em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Primeira Parte
Primeira Parte
Depois, ouviu-me. Ao nome de Leroy-Beaulieu, o Sr. de Norpois me encarou com ar suspeito. Imaginei que ele talvez tivesse dito ao Sr. Leroy-Beaulieu algo desfavorável a meu pai, e temia que o economista o houvesse repetido. E logo pareceu animado de verdadeira afeição por meu pai. E, após uma dessas lentidões de conversa onde subitamente uma palavra explode, como que a contragosto de quem fala, quando a irresistível convicção arrebata os esforços balbuciantes que fazia por se manter calado:
- Não, não - disse-me emocionado -; não convém que seu pai se candidate. Não deve
candidatar-se no -seu próprio interesse, por si mesmo, por respeito a seu valor, que é grande e
que ele comprometeria em tal aventura. Ele vale mais que isso. Caso fosse nomeado, teria tudo a
perder e nada a ganhar. Graças a Deus, ele não é orador. E isso é a única coisa a contar para os
meus caros confrades, ainda quando o que se diz não passa de ninharias. Seu pai tem um
objetivo importante na vida; deve caminhar diretamente para ele, sem se deixar desviar pelos
bosques, mesmo que sejam os do jardim de Academo, mais espinhosos que floridos. Além disso,
obteria apenas uns poucos votos. A Academia gosta de obrigar o postulante a um estágio antes
de admiti-lo em seu meio. Hoje em dia, nada se pode fazer. Mais tarde, não afirmo. Mas é
necessário que seja a própria Companhia que vá buscá-lo. Ela pratica com mais fetichismo do que
felicidade o fará dos nossos vizinhos de além-Alpes. Leroy-Beaulieu falou-me de tudo isso de uma
forma que não me agradou. Aliás, pareceu-me mais ou menos defender a candidatura de seu pai.
Eu talvez lhe tenha feito sentir um tanto vivamente que, acostumado a lidar com algodão e metais,
ele desconhecia o papel dos imponderáveis, como dizia Bismarck. O que, antes de tudo, é preciso
evitar, é que seu pai se candidate: Principüs obsta. Seus amigos se veriam numa posição delicada
se ele os pusesse diante do fato consumado. Olhe - disse bruscamente, com um ar de franqueza,
cravando em mim os olhos azuis -, vou lhe dizer uma coisa que vai espantá-lo de minha parte, eu
que tanto aprecio a seu pai. Pois bem, justamente porque o estimo (somos os dois inseparáveis,
Arcades ambos), justamente porque conheço os serviços que ele pode prestar ao país, os recifes
que pode evitar se permanecer no leme, por afeto, por estima elevada, por patriotismo, não
votaria nele. De resto, julgo ter-lhe dado a entender isso mesmo. - (E acreditei perceber em seus
olhos o perfil assírio e severo de Leroy-Beaulieu.) - Portanto, dar-lhe o meu voto seria, de minha
parte, uma espécie de palinódia. - Por diversas vezes, o Sr. de Norpois chamou seus colegas de
fósseis. Fora outras razões, todo membro de um clube ou de uma academia compraz-se em
atribuir aos colegas o tipo de caráter mais oposto ao seu, menos pela vantagem de poder dizer:
"Ah, se isso só dependesse de mim!", do que pela satisfação de apresentar o título que obteve
como mais difícil e lisonjeiro. - Eu lhe direi - concluiu o Sr. de Norpois - que, no interesse dele e de
todos os seus, prefiro para seu pai uma eleição triunfal dentro de dez ou quinze anos. - Palavras
que foram julgadas por mim, se não ditadas pelo ciúme, ao menos por uma falta absoluta de
obsequiosidade e que depois assumiram, pelos próprios fatos, um sentido diverso.
- O senhor não pretende falar acerca do Instituto do Preço do Pão durante a Fronda?
perguntou o historiador da Fronda, timidamente, ao Sr. de Norpois. - Poderia com isso obter um
êxito considerável - (o que significava fazer-me uma publicidade monstro) -, acrescentou, sorrindo
para o embaixador com pusilanimidade, mas também com uma ternura que o fez erguer as
pálpebras e descerrar os olhos, grandes como um céu. Parecia-me já ter visto esse olhar; no
entanto, somente hoje conhecera o historiador. De súbito, lembrei-me: havia visto esse mesmo
olhar nos olhos de um médico brasileiro que pretendia curar as sufocações do gênero das que eu
tinha por meio de absurdas inalações de essências vegetais. E como, para que tomasse mais
cuidado pela minha pessoa, lhe dissesse que conhecia o professor Cottard, respondera-me como
no interesse de Cottard:
- Pois eis aí um tratamento que, se o senhor lhe falasse nele, iria fornecer-lhe assunto para
uma sensacional comunicação à Academia de Medicina! - Não ousara insistir, mas olhara-me com
aquele mesmo ar de interrogação tímido, interessado e suplicante que eu acabara de admirar no
historiador da Fronda. Certamente esses dois homens não se conheciam e não se pareciam em
nada, mas as leis psicológicas possuem, como as leis físicas, uma certa generalidade. E, se as
condições necessárias são as mesmas, um mesmo olhar ilumina animais humanos diversos,
como um mesmo céu matinal a lugares da terra situados bem longe um do outro, e que nunca se
viram entre si. Não ouvi a resposta do embaixador, pois todos, com algum rumor, se aproximaram
da Sra. de Villeparisis para vê-la pintar.
- Sabe de quem estamos falando, Basin? - perguntou a duquesa ao marido.
- Naturalmente adivinho. - disse o duque.
- Ah, não é o que chamamos uma comediante de alta linhagem.
- O senhor nunca poderia imaginar algo tão risível - continuou a Sra. de Guermantes,
dirigindo-se ao Sr. de Argencourt.
- Era até drolático - interrompeu o Sr. de Guermantes, cujo estranho vocabulário permitia
lhe, a um tempo, não ser considerado um tolo pelas pessoas da sociedade, e ser tido, pelos
homens de letras, como o pior dos imbecis.
- Não posso compreender - retornou a duquesa - como Robert pôde chegar a se apaixonar
por ela. Oh, sei muito bem que nunca se deve discutir tais coisas - acrescentou com um belo
muxoxo de filósofa e de sentimental desencantada. - Sei que qualquer um pode amar seja o que
for; - e acrescentou, porque, se ainda zombava da nova literatura, esta, talvez pela vulgarização
dos jornais ou através de certas conversas, nela se infiltrara um pouco - é isso mesmo o que há
de bonito no amor, porque é justamente o que o torna "misterioso".
- Misterioso! Ah, confesso que é um pouco forte para mim, minha prima. - disse o conde de
Argencourt.
- Mas sim, é muito misterioso o amor - replicou a duquesa, com um doce sorriso de amável
mulher mundana, mas também com a convicção intransigente de uma wagneriana que afirma, a
um homem do seu círculo, que não há somente barulho em A Valquíria. Aliás, no fundo, não se
sabe por que uma pessoa ama a outra; talvez não seja, em absoluto, devido ao que imaginamos
aduziu ela sorrindo, repelindo assim, de um golpe, com sua interpretação, a ideia que ela própria
acabara de externar. - E depois, no fundo, nunca se sabe de coisa alguma. - concluiu, com ar
cético e fatigado. - Assim, olhe, é mais "inteligente": nunca se deve discutir a escolha dos
amantes.
Mas, depois de ter firmado esse princípio, traiu-o imediatamente ao criticar a escolha de
Saint-Loup.
- Mesmo assim, vejam, julgo espantoso que se possa achar sedutora uma pessoa ridícula.
Bloch, ouvindo que falávamos de Saint-Loup e compreendendo que ele se encontrava em
Paris, pôs-se a dizer tanto mal dele que todos ficaram revoltados. Começava a nutrir ódios e via
se que, para saciá-los, não recuaria diante de nada. Tendo estabelecido o princípio de que
possuía um alto valor moral, e que o tipo de pessoas que frequentava a Boulie (círculo esportivo
que ele acreditava ser elegante) merecia o cárcere, pareciam-lhe meritórios todos os golpes que
pudesse lhes dar. Certa ocasião, chegou a falar de um processo que pretendia abrir contra um de
seus amigos da Boulie. No decurso desse processo, contava fazer um depoimento mentiroso e
cuja falsidade, no entanto, o acusado não teria condições de provar. Desse modo, Bloch, que
aliás não pôs em execução o seu projeto, pensava transtorná-lo e levá-lo ao desespero. Que mal
havia nisso, já que aquele a quem desejava ferir de tal maneira era um homem que só pensava na
elegância, um homem da Boulie, e que contra semelhantes pessoas todas as armas são válidas,
sobretudo da parte de um santo como ele, Bloch?
- Entretanto, veja - a Sra. Swann objetou o Sr. de Argencourt, o qual, acabando enfim por
compreender o sentido das palavras da prima, estava impressionado com a sua justeza e buscava
na memória o exemplo de pessoas que se houvessem apaixonado por gente que não lhe
agradava.
- Ah, ela não está exatamente no mesmo caso - protestou a duquesa. - Seria mesmo de
espantar, pois tratava-se de uma perfeita imbecil, mas não era ridícula e foi bonita.
- Hum, hum - resmungou a Sra. de Villeparisis.
- Ah, não a achava bonita? Mas ela tinha coisas encantadoras, lindos olhos, lindos
cabelos, vestia-se e veste-se ainda admiravelmente. Agora, reconheço que é imunda, mas foi uma
criatura deslumbrante. O que não me dá menos desgosto de que Charles tenha se casado com
ela, pois foi algo totalmente inútil. -
A duquesa não julgava ter dito nada de notável, mas, como o Sr. de Argencourt se pôs a
rir, repetiu a frase, seja por achá-la engraçada, seja apenas por achar amável o homem que ria, a
quem se pôs a olhar com expressão carinhosa, para acrescentar o encanto da doçura ao do
espírito. Ela continuou:
- Sim, não é verdade? Não vale a pena, mas enfim ela não era desprovida de encantos, e
eu compreendo perfeitamente que a amassem, ao passo que a garota de Robert, asseguro-lhes
que é de matar de rir. Bem sei que me podem retrucar com a velha lenga-lenga de Augier: "Que
importa o frasco, desde que eu me embriague?" Muito bem, Robert talvez esteja embriagado, mas
na verdade não mostrou bom gosto na escolha da garrafa! Antes de tudo, imaginem que ela teve
a pretensão de fazer com que eu levantasse uma escadaria em pleno salão. Coisa sem
importância, não é mesmo? E me anunciou que ficaria deitada de bruços nos degraus. Ademais,
se tivessem ouvido o que ela recitava! Conheço apenas uma cena, mas não creio que se possa
imaginar algo parecido: chama-se As Sete Princesas.
- As Sete Princesas, oh, que esnobismo! - exclamou o Sr. de Argencourt. - Mas espere, eu
conheço a peça inteira. O autor a enviou ao rei, que nada entendeu e me pediu que a explicasse.
- Não é por acaso do Sr Peladan? - perguntou o historiador da Fronda, com uma intenção
de finura e atualidade, mas tão baixo que a pergunta passou despercebida.
- Ah, o senhor conhece As Sete Princesas? - replicou a duquesa ao Sr. de Argencourt. -
Meus cumprimentos! Eu só conheço uma, mas essa me tirou a curiosidade de conhecer as outras
seis. Se forem todas iguais à que vi!
"Que tola!", pensei, irritado com a fria acolhida que me fizera. Sentia uma espécie de rude
contentamento ao constatar a sua completa incompreensão de Maeterlinck. "É por uma mulher
assim que, todas as manhãs, percorro tantos quilômetros! Sou até bom demais! Agora, sou eu
quem não quer mais saber dela." Tais eram as palavras que eu me dizia; eram o oposto do meu
pensamento; eram puras palavras de conversação, como as que dizemos nesses momentos em
que, agitados demais para permanecer sozinhos com nós mesmos, sentimos a necessidade de,
na falta de outro interlocutor, conversar conosco, sem sinceridade, como com um estranho.
- Não posso lhe dar uma ideia - continuou a duquesa. - Aquilo era da gente se torcer de
riso. Não deixaram de fazê-lo, e até demais, pois a mulherzinha não gostou disso, e no fundo
Robert sempre me quis mal pelo que aconteceu. O que aliás não lastimo, pois, se tudo tivesse
corrido bem, a garota voltasse, quem sabe; e eu me pergunto até que ponto isso teria agradado a
Marie-Aynard.
Assim era chamada na família a mãe de Robert, a Sra. de Marsantes, viúva de Aynard de
Saint-Loup, para distingui-la de sua prima, a princesa de Guermantes-Baviere, outra Maria, a cujo
prenome os sobrinhos, primos e cunhados acrescentavam, para evitar confusão, ora o prenome
do marido, ora um de seus outros prenomes, o que resultava em Marie-Gilbert ou Marie-Hedwige.
- Em primeiro lugar, houve na véspera uma espécie de ensaio que foi uma beleza!
prosseguiu ironicamente a Sra. de Guermantes. - Imaginem que ela recitava uma frase, nem
mesmo isso, um quarto de frase, e depois parava; não dizia mais nada durante cinco minutos.
Sem exagero!
- Oh! Oh! Oh! - exclamou o Sr. de Argencourt. - Com toda a polidez do mundo, permiti-me
insinuar que aquilo talvez espantasse um pouco. E ela me respondeu textualmente: "É sempre
necessário dizer uma coisa como se a gente mesma a estivesse compondo." Se refletirem nisso,
verão que é monumental essa resposta.
- Mas eu julgava que ela não recitava mal os versos - disse um dos dois rapazes.
- Ela nem desconfia do que é isso - respondeu a Sra. de Guermantes. - Em todo caso, não
precisei ouvi-la. Bastou-me vê-la chegar com os lírios! Logo percebi que ela não tinha talento,
quando vi os lírios!
Todos riram.
- Minha tia, não me levou a mal o gracejo de outro dia a respeito da rainha da Suécia?
Venho lhe pedir perdão.
- Não, não te quero mal por isso; dou-te até o direito de comer, se estás com fome.
- Vamos, Sr. Valleneres, banque a mocinha da casa - disse a Sra. de Villeparisis ao
arquivista, segundo um gracejo consagrado.
O Sr. de Guermantes se endireitou na poltrona onde se afundara, o chapéu a seu lado
sobre o tapete, examinou com ar satisfeito os pratos de sequilhos que lhe eram apresentados.
- Mas, com muito gosto; agora que começo a ficar familiarizado com esta nobre
assistência, aceitarei um pudim; parecem excelentes.
- O senhor desempenha às maravilhas o seu papel de mocinha da casa - disse o Sr. de
Argencourt que, por espírito de imitação, repetiu o gracejo da Sra. de Villeparisis.
O arquivista apresentou o prato com sequilhos ao historiador da Fronda.
- O senhor cumpre às maravilhas as suas funções - disse este por timidez e para tentar
ganhar a simpatia geral.
Assim, lançou um olhar furtivo de conivência àqueles que já tinham feito como ele.
- Diga-me, minha boa tia - perguntou o Sr. de Guermantes à Sra. de Villeparisis -, quem é
aquele senhor bastante simpático, que ia saindo quando eu entrava? Devo conhecê-lo, porque me
fez um grande cumprimento, mas não o reconheci; a senhora sabe, eu me confundo com os
nomes, o que é bem desagradável. - concluiu com ar de satisfação.
- O Sr. Legrandin.
- Ah, mas Oriane tem uma prima cuja mãe, se não me engano, é Grandin de nascimento.
Sei muito bem, são os Grandin de I'Épervier.
- Não respondeu a Sra. de Villeparisis -, não há relação nenhuma. Estes são Grandin
simplesmente. Grandin de absolutamente nada. Mas só querem sê-lo de tudo o que se possa
imaginar. A irmã deste se chama Sra. de Cambremer.
- Ora, Basin, você sabe muito bem a quem a minha tia está se referindo - exclamou a
duquesa com indignação -; é o irmão daquele enorme herbívoro que você teve a estranha ideia de
mandar me visitar outro dia. Ela ficou uma hora; pensei que fosse enlouquecer. Mas já comecei
imaginando que ela é que era louca, ao ver entrar em minha casa uma pessoa a quem não
conhecia e que parecia uma vaca.
- Escute, Oriane, ela me perguntou qual era o seu dia de recepção; e eu não podia ser
grosseiro; e depois, ora, você exagera; ela não parece uma vaca - acrescentou com ar queixoso,
mas não sem lançar furtivamente um olhar risonho à assistência.
Sabia ele que a verve da esposa precisava ser estimulada pela contradição, a contradição
do bom-senso que protesta, por exemplo, que não se pode tomar uma mulher por uma vaca (era
assim que a Sra. de Guermantes, encarecendo uma primeira imagem, chegava muitas vezes a
produzir seus ditos mais espirituosos). E, ingenuamente, o duque se apresentava, sem parecê-lo,
para ajudá-la a concluir o jogo, como, num vagão, o parceiro inconfesso de um jogador que faz
um truque de cartas.
- Reconheço que ela não parece uma vaca, pois parece muitas! - exclamou a Sra. de
Guermantes. - Juro que estava muito embaraçada ao ver aquele rebanho de vacas que entrava
de chapéu no meu salão, e que me perguntava como é que eu ia. De um lado, tinha vontade de
lhe responder: "Mas, rebanho de vacas, você confunde, você não pode ter relações comigo, pois
é um rebanho de vacas"; e, de outro lado, tendo procurado na minha memória, acabei por julgar
que a sua Cambremer era a infanta Dorothée, que tinha dito que viria certa vez e que também era
bastante bovina, de modo que estive quase para dizer Vossa Alteza real e falar na terceira pessoa
majestática a um rebanho de vacas. Ela também tem o tipo de papada da rainha da Suécia. Aliás,
aquele ataque a viva força fora preparado por um tiro a distância, de acordo com todas as regras
da arte. Desde não sei quanto tempo, eu era bombardeada com seus cartões, encontrava-os por
toda a parte, em todos os móveis, como prospectos. Ignorava o objetivo dessa publicidade. Em
minha casa só se via "Marquês e Marquesa de Cambremer" com um endereço do qual já não me
lembro e de que, aliás, estou resolvida a nunca utilizar.
- Mas é muito lisonjeiro parecer-se com uma rainha - disse o historiador da Fronda.
- Oh, meu Deus! Senhor, os reis e as rainhas já não valem grande coisa no nosso tempo
disse o Sr. de Guermantes, porque tinha a pretensão de ser um espírito liberal e moderno, e
também para não dar a impressão de levar muito em conta as relações reais, com que muito se
preocupava.
Bloch e o Sr. de Norpois, que haviam se erguido, encontraram-se mais perto de nós.
- Senhor - disse a Sra. de Villeparisis -, falou-lhe do Caso Dreyfus?
O Sr. de Norpois ergueu os olhos para o céu, porém sorrindo, como para atestar a
enormidade dos caprichos aos quais a sua Dulcinéia lhe impunha o dever de obedecer. Não
obstante, falou a Bloch, com muita afabilidade, dos anos terríveis, talvez fatais, que a França
atravessava. Como isso provavelmente significava que o Sr. de Norpois (a quem Bloch todavia
dissera acreditar na inocência de Dreyfus) fosse ardentemente anti-dreyfusista, a amabilidade do
embaixador, o jeito que aparentava ao dar razão ao seu interlocutor, de não duvidar que fossem
da mesma opinião, de ligar-se em cumplicidade com ele para arrasar com o governo, lisonjeavam
a vaidade de Bloch e excitavam sua curiosidade. Quais eram os pontos importantes, que o Sr. de
Norpois não especificava, mas sobre os quais parecia admitir, implicitamente, que Bloch e ele
estavam de acordo, que opinião teria assim acerca do Caso, que pudesse reuni-los? Bloch tanto
mais se espantava do acordo misterioso que parecia existir entre ele e o Sr. de Norpois, por ser
um acordo só de natureza política, visto que a Sra. de Villeparisis falara longamente ao Sr. de
Norpois sobre os trabalhos literários de Bloch.
- O senhor não é do seu tempo disse a este o antigo embaixador -; e por isso eu o felicito;
o senhor não pertence a este tempo em que os estudos desinteressados já não existem, onde só
se vendem ao público inépcias ou obscenidades. Esforços tais como o seu deveriam ser
estimulados se tivéssemos um governo.
Bloch sentia-se lisonjeado por sobrenadar sozinho no naufrágio universal. Mas ainda aí
desejaria precisões, saber de que inépcias falava o Sr. de Norpois. Bloch tinha o sentimento de
trabalhar no mesmo sentido que muitos, não se julgara tão excepcional. Retornou ao Caso
Dreyfus, mas não pôde destrinçar a opinião do Sr. de Norpois. Tentou fazê-lo falar dos oficiais
cujo nome volta e meia aparecia nos jornais naquele momento; provocavam mais curiosidade que
os homens da política envolvidos no mesmo Caso, porque não eram já conhecidos como estes, e,
numa vestimenta especial, do fundo de uma vida diferente e de um silêncio religiosamente
conservado, apenas acabavam de surgir e de falar, como Lohengrin descendo de uma barca
conduzida por um cisne. Graças a um advogado nacionalista a quem conhecia, Bloch pudera
assistir a várias audiências do processo Zola. Lá chegava pela manhã, para só sair à tardinha,
com uma provisão de sanduíches e uma garrafa de café, como no concurso geral ou nas
composições de bacharelado, e, como essa mudança de hábitos despertasse a excitação nervosa
que o café e as emoções do processo alçavam ao cúmulo, ele saía dali de tal forma enamorado
de tudo o que se passara que, à noitinha, chegando em casa, queria mergulhar novamente no
belo sonho e corria para encontrar, num restaurante frequentado pelos dois partidos,
companheiros com quem voltava a falar incessantemente sobre o que acontecera durante o dia, e
reparava, com uma ceia encomendada num tom imperioso que lhe dava a ilusão do poder, o
jejum e as canseiras de um dia começado tão cedo e no qual não tinha almoçado. O homem,
jogando perpetuamente entre os dois planos da experiência e da imaginação, gostaria de
aprofundar a vida ideal das pessoas que conhece e conhecer as criaturas cuja vida teve de
imaginar. As perguntas de Bloch, o Sr. de Norpois respondeu:
- Há dois oficiais envolvidos no processo em curso, e de quem ouvi falar antigamente
através de um homem cujo parecer inspirava-me grande confiança e que deles fazia uma alta
ideia, o Sr. de Miribel; são o tenente-coronel Henry e o tenente-coronel Picquart.
- Mas! - exclamou Bloch -, a divina Atena, filha de Zeus, pôs no espírito de um o contrário
do que está no espírito do outro. E eles lutam um contra o outro, como dois leões. O coronel
Picquart desfrutava de uma alta posição no exército, mas a sua Moira o levou para o lado que não
é o seu. A espada dos nacionalistas cortará seu corpo delicado, e ele servirá de pasto aos animais
carniceiros e aos pássaros que se nutrem da gordura dos mortos.
O Sr. de Norpois não respondeu.
- De que falam eles a um canto? - indagou o Sr. de Guermantes à Sra. de Villeparisis,
apontando o Sr. de Norpois e Bloch.
- Do Caso Dreyfus.
- Ah, diabo! A propósito, sabia quem é partidário ferrenho de Dreyfus? Aposto como não
adivinha. Meu sobrinho Robert! Pois lhe digo que no Jockey, quando souberam dessas proezas,
foi uma revolta, uma indignação geral. Como vai ser proposto para sócio daqui a oito dias...
- Evidentemente - interrompeu a duquesa -, se são todos como Gilbert, que sempre
sustentou que todos os judeus deveriam ser despachados para Jerusalém.
- Ah, então o príncipe de Guermantes está perfeitamente de acordo com as minhas ideias
interrompeu o Sr. de Argencourt.
O duque se orgulhava da esposa, mas não a amava. Muito presunçoso, detestava ser
interrompido e, além disso, em casa se habituara a ser brutal com ela. Fremido de uma dupla
cólera de mau marido de palavra cortada e de bom falador a quem não ouvem, parou de súbito e
lançou à duquesa um olhar que constrangeu a todos.
- Que história é essa de falar de Gilbert e de Jerusalém? - perguntou afinal. - Não se trata
disso. Mas - acrescentou em tom mais suave - você há de confessar que, se um dos nossos fosse
recusado pelo Jockey, e sobretudo Robert, cujo pai foi seu presidente durante dez anos, seria o
cúmulo. Que quer, minha cara? A coisa alarmou essa gente, ficaram de olhos arregalados; não
posso culpá-los. Sabe que não alimento, pessoalmente, nenhum preconceito racial; acho que é
coisa ultrapassada e tenho a pretensão de acompanhar o meu tempo. Mas enfim, que diabo!
Quando alguém se chama marquês de Saint-Loup, não pode ser dreyfusista; que quer que eu lhe
diga?!
continua na página 104...
________________
________________
Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Depois, ouviu-me)
Volume 7
Nenhum comentário:
Postar um comentário