa vital acontecia a Agláia e que o seu destino estava
sendo decidido. Mas assim que tal ideia relampejou sobre todos eles, logo se
puseram a insistir que tinham sentido desconfianças e previsto isso havia muito,
tudo se tendo clareado desde o episódio do “pobre cavaleiro” e até mesmo antes,
apenas se tendo dado o seguinte: que não tinham, àquela altura, querido acreditar
em coisa assim tão absurda. Foi o que as irmãs declararam; Lizavéta
Prokófievna, naturalmente, previra e soubera de tudo muito antes de qualquer
outra pessoa; e até, por isso, por muito tempo o seu coração tinha
doído.
Mas tivesse sabido cedo ou tarde, o fato foi que só pensar no príncipe se
lhe tornou insuportável porque a arremessou muito longe para fora daquilo com
que estava contando. Havia nisso uma pergunta que requeria uma imediata
resposta; mas não só era impossível respondê-la como também a pobre Lizavéta
Prokófievna, por mais que lutasse, não conseguia sequer ver claramente a
pergunta. O caso era mesmo difícil.
“Era o príncipe um bom partido, ou não? Era
tudo isso bom, ou não? Se não era uma coisa assim tão boa (e indubitavelmente
não era), por que modo não o era? E se, talvez, fosse uma boa coisa (o que
também era possível), por que modo o era, então?”
O próprio chefe da família,
Iván Fiódorovitch, ficou naturalmente mais surpreendido do que todos, mas,
imediatamente depois, confessou: “em verdade, sempre tive uma vaga suspeita
de tudo isso, agora como antes me parecia imaginar algo deste jaez”.
E recaiu
em silêncio ante os ameaçadores olhares da mulher; ficava calado, de manhã,
mas, à noite, a sós com ela, e compelido a explicar-se, repentinamente, com
desacostumado arrojo, saía-se com opiniões destas: “afinal de contas, pergunto
eu, que importância tem isso?” (Silêncio.) “Tudo isso seria muito estranho,
logicamente, se fosse verdadeiro, mas se ele nem toca nisso! (Silêncio, outra
vez.) “E por outro lado, se encararmos a coisa sem preconceitos, o príncipe é um
camarada encantador, palavra de honra, e... e, e - bem, o nome, o nome de
nossa família, tudo isso tem assim o ar de que quisemos levantar o nome de nossa
família que tinha decaído aos olhos do mundo, isto é, encarando sob este ponto de
vista, já que sabemos muito bem o que o mundo é. O mundo é o mundo! E, além
disso, o príncipe não deixa de ter fortuna, conquanto de segunda ordem: ter, lá
isso tem, e... e...” (prolongado silêncio e completo colapso).
Ao ouvir tais
palavras do marido, a cólera de Lizavéta Prokófievna ultrapassava todos os
limites. Na opinião dela tudo quanto tinha acontecido era “uma loucura
imperdoável e criminosa, uma espécie de alucinação fantástica, estúpida e
absurda!” Em primeiro lugar “este príncipe é um doente, um idiota e, em
segundo lugar - um louco. Nem sabe nada do mundo nem nele tem sequer um
lugar. A quem se poderia apresentá-lo, onde colocá-lo? Era uma espécie de
democrata incrível; não tinha arranjado sequer um emprego... e... que haveria de
dizer a princesa Bielokónskaia? E era esse, era esse, afinal, a espécie de marido
que haviam imaginado e planejado para Agláia?”
Este último argumento,
naturalmente, era o principal. Ante tal reflexão o coração materno estremecia,
sangrando e chorando, muito embora, ao mesmo tempo, qualquer coisa
palpitasse dentro dele, sussurrando:
Mas por que não é o príncipe o que desejavas?” E esse protesto do seu
próprio coração atormentava Lizavéta Prokófievna muito mais do que todo o
resto.
As irmãs de Agláia, por qualquer razão, ante o pensamento do príncipe, ficavam
contentes. Nem achavam estranho isso. E, resumindo, podiam a qualquer
momento ficar do lado dele, completamente. Mas ambas, lá consigo mesmas;
tinham decidido ficar quietas. Já fora notado na família, como uma regra
invariável, que quanto mais obstinadas e enfáticas fossem as oposições e as
objeções de Lizavéta Prokófievna em qualquer caso em discussão, mais certo
sinal seria isso de que ela já estava quase a concordar com todos.
Mas
Aleksándra não conseguiu ficar perfeitamente calada. A mãe, que desde muito a
tinha escolhido como conselheira, chamava-a a todo instante, servindo-se não só
de suas opiniões como de suas reminiscências; isto é, não se fartava com coisas
assim:
“Como foi que tudo isso se passou? Como foi que ninguém viu? Por que
foi que não me vieram dizer? Que negócio foi esse do tal horrendo pobre
cavaleiro? Por que havia de ser ela só, Lizavéta Prokófievna, a se incomodar
com tudo, a reparar e prever tudo, enquanto os outros não faziam mais do que
contar quantas vezes o galo cantava?”
E assim por diante.
Aleksándra, no
começo, se encolheu, acabando por dar razão à ideia do pai de que, aos olhos do
mundo, a escolha do Príncipe Míchkin como marido para uma das Epantchín
parecia muito satisfatória. E, pouco a pouco se inflamando, acabou por
acrescentar que o príncipe, de maneira alguma era um doido e nem nunca o
tinha sido; quanto a ter ou não importância - era impossível vir a saber- se de que
dependeria a importância de um homem decente, havia alguns anos para cá,
entre nós, na Rússia; se dos seus triunfos no serviço, o que era essencial, ou se de
alguma coisa mais. A tudo isso a mãe prontamente retorquia que ela, Aleksándra,
era uma “niilista” e que esse seu parecer era típico da sua noção quanto à
questão “feminista”.
Meia hora depois despachou-se para a cidade e de lá para a
ilha Kámennii para se encontrar com a Princesa Bielokónskaia que,
afortunadamente, aconteceu estar realmente, então, em Petersburgo, embora já
pronta para deixar a cidade.
A Princesa Bielokónskaia era a madrinha de Agláia.
A velha princesa escutou os jatos verbais febris e desesperados de Lizavéta
Prokófievna e absolutamente não se comoveu com as lágrimas dessa mãe
estonteada, chegando até a encará-la sarcasticamente. A velha dama era uma
déspota terrível; não consentiria nem às suas mais antigas amigas porém - se em
pé de igualdade com ela.
Considerava Lizavéta Prokófievna apenas como sua “protegida”, como o
fora havia já trinta e cinco anos antes, nunca se tendo podido reconciliar com a
precipitação e independência do seu caráter. Entre outras coisas observou que,
“como sempre, estavam eles precipitados e querendo transformar uma colina
em uma cadeia de montanhas; que, tanto quanto tinha ouvido, em nada ficava
convencida de que tivesse havido algo de sério, a bem dizer; e não seria, em tal
caso, melhor esperar até que sobreviesse alguma coisa de fato? Que o príncipe,
na sua opinião, era um jovem decente apesar de doentio, excêntrico e quase sem
importância. O único ponto mau, em tudo isso, é que ele mantinha uma amante”.
A Sra. Epantchiná logo se deu conta de que a princesa estava ressentida com eles
porque Evguénii Pávlovitch, que por ela lhes fora apresentado, tinha fracassado.
Voltou a Pávlovsk em um estado de irritação ainda maior do que aquele em que
estava, e descompôs todo o mundo, de uma vez, baseando-se em que “todos
tinham ficado malucos” e que as coisas não eram feitas assim por ninguém,
exceto eles.
“Por que estavam com essa precipitação? Que é que tinha
acontecido? Tanto quanto eu possa ver, não aconteceu nada ainda! Esperem até
que sobrevenha algo ponderável! Afinal, Iván Fiódorovitch está sempre a
imaginar coisas e a transformar outeiros em cordilheiras!”
A conclusão disso era que deviam ficar calmos, esperar, e olhar tudo friamente.
Mas, ai dela! A calma não durou nem dez minutos.
O primeiro golpe no seu rosto
foram as notícias do que tinha acontecido durante a sua ausência, quando fora à
Ilha Kámennii. (A visita da Sra. Epantchiná se dera no dia seguinte ao em que o
príncipe fora pagar a visita deles, cerca da meia-noite em vez das nove horas.)
Em resposta às impacientes perguntas maternas, responderam as irmãs
minuciosamente, começando por declararem que nada de mais tinha acontecido
durante a ausência dela”; que o príncipe tinha vindo e demorado; que, por mais
de meia hora, Agláia ficara sem descer para vê-lo mas que acabara por descer e
logo convidara o príncipe para jogar xadrez; mas que o príncipe não sabia como
se jogava aquilo, tendo Agláia logo se aborrecido dele; mas que, como estava
muito animada, zombara de tal ignorância, ao que ele ficou muito envergonhado;
riu-se ela pavorosamente, a tal ponto que até dava pena olhar-se para ele, tendo
ela então sugerido jogarem cartas. E que jogaram duraki, tendo então acontecido
o oposto, pois o príncipe jogava aquilo de maneira prodigiosa, como um
professor; que, mesmo Agláia trapaceando e mudando de baralho e furtando no
nariz dele, ainda assim ele ganhara todas as cinco vezes que ela dera cartas. Que
Agláia “subiu a serra”, quase perdendo a
compostura, tendo dito tais coisas mordazes e horrendas ao príncipe que ele
deixou de rir e ficou inteiramente pálido, principalmente quando ela lhe disse, por
fim, “que não poria o pé na sala enquanto ele estivesse lá” e que positivamente
era sem propósito vir ele visitá-las de noite, depois da meia- noite, depois de tudo
quanto tinha acontecido. E que batera com a porta e saíra. Que o príncipe se fora
como de um funeral, apesar de todos os esforços das duas para o consolarem. E
que então, inesperadamente, um quarto de hora depois que o príncipe saíra,
Agláia desceu às carreiras para a varanda, sem mesmo ter tido o cuidado de
enxugar os olhos ainda molhados de lágrimas. Descera porque Kólia tinha
chegado, trazendo um ouriço. E todas começaram logo a espiar o ouriço. Kólia
explicou que o ouriço não era dele; que saíra a passear com um colega de escola,
Kóstia Liébediev; que esse tinha ficado lá fora e estava com vergonha de entrar
porque carregava uma machadinha; que haviam comprado o ouriço e a
machadinha de um camponês que encontraram. O camponês vendera o ouriço
por cinquenta copeques, tendo eles tentado persuadi-lo a vender também a
machadinha porque “não precisava dela”, e que era uma boa machadinha. E
logo Agláia começou a instar com Kólia para que lhe vendesse o ouriço, ficando
muito animada e chegando até a chamá-lo de “querido”. Por muito tempo Kólia
não quis atendê-la até que por fim correu até Kóstia Liébediev e o intimou a vir;
de fato aquele viera, com machadinha e tudo, mas muito encabulado. E eis que
então ficou esclarecido que o ouriço não era deles, absolutamente; pertencia a
um outro, a um terceiro garoto, chamado Petróv, que entregara dinheiro aos dois
para comprarem a História de Schlosser, para ele, de um quarto garoto que,
precisando de dinheiro, vendia barato. Que tinham ido pois comprar a História de
Schlosser, mas haviam acabado por não resistir e comprado o ouriço! De
maneira que o ouriço e a machadinha pertenciam ao terceiro garoto a quem os
iam levar em vez da História de Schlosser. Mas tanto Agláía insistiu que
acabaram decidindo vender-lhe o ouriço. Logo que Agláía comprou o ouriço, o
colocou, com a ajuda de Kólia, em um cesto de vime, cobrindo-o com um
guardanapo; e então começou ela a instar com Kólia para levar aquilo para o
príncipe, da parte dela, pedindo que aceitasse como um sinal do seu profundo
respeito”. Kólia anuiu, radiante, e prometeu fazê-lo sem falta, mas logo começou
a amolá-la para saber “que é que o ouriço representava a ponto de fazer dele um
presente”. Agláia respondeu que ele não tinha nada com isso. Retrucou ele que
estava convencido que havia naquilo alguma alegoria. Agláia, zangando-se,
correra atrás dele, chamando-o de “confiado”. Kólia respondeu logo que se não
fosse o respeito que tinha pelo sexo feminino e, mais ainda, pelo que chamou de
“convicções próprias”, lhe mostraria ali mesmo, imediatamente, como sabia
responder a tais insultos. Contudo acabou Kólia indo levar o ouriço, muito
satisfeito, com Kóstia Liébediev a correr atrás dele. Vendo Agláia que Kólia
sacudia demais o cesto, o chamou lá na varanda, advertindo-o: “Por favor, não
vá derrubar, Kólia querido!”, como se um minuto antes não tivesse estado a
brigar com ele. Kólia parara. E também ele, como se não tivesse estado a xingá-la antes, exclamou com a maior justeza: “Não derrubo não, Agláia Ivánovna,
fique descansada”, retornando a correr com a maior velocidade. Depois do que,
Agláia se pusera a rir tremendamente. E subira muito contente para o seu quarto,
tendo o resto do tempo ficado na melhor índole.
continua página 461...
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