segunda-feira, 16 de junho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (5a) - A bem dizer

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
5.


      A bem dizer, Varvára Ardaliónovna, em sua conversa com o irmão, exagerara um pouco a veracidade das notícias relativas ao compromisso do príncipe para com Agláia. Talvez, como mulher de visão aguda, tivesse adivinhado o que estava para acontecer em um futuro imediato; talvez, desapontada pelo fato do seu sonho (no qual, contudo, nunca tinha acreditado, realmente), se ter esfumado, fosse ela demasiado humana para se pagar essa decepção, destilando amargo veneno no coração do irmão, exagerando a calamidade, apesar de o amar sinceramente e se sentir triste por causa dele. Em todo o caso não obtivera tais informações com suas amigas, as moças Epantchín; havia apenas conjeturas, meias palavras, silêncios significativos e insinuações. Talvez até as irmãs de Agláia tagarelassem um pouco com o fim de virem a saber qualquer coisa da própria Varvára Ardaliónovna. Bem podia ser o caso que nem elas mesmas se pudessem privar do prazer muito feminino de martirizar uma amiga, um pouco, mormente a tendo conhecido desde a infância; não podiam deixar de ter pressentido, ao menos por alto, o que essa amiga alvejava. Por outro lado o príncipe, também, embora houvesse dito a verdade ao assegurar a Liébediev que não tinha nada para lhe dizer e que nada de importante lhe acontecera, podia se ter enganado. Algo de muito estranho certamente estava acontecendo a todos eles; nada tinha acontecido e, todavia, ao mesmo tempo, muita coisa estava acontecendo. Varvára Ardaliónovna, com o seu infalível instinto feminino, adivinhara este último fato.
     É muito difícil, ainda assim, explicar de maneira categórica como foi que todo o mundo na casa dos Epantchín foi ferido ao mesmo tempo pela mesma ideia de que alguma coisa vital acontecia a Agláia e que o seu destino estava sendo decidido. Mas assim que tal ideia relampejou sobre todos eles, logo se puseram a insistir que tinham sentido desconfianças e previsto isso havia muito, tudo se tendo clareado desde o episódio do “pobre cavaleiro” e até mesmo antes, apenas se tendo dado o seguinte: que não tinham, àquela altura, querido acreditar em coisa assim tão absurda. Foi o que as irmãs declararam; Lizavéta Prokófievna, naturalmente, previra e soubera de tudo muito antes de qualquer outra pessoa; e até, por isso, por muito tempo o seu coração tinha doído.
     Mas tivesse sabido cedo ou tarde, o fato foi que só pensar no príncipe se lhe tornou insuportável porque a arremessou muito longe para fora daquilo com que estava contando. Havia nisso uma pergunta que requeria uma imediata resposta; mas não só era impossível respondê-la como também a pobre Lizavéta Prokófievna, por mais que lutasse, não conseguia sequer ver claramente a pergunta. O caso era mesmo difícil.

 “Era o príncipe um bom partido, ou não? Era tudo isso bom, ou não? Se não era uma coisa assim tão boa (e indubitavelmente não era), por que modo não o era? E se, talvez, fosse uma boa coisa (o que também era possível), por que modo o era, então?”

     O próprio chefe da família, Iván Fiódorovitch, ficou naturalmente mais surpreendido do que todos, mas, imediatamente depois, confessou: “em verdade, sempre tive uma vaga suspeita de tudo isso, agora como antes me parecia imaginar algo deste jaez”.
     E recaiu em silêncio ante os ameaçadores olhares da mulher; ficava calado, de manhã, mas, à noite, a sós com ela, e compelido a explicar-se, repentinamente, com desacostumado arrojo, saía-se com opiniões destas: “afinal de contas, pergunto eu, que importância tem isso?” (Silêncio.) “Tudo isso seria muito estranho, logicamente, se fosse verdadeiro, mas se ele nem toca nisso! (Silêncio, outra vez.) “E por outro lado, se encararmos a coisa sem preconceitos, o príncipe é um camarada encantador, palavra de honra, e... e, e - bem, o nome, o nome de nossa família, tudo isso tem assim o ar de que quisemos levantar o nome de nossa família que tinha decaído aos olhos do mundo, isto é, encarando sob este ponto de vista, já que sabemos muito bem o que o mundo é. O mundo é o mundo! E, além disso, o príncipe não deixa de ter fortuna, conquanto de segunda ordem: ter, lá isso tem, e... e...” (prolongado silêncio e completo colapso).
     Ao ouvir tais palavras do marido, a cólera de Lizavéta Prokófievna ultrapassava todos os limites. Na opinião dela tudo quanto tinha acontecido era “uma loucura imperdoável e criminosa, uma espécie de alucinação fantástica, estúpida e absurda!” Em primeiro lugar “este príncipe é um doente, um idiota e, em segundo lugar - um louco. Nem sabe nada do mundo nem nele tem sequer um lugar. A quem se poderia apresentá-lo, onde colocá-lo? Era uma espécie de democrata incrível; não tinha arranjado sequer um emprego... e... que haveria de dizer a princesa Bielokónskaia? E era esse, era esse, afinal, a espécie de marido que haviam imaginado e planejado para Agláia?”
     Este último argumento, naturalmente, era o principal. Ante tal reflexão o coração materno estremecia, sangrando e chorando, muito embora, ao mesmo tempo, qualquer coisa palpitasse dentro dele, sussurrando: Mas por que não é o príncipe o que desejavas?” E esse protesto do seu próprio coração atormentava Lizavéta Prokófievna muito mais do que todo o resto.
     As irmãs de Agláia, por qualquer razão, ante o pensamento do príncipe, ficavam contentes. Nem achavam estranho isso. E, resumindo, podiam a qualquer momento ficar do lado dele, completamente. Mas ambas, lá consigo mesmas; tinham decidido ficar quietas. Já fora notado na família, como uma regra invariável, que quanto mais obstinadas e enfáticas fossem as oposições e as objeções de Lizavéta Prokófievna em qualquer caso em discussão, mais certo sinal seria isso de que ela já estava quase a concordar com todos.
     Mas Aleksándra não conseguiu ficar perfeitamente calada. A mãe, que desde muito a tinha escolhido como conselheira, chamava-a a todo instante, servindo-se não só de suas opiniões como de suas reminiscências; isto é, não se fartava com coisas assim:

“Como foi que tudo isso se passou? Como foi que ninguém viu? Por que foi que não me vieram dizer? Que negócio foi esse do tal horrendo pobre cavaleiro? Por que havia de ser ela só, Lizavéta Prokófievna, a se incomodar com tudo, a reparar e prever tudo, enquanto os outros não faziam mais do que contar quantas vezes o galo cantava?”

     E assim por diante.
     Aleksándra, no começo, se encolheu, acabando por dar razão à ideia do pai de que, aos olhos do mundo, a escolha do Príncipe Míchkin como marido para uma das Epantchín parecia muito satisfatória. E, pouco a pouco se inflamando, acabou por acrescentar que o príncipe, de maneira alguma era um doido e nem nunca o tinha sido; quanto a ter ou não importância - era impossível vir a saber- se de que dependeria a importância de um homem decente, havia alguns anos para cá, entre nós, na Rússia; se dos seus triunfos no serviço, o que era essencial, ou se de alguma coisa mais. A tudo isso a mãe prontamente retorquia que ela, Aleksándra, era uma “niilista” e que esse seu parecer era típico da sua noção quanto à questão “feminista”. 
     Meia hora depois despachou-se para a cidade e de lá para a ilha Kámennii para se encontrar com a Princesa Bielokónskaia que, afortunadamente, aconteceu estar realmente, então, em Petersburgo, embora já pronta para deixar a cidade. 
     A Princesa Bielokónskaia era a madrinha de Agláia.
     A velha princesa escutou os jatos verbais febris e desesperados de Lizavéta Prokófievna e absolutamente não se comoveu com as lágrimas dessa mãe estonteada, chegando até a encará-la sarcasticamente. A velha dama era uma déspota terrível; não consentiria nem às suas mais antigas amigas porém - se em pé de igualdade com ela. 
     Considerava Lizavéta Prokófievna apenas como sua “protegida”, como o fora havia já trinta e cinco anos antes, nunca se tendo podido reconciliar com a precipitação e independência do seu caráter. Entre outras coisas observou que, “como sempre, estavam eles precipitados e querendo transformar uma colina em uma cadeia de montanhas; que, tanto quanto tinha ouvido, em nada ficava convencida de que tivesse havido algo de sério, a bem dizer; e não seria, em tal caso, melhor esperar até que sobreviesse alguma coisa de fato? Que o príncipe, na sua opinião, era um jovem decente apesar de doentio, excêntrico e quase sem importância. O único ponto mau, em tudo isso, é que ele mantinha uma amante”.
     A Sra. Epantchiná logo se deu conta de que a princesa estava ressentida com eles porque Evguénii Pávlovitch, que por ela lhes fora apresentado, tinha fracassado.
      Voltou a Pávlovsk em um estado de irritação ainda maior do que aquele em que estava, e descompôs todo o mundo, de uma vez, baseando-se em que “todos tinham ficado malucos” e que as coisas não eram feitas assim por ninguém, exceto eles.

“Por que estavam com essa precipitação? Que é que tinha acontecido? Tanto quanto eu possa ver, não aconteceu nada ainda! Esperem até que sobrevenha algo ponderável! Afinal, Iván Fiódorovitch está sempre a imaginar coisas e a transformar outeiros em cordilheiras!”

     A conclusão disso era que deviam ficar calmos, esperar, e olhar tudo friamente. Mas, ai dela! A calma não durou nem dez minutos.
     O primeiro golpe no seu rosto foram as notícias do que tinha acontecido durante a sua ausência, quando fora à Ilha Kámennii. (A visita da Sra. Epantchiná se dera no dia seguinte ao em que o príncipe fora pagar a visita deles, cerca da meia-noite em vez das nove horas.)
     Em resposta às impacientes perguntas maternas, responderam as irmãs minuciosamente, começando por declararem que nada de mais tinha acontecido durante a ausência dela”; que o príncipe tinha vindo e demorado; que, por mais de meia hora, Agláia ficara sem descer para vê-lo mas que acabara por descer e logo convidara o príncipe para jogar xadrez; mas que o príncipe não sabia como se jogava aquilo, tendo Agláia logo se aborrecido dele; mas que, como estava muito animada, zombara de tal ignorância, ao que ele ficou muito envergonhado; riu-se ela pavorosamente, a tal ponto que até dava pena olhar-se para ele, tendo ela então sugerido jogarem cartas. E que jogaram duraki, tendo então acontecido o oposto, pois o príncipe jogava aquilo de maneira prodigiosa, como um professor; que, mesmo Agláia trapaceando e mudando de baralho e furtando no nariz dele, ainda assim ele ganhara todas as cinco vezes que ela dera cartas. Que Agláia “subiu a serra”, quase perdendo a compostura, tendo dito tais coisas mordazes e horrendas ao príncipe que ele deixou de rir e ficou inteiramente pálido, principalmente quando ela lhe disse, por fim, “que não poria o pé na sala enquanto ele estivesse lá” e que positivamente era sem propósito vir ele visitá-las de noite, depois da meia- noite, depois de tudo quanto tinha acontecido. E que batera com a porta e saíra. Que o príncipe se fora como de um funeral, apesar de todos os esforços das duas para o consolarem. E que então, inesperadamente, um quarto de hora depois que o príncipe saíra, Agláia desceu às carreiras para a varanda, sem mesmo ter tido o cuidado de enxugar os olhos ainda molhados de lágrimas. Descera porque Kólia tinha chegado, trazendo um ouriço. E todas começaram logo a espiar o ouriço. Kólia explicou que o ouriço não era dele; que saíra a passear com um colega de escola, Kóstia Liébediev; que esse tinha ficado lá fora e estava com vergonha de entrar porque carregava uma machadinha; que haviam comprado o ouriço e a machadinha de um camponês que encontraram. O camponês vendera o ouriço por cinquenta copeques, tendo eles tentado persuadi-lo a vender também a machadinha porque “não precisava dela”, e que era uma boa machadinha. E logo Agláia começou a instar com Kólia para que lhe vendesse o ouriço, ficando muito animada e chegando até a chamá-lo de “querido”. Por muito tempo Kólia não quis atendê-la até que por fim correu até Kóstia Liébediev e o intimou a vir; de fato aquele viera, com machadinha e tudo, mas muito encabulado. E eis que então ficou esclarecido que o ouriço não era deles, absolutamente; pertencia a um outro, a um terceiro garoto, chamado Petróv, que entregara dinheiro aos dois para comprarem a História de Schlosser, para ele, de um quarto garoto que, precisando de dinheiro, vendia barato. Que tinham ido pois comprar a História de Schlosser, mas haviam acabado por não resistir e comprado o ouriço! De maneira que o ouriço e a machadinha pertenciam ao terceiro garoto a quem os iam levar em vez da História de Schlosser. Mas tanto Agláía insistiu que acabaram decidindo vender-lhe o ouriço. Logo que Agláía comprou o ouriço, o colocou, com a ajuda de Kólia, em um cesto de vime, cobrindo-o com um guardanapo; e então começou ela a instar com Kólia para levar aquilo para o príncipe, da parte dela, pedindo que aceitasse como um sinal do seu profundo respeito”. Kólia anuiu, radiante, e prometeu fazê-lo sem falta, mas logo começou a amolá-la para saber “que é que o ouriço representava a ponto de fazer dele um presente”. Agláia respondeu que ele não tinha nada com isso. Retrucou ele que estava convencido que havia naquilo alguma alegoria. Agláia, zangando-se, correra atrás dele, chamando-o de “confiado”. Kólia respondeu logo que se não fosse o respeito que tinha pelo sexo feminino e, mais ainda, pelo que chamou de “convicções próprias”, lhe mostraria ali mesmo, imediatamente, como sabia responder a tais insultos. Contudo acabou Kólia indo levar o ouriço, muito satisfeito, com Kóstia Liébediev a correr atrás dele. Vendo Agláia que Kólia sacudia demais o cesto, o chamou lá na varanda, advertindo-o: “Por favor, não vá derrubar, Kólia querido!”, como se um minuto antes não tivesse estado a brigar com ele. Kólia parara. E também ele, como se não tivesse estado a xingá-la antes, exclamou com a maior justeza: “Não derrubo não, Agláia Ivánovna, fique descansada”, retornando a correr com a maior velocidade. Depois do que, Agláia se pusera a rir tremendamente. E subira muito contente para o seu quarto, tendo o resto do tempo ficado na melhor índole.
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (5a) -  A bem dizer
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