quinta-feira, 19 de junho de 2025

Hannah Arendt - Origens do Totalitarismo: Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.5)

Origens do Totalitarismo

Hannah Arendt

Parte I 
ANTISSEMITISMO

Este é um século extraordinário, que começa com a Revolução e termina com o Caso Dreyfus. Talvez ele venha a ser conhecido como o século da escória. 
 Roger Martin du Gard

continuando... 

     2.5 - A idade de Ouro da Segurança 
          Somente duas décadas separam o declínio temporário dos movimentos antissemitas da deflagração da Primeira Grande Guerra. Esse período tem sido adequadamente descrito como a "Idade de Ouro da Segurança".[60] Apenas poucos sentiram a sua fraqueza, própria da estrutura política obsoleta que, a despeito de todas as profecias de colapso iminente, continuava a funcionar em glória espúria e com inexplicável e monótona teimosia. Lado a lado, conseguiam sobreviver, em aparente estabilidade, um despotismo anacrônico na Rússia, uma burocracia corrupta na Áustria, um estúpido militarismo na Alemanha e uma república hesitante, em contínua crise, na França — todos eles à sombra do poder mundial do Império Britânico. Nenhum desses governos era muito popular, e todos tinham de enfrentar crescente oposição doméstica; mas em parte alguma parecia existir genuíno desejo político no sentido de mudança radical das condições políticas. A Europa estava demasiado ocupada em expandir-se economicamente para que qualquer nação ou camada social levasse a sério as questões políticas. Tudo podia continuar, porque ninguém se importava. Ou, nas palavras penetrantes de Chesterton, "a existência de tudo está se prolongando ao negar que ainda existe".[61]
     O rápido crescimento da capacidade industrial e econômica produziu constante enfraquecimento dos fatores puramente políticos, enquanto as forças econômicas tornavam-se dominantes na luta internacional pelo poder. Pensava-se que o poder fosse sinônimo de capacidade econômica, até que se descobriu que as capacidades econômica e industrial são apenas seus pré-requisitos modernos. Até certo ponto, o poder econômico podia levar os governos à submissão, porque estes tinham tanta fé na economia quanto os simples homens de negócio, que haviam conseguido convencê-los de que os meios de violência do Estado deviam ser usados exclusivamente para a proteção dos interesses comerciais e da propriedade nacional. Durante certo tempo, uns trezentos homens, todos conhecidos uns dos outros, tinham nas mãos os destinos do mundo, como observou Walter Rathenau. Esse esquisito estado de coisas durou exatamente até 1914, quando, pelo próprio fato da guerra, desmoronou a confiança das massas no caráter providencial da expansão econômica.
     Os judeus iludiram-se mais com as aparências da idade de ouro da segurança do que qualquer outra facção de povos europeus. O antissemitismo parecia pertencer ao passado; quanto mais os governos perdiam em poder e prestígio, menos atenção davam aos judeus. À medida que se reduzia a importância do Estado, a representação política tendia a tornar-se uma espécie de palco teatral de qualidade variada, até que na Áustria o próprio teatro tornou-se foco da vida nacional, uma instituição certamente mais significativa do que o Parlamento. A aparência teatral do mundo político havia se tornado tão patente que o teatro suplantava esse mundo em vários aspectos da realidade.
     A crescente influência dos grandes negociantes sobre o Estado e a necessidade decrescente do Estado em relação aos serviços prestados pelos judeus ameaçavam extinguir o banqueiro judeu e forçavam os judeus a mudanças ocupacionais. O primeiro sinal do declínio dos bancos judeus foi a perda de prestígio e poder dentro das comunidades judaicas. Já não eram bastante fortes para centralizar e, até certo ponto, monopolizar a riqueza geral judia. Os judeus abandonavam cada vez mais as finanças estatais em favor de negócios independentes. Das entregas de alimentos e roupas para os exércitos e governos nasceu o comércio judaico de alimentos e cereais e as indústrias de roupas, em que eles logo se destacariam em todos os países: lojas de penhor e armazéns gerais em pequenas cidades do interior onde se podia encontrar de tudo, foram os predecessores das grandes lojas de departamentos nas cidades. Isso não significa que a relação entre os judeus e os governos cessou de existir, mas envolvia menos indivíduos, de forma que, no fim desse período, refez-se o quadro do início: alguns indivíduos judeus mantêm posições financeiras importantes, sendo pequena ou nenhuma a sua conexão com as camadas mais largas da classe média judaica.
     Mais importante que a expansão dos judeus comerciantes independentes foi outra mudança na estrutura ocupacional. As comunidades judaicas da Europa central e ocidental haviam atingido um ponto de saturação em matéria de riqueza e sucesso econômico. Esse poderia ter sido o momento para os judeus demonstrarem o desejo do dinheiro pelo amor ao dinheiro ou ao poder. No primeiro caso, poderiam ter expandido os seus negócios para legá-los aos seus descendentes; no segundo, poderiam ter-se firmado mais nos negócios estatais para reforçar a sua influência sobre o governo. Não fizeram nem uma coisa nem outra. Pelo contrário, os filhos dos negociantes prósperos, e, em menor escala, dos banqueiros, abandonavam as carreiras dos seus pais em troca de profissões liberais ou atividades puramente intelectuais, luxo ao qual não poderiam ter aspirado algumas gerações antes. O que o Estado-nação tanto temera no passado — o surgimento de uma intelligentsia judia — passou a ocorrer agora num ritmo rápido. A afluência dos judeus filhos de pais ricos para as ocupações culturais foi especialmente marcante na Alemanha e na Áustria, e as instituições culturais, na área jornalística, editorial, musical e teatral, se tornaram em grande proporção empreendimentos judeus.
     Assim, a tradicional preferência e respeito dos judeus pelas ocupações intelectuais resultou num verdadeiro rompimento com as tradições judaicas e na assimilação intelectual e nacional de importantes camadas judaicas da Europa central e ocidental. Politicamente, esse fenômeno indicava que os judeus se emancipavam da proteção do Estado, adquiriam consciência dos laços que os uniam aos seus concidadãos, enquanto afrouxava consideravelmente a união intereuropeia entre os judeus. Socialmente, os intelectuais judeus foram os primeiros que, como grupo, necessitavam e almejavam obter acesso à sociedade não-judaica. A discriminação social, que significava tão pouco para os seus pais, indiferentes às relações com os gentios, tomou-se problema de vital importância para eles.
     Em busca de uma estrada que os levasse à sociedade, esse grupo foi forçado a adotar padrões de conduta social estabelecidos por indivíduos judeus que haviam sido aceitos na sociedade durante o século XIX, como exceções à regra da discriminação. Descobriram rapidamente a força que abria todas as portas — o "poder irradiante da Fama" (Stefan Zweig) — tornada irresistível pelos séculos da idolatria do gênio. Essa busca da fama pelos judeus distinguia-se da idolatria geral da fama pelo fato de que os judeus não se interessavam pela fama para si mesmos. Viver na aura da fama era para eles mais importante do que tornar-se famosos; e assim eles se tomaram eminentes críticos, comentaristas, colecionadores e organizadores de tudo que era famoso. O "poder irradiante" era uma força social muito real, através da qual podiam estabelecer um lar os que socialmente eram destituídos de lar. Em outras palavras, os intelectuais judeus tentaram, e até certo ponto conseguiram, tornar-se laços vivos que uniam indivíduos famosos numa sociedade de renomados — por definição, uma sociedade internacional, pois as conquistas espirituais transcendem as fronteiras nacionais. A debilitação geral dos fatores políticos, que décadas antes haviam provocado uma situação em que a realidade e a aparência, a realidade política e a encenação teatral podiam facilmente parodiar-se uma à outra, permitia-lhes agora tornarem-se representantes de uma nebulosa sociedade internacional na qual os preconceitos nacionais não mais pareciam válidos. E, por paradoxal que fosse, essa sociedade internacional parecia ser a única que reconhecia a nacionalização e a assimilação de seus membros judeus; era muito mais fácil para um judeu austríaco ser aceito como austríaco na França do que na Áustria. A espúria cidadania mundial dessa geração, essa nacionalidade fictícia que sublinhavam sempre quando se mencionava sua origem judaica, já fazia lembrar aqueles passaportes que, mais tarde, davam ao portador o direito de passear em qualquer país, menos naquele que os emitia.
     Por sua própria natureza, essas circunstâncias não podiam levar os judeus à proeminência, justamente quando suas atividades, sua satisfação e felicidade no mundo das aparências demonstravam que, como grupo, não desejavam realmente nem dinheiro nem poder. Enquanto os estadistas e jornalistas sérios preocupavam-se com a questão judaica menos do que em qualquer época desde a emancipação, e enquanto o antissemitismo quase que desaparecera da cena política, os judeus tornaram-se símbolo grupai da Sociedade e objeto de ódio de todos aqueles a quem a sociedade não aceitava. O antissemitismo, tendo perdido seu suporte com o desaparecimento das condições especiais que haviam influenciado seu desenvolvimento durante o século XIX, podia ser livremente elaborado por charlatães e loucos naquela estranha mistura de meias verdades e fantásticas superstições que emergiu na Europa depois de 1914, tornando-se a ideologia de todos os elementos frustrados e ressentidos.
     Como a questão judaica, em seu aspecto social, tomou-se catalisadora de intranquilidade social, até que, finalmente, a sociedade desintegrada recristalizou-se ideologicamente em torno de um possível massacre de judeus, é necessário esboçar alguns dos principais traços da história social da comunidade dos judeus emancipados na sociedade burguesa do século passado.

Parte I Antissemitismo (2. Os Judeus. O Estado-Nação e o nascimento do antissemitismo: 2.5)
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[60] A expressão è de Stefan Zweig, em sua autobiografia intitulada (Die Welt von Gestern [O mundo de ontem].
[61] Maravilhosa imagem do estado de coisas na Grã-Bretanha é descrita por G. K. Chesterton em The return of Don Quixote, publicado em 1927, embora "planejado e parcialmente escrito antes da guerra".

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