Hannah Arendt
Parte I
ANTISSEMITISMO
Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória.
Roger Martin du Gard
2.5 - A idade de Ouro da Segurança
Somente duas décadas separam o declínio temporário dos movimentos antissemitas da deflagração da
Primeira Grande Guerra. Esse período tem sido adequadamente descrito como a "Idade de Ouro da
Segurança".[60] Apenas poucos sentiram a sua fraqueza, própria da estrutura política obsoleta que, a
despeito de todas as profecias de colapso iminente, continuava a funcionar em glória espúria e com
inexplicável e monótona teimosia. Lado a lado, conseguiam sobreviver, em aparente estabilidade, um
despotismo anacrônico na Rússia, uma burocracia corrupta na Áustria, um estúpido militarismo na
Alemanha e uma república hesitante, em contínua crise, na França — todos eles à sombra do poder
mundial do Império Britânico. Nenhum desses governos era muito popular, e todos tinham de enfrentar
crescente oposição doméstica; mas em parte alguma parecia existir genuíno desejo político no sentido de
mudança radical das condições políticas. A Europa estava demasiado ocupada em expandir-se
economicamente para que qualquer nação ou camada social levasse a sério as questões políticas. Tudo
podia continuar, porque ninguém se importava. Ou, nas palavras penetrantes de Chesterton, "a existência
de tudo está se prolongando ao negar que ainda existe".[61]
O rápido crescimento da capacidade industrial e econômica produziu constante enfraquecimento dos
fatores puramente políticos, enquanto as forças econômicas tornavam-se dominantes na luta internacional
pelo poder. Pensava-se que o poder fosse sinônimo de capacidade econômica, até que se descobriu que as
capacidades econômica e industrial são apenas seus pré-requisitos modernos. Até certo ponto, o poder
econômico podia levar os governos à submissão, porque estes tinham tanta fé na economia quanto os
simples homens de negócio, que haviam conseguido convencê-los de que os meios de violência do Estado
deviam ser usados exclusivamente para a proteção dos interesses comerciais e da propriedade nacional.
Durante certo tempo, uns trezentos homens, todos conhecidos uns dos outros, tinham nas mãos os
destinos do mundo, como observou Walter Rathenau. Esse esquisito estado de coisas durou exatamente
até 1914, quando, pelo próprio fato da guerra, desmoronou a confiança das massas no caráter providencial
da expansão econômica.
Os judeus iludiram-se mais com as aparências da idade de ouro da segurança do que qualquer outra
facção de povos europeus. O antissemitismo parecia pertencer ao passado; quanto mais os governos
perdiam em poder e prestígio, menos atenção davam aos judeus. À medida que se reduzia a importância
do Estado, a representação política tendia a tornar-se uma espécie de palco teatral de qualidade variada, até que na Áustria o próprio teatro tornou-se foco da vida nacional, uma
instituição certamente mais significativa do que o Parlamento. A aparência teatral do mundo político
havia se tornado tão patente que o teatro suplantava esse mundo em vários aspectos da realidade.
A crescente influência dos grandes negociantes sobre o Estado e a necessidade decrescente do Estado em
relação aos serviços prestados pelos judeus ameaçavam extinguir o banqueiro judeu e forçavam os judeus
a mudanças ocupacionais. O primeiro sinal do declínio dos bancos judeus foi a perda de prestígio e poder
dentro das comunidades judaicas. Já não eram bastante fortes para centralizar e, até certo ponto,
monopolizar a riqueza geral judia. Os judeus abandonavam cada vez mais as finanças estatais em favor de
negócios independentes. Das entregas de alimentos e roupas para os exércitos e governos nasceu o
comércio judaico de alimentos e cereais e as indústrias de roupas, em que eles logo se destacariam em
todos os países: lojas de penhor e armazéns gerais em pequenas cidades do interior onde se podia
encontrar de tudo, foram os predecessores das grandes lojas de departamentos nas cidades. Isso não
significa que a relação entre os judeus e os governos cessou de existir, mas envolvia menos indivíduos, de
forma que, no fim desse período, refez-se o quadro do início: alguns indivíduos judeus mantêm posições
financeiras importantes, sendo pequena ou nenhuma a sua conexão com as camadas mais largas da classe
média judaica.
Mais importante que a expansão dos judeus comerciantes independentes foi outra mudança na estrutura
ocupacional. As comunidades judaicas da Europa central e ocidental haviam atingido um ponto de
saturação em matéria de riqueza e sucesso econômico. Esse poderia ter sido o momento para os judeus
demonstrarem o desejo do dinheiro pelo amor ao dinheiro ou ao poder. No primeiro caso, poderiam ter
expandido os seus negócios para legá-los aos seus descendentes; no segundo, poderiam ter-se firmado
mais nos negócios estatais para reforçar a sua influência sobre o governo. Não fizeram nem uma coisa
nem outra. Pelo contrário, os filhos dos negociantes prósperos, e, em menor escala, dos banqueiros,
abandonavam as carreiras dos seus pais em troca de profissões liberais ou atividades puramente
intelectuais, luxo ao qual não poderiam ter aspirado algumas gerações antes. O que o Estado-nação tanto
temera no passado — o surgimento de uma intelligentsia judia — passou a ocorrer agora num ritmo
rápido. A afluência dos judeus filhos de pais ricos para as ocupações culturais foi especialmente marcante
na Alemanha e na Áustria, e as instituições culturais, na área jornalística, editorial, musical e teatral, se tornaram em grande proporção empreendimentos judeus.
Assim, a tradicional preferência e respeito dos judeus pelas ocupações intelectuais resultou num
verdadeiro rompimento com as tradições judaicas e na assimilação intelectual e nacional de importantes
camadas judaicas da Europa central e ocidental. Politicamente, esse fenômeno indicava que os judeus se
emancipavam da proteção do Estado, adquiriam consciência dos laços que os uniam aos seus
concidadãos, enquanto afrouxava consideravelmente a união intereuropeia entre os judeus. Socialmente, os intelectuais judeus foram os primeiros que, como grupo,
necessitavam e almejavam obter acesso à sociedade não-judaica. A discriminação social, que significava
tão pouco para os seus pais, indiferentes às relações com os gentios, tomou-se problema de vital
importância para eles.
Em busca de uma estrada que os levasse à sociedade, esse grupo foi forçado a adotar padrões de conduta
social estabelecidos por indivíduos judeus que haviam sido aceitos na sociedade durante o século XIX,
como exceções à regra da discriminação. Descobriram rapidamente a força que abria todas as portas — o
"poder irradiante da Fama" (Stefan Zweig) — tornada irresistível pelos séculos da idolatria do gênio. Essa
busca da fama pelos judeus distinguia-se da idolatria geral da fama pelo fato de que os judeus não se
interessavam pela fama para si mesmos. Viver na aura da fama era para eles mais importante do que
tornar-se famosos; e assim eles se tomaram eminentes críticos, comentaristas, colecionadores e
organizadores de tudo que era famoso. O "poder irradiante" era uma força social muito real, através da
qual podiam estabelecer um lar os que socialmente eram destituídos de lar. Em outras palavras, os
intelectuais judeus tentaram, e até certo ponto conseguiram, tornar-se laços vivos que uniam indivíduos
famosos numa sociedade de renomados — por definição, uma sociedade internacional, pois as conquistas
espirituais transcendem as fronteiras nacionais. A debilitação geral dos fatores políticos, que décadas
antes haviam provocado uma situação em que a realidade e a aparência, a realidade política e a encenação
teatral podiam facilmente parodiar-se uma à outra, permitia-lhes agora tornarem-se representantes de uma
nebulosa sociedade internacional na qual os preconceitos nacionais não mais pareciam válidos. E, por
paradoxal que fosse, essa sociedade internacional parecia ser a única que reconhecia a nacionalização e a
assimilação de seus membros judeus; era muito mais fácil para um judeu austríaco ser aceito como
austríaco na França do que na Áustria. A espúria cidadania mundial dessa geração, essa nacionalidade
fictícia que sublinhavam sempre quando se mencionava sua origem judaica, já fazia lembrar aqueles
passaportes que, mais tarde, davam ao portador o direito de passear em qualquer país, menos naquele que
os emitia.
Por sua própria natureza, essas circunstâncias não podiam levar os judeus à proeminência, justamente
quando suas atividades, sua satisfação e felicidade no mundo das aparências demonstravam que, como
grupo, não desejavam realmente nem dinheiro nem poder. Enquanto os estadistas e jornalistas sérios
preocupavam-se com a questão judaica menos do que em qualquer época desde a emancipação, e
enquanto o antissemitismo quase que desaparecera da cena política, os judeus tornaram-se símbolo grupai
da Sociedade e objeto de ódio de todos aqueles a quem a sociedade não aceitava. O antissemitismo, tendo
perdido seu suporte com o desaparecimento das condições especiais que haviam influenciado seu
desenvolvimento durante o século XIX, podia ser livremente elaborado por charlatães e loucos naquela
estranha mistura de meias verdades e fantásticas superstições que emergiu na Europa depois de 1914,
tornando-se a ideologia de todos os elementos frustrados e ressentidos.
Como a questão judaica, em seu aspecto social, tomou-se catalisadora de intranquilidade social, até que,
finalmente, a sociedade desintegrada recristalizou-se ideologicamente em torno de um possível massacre
de judeus, é necessário esboçar alguns dos principais traços da história social da comunidade dos judeus
emancipados na sociedade burguesa do século passado.
continua página 62...
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Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.5)
[60] A expressão è de Stefan Zweig, em sua autobiografia intitulada (Die Welt von Gestern [O mundo de ontem].
[61] Maravilhosa imagem do estado de coisas na Grã-Bretanha é descrita por G. K. Chesterton em The return of Don
Quixote, publicado em 1927, embora "planejado e parcialmente escrito antes da guerra".
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