A Montanha Mágica
Capítulo V
.
continuando...
Era difícil aconselhá-lo. Os primos ponderaram que se deveria levar em conta a excelente
técnica cirúrgica do conselheiro áulico. Concordaram em deixar a decisão ao velho Rotbein, que
já se achava a caminho. Quando se despediram, o jovem Fritz voltou a chorar um pouquinho; as
lágrimas que vertia, embora só fossem produto da sua debilidade, formavam um contraste
singular com a seca objetividade da sua maneira de pensar e de falar. Rogou aos primos que
repetissem a visita, o que eles prometeram de bom grado. Mas não tiveram ocasião de fazê-lo. O
fabricante de bonecos chegou na mesma noite, e logo na manhã seguinte realizou-se a operação,
depois da qual o jovem Fritz não se achava num estado que lhe permitisse receber visitas. E dois
dias após, Hans Castorp, ao passar em companhia de Joachim pelo quarto de Rotbein, viu que ali
se fazia uma faxina. A Irmã Berta, com a sua maleta, já saíra do Berghof, porque fora chamada
com urgência para cuidar de um novo moribundo em outro estabelecimento. Suspirando, com o
cordão do pince-nez atrás da orelha, encaminhara-se para ali, visto ser precisamente essa a única
perspectiva que se lhe abria. Um quarto “abandonado”, um quatro livre, submetido a uma
limpeza geral, com ambas as portas abertas e com os móveis empilhados uns sobre os outros,
como podiam ver os que passassem por ele a caminho da sala de refeições ou tia saída – um
quarto nessas condições oferecia um aspecto significativo e todavia tão costumeiro que mal
impressionava as pessoas, e ainda menos a quem um dia se apossara de um quarto que acabava
de ser “desocupado” e desinfetado dessa forma, e criara raízes nele. Às vezes se sabia quem
acabava de ocupar o respectivo número, coisa que então dava o que pensar. Isso aconteceu no
referido caso, como também oito dias depois, quando Hans Castorp, passando pelo aposento da
pequena Gerngross, deparou com ele no mesmo estado. Dessa vez, seu espírito se opôs, de
início, a aceitar o sentido da atividade que ali reinava. Deteve-se a olhar, pensativo e consternado,
no momento em que o Dr. Behrens o encontrou por casualidade.
– Eu estava olhando a faxina – disse Hans Castorp. – Bom dia, senhor conselheiro. A
pequena Leila...
– Pois é! – disse Behrens, dando de ombros. Depois de um instante de silêncio, que
permitiu a esse gesto produzir o seu efeito, acrescentou: – Pouco antes do final, o senhor ainda se
apressou a cortejá-la segundo a regra, não é? Acho muito gentil da sua parte que demonstre
algum interesse aos pobres dos pulmões assobiantes nas suas gaiolas, tanto mais que o senhor
pessoalmente anda mais ou menos forte. É um traço simpático do seu caráter. Sim, senhor! Não
o negue, é um traço muito simpático. Gostaria, talvez, que de vez em quando eu o apresentasse a
outros? Tenho lá uma porção de passarinhos, caso o senhor queira vê-los. Agora, por exemplo,
vou visitar a minha “abarrotada”. Quer me acompanhar? Vou apresentá-lo simplesmente como
um companheiro de infortúnio.
Hans Castorp disse que o conselheiro se adiantara às suas palavras e lhe oferecera
justamente o que lhe desejava pedir. Aproveitaria a licença com a maior gratidão e seguiria o
doutor. Mas quem era essa tal “abarrotada”? Como se devia interpretar essa palavra?
– Literalmente – respondeu o médico. – De um modo textual, sem a menor metáfora.
Deixe que ela mesma lhe conte a história. – Ao cabo de poucos passos chegaram ao quarto da
“abarrotada”. O conselheiro áulico atravessou a dupla porta e mandou Hans Castorp esperar um
instante. O som de risadas e palavras opressas pela falta de fôlego, mas claras e alegres, ressoou
do quarto, quando da entrada de Behrens, para ser logo interceptado pelas portas. E o visitante
compassivo tornou a ouvir esse som, quando, poucos minutos após, foi admitido e o Dr.
Behrens o apresentou a uma senhora loura, estendida na cama, e que fixava curiosamente no
jovem os olhos azuis. Com algumas almofadas nas costas, achava-se entre sentada e deitada.
Muito irrequieta, ria-se sem cessar, embora lhe faltasse o fôlego; era um riso cascateante, muito
agudo e argentino, nervoso e como que originado por meio de cócegas. Riu-se também das frases
com que o conselheiro lhe apresentou o visitante, e quando o médico foi embora, gritou várias
vezes atrás dele: – Adeusinho! Muito obrigado! Até logo! – acenando-lhe com a mão. A seguir
lançou um suspiro vibrante, voltou a rir num trinado argentino, fincou as mãos no peito que
ondeava por baixo da camisola de cambraia, e era incapaz de manter quietas as pernas. Chamava
se Srª. Zimmermann.
Hans Castorp conhecia-a vagamente de vista. Durante algumas semanas, ela ocupara um
lugar à mesa da Salomon e do colegial voraz, e sempre se mostrara muito risonha. Depois
desaparecera, sem que o jovem se preocupasse muito com a sua ausência. Talvez tivesse partido –
opinara ele. Agora reencontrava-a ali, sob a denominação de “abarrotada”, e esperava a
explicação dessa palavra.
– Ah! ah! ah! – riu-se ela, como se lhe fizessem cócegas. – É engraçadíssimo, esse
Behrens, fantasticamente cômico e divertido. A gente quase morre de tanto rir. Por que não se
senta, Sr. Kasten, ou Sr. Karsten, ou como se chama? O senhor tem um nome tão gozado, ah! ah!
ih! ih! Desculpe. Sente-se nessa cadeira aí, ao pé da cama, mas permita que eu mexa as pernas, ah!
ah! – suspirou com a boca vastamente aberta e logo tornou a trinar. – Simplesmente não posso
deixar de fazê-lo...
Era quase bonita, com feições claras, talvez excessivamente acentuadas, porém agradáveis,
e com um início de papada. Mas seus lábios eram azulados, e a ponta do nariz tinha a mesma cor,
sem dúvida devido à falta de ar. As mãos, de uma magreza simpática, ressaltadas pelos punhos de
renda da camisola, eram tão incapazes de sossegar quanto os pés. Tinha um pescoço de mocinha,
com duas “saboneteiras” acima das clavículas delicadas, e também os seios, que a dispneia e o
riso mantinham, sob o linho, numa agitação inquieta e forçada, pareciam pequenos e jovens.
Hans Castorp resolveu enviar-lhe ou levar-lhe também um ramalhete bonito de flores molhadas e
perfumosas, procedentes dos estabelecimentos de horticultura de Nice ou de Cannes. Com certa
preocupação compartilhou da hilaridade volúvel e nervosa da Srª. Zimmermann.
– Então o senhor visita os doentes graves? – perguntou ela. – Como isso é divertido e
amável da sua parte, ah! ah! ah! Eu mesma não estou muito enferma, imagine! Quer dizer, não o
estava nem um pouquinho, até há pouco... Até que recentemente, essa história... Escute e diga
não é a coisa mais engraçada que já ouviu... – E lutando por respirar, entre trinos e gorjeios,
contou o que lhe ocorrera.
Chegara a Davos um pouco enferma. A doença existira inegavelmente, pois, do contrário,
não teria vindo. Talvez nem sequer se tratasse de um caso leve. Mas fora antes leve do que grave.
O pneumotórax, essa conquista ainda recente, mas já muito apreciada, da técnica cirúrgica, fora
experimentado também no seu caso com o melhor êxito. A intervenção dera o melhor resultado
possível. O estado de saúde e a disposição da Srª. Zimmermann haviam melhorado de modo
sumamente reconfortante. Seu marido –- pois era casada, embora sem filhos – pudera contar
com o seu regresso dentro de três ou quatro meses. Então, para distrair-se, ela fizera uma
excursão a Zurique; não houvera outra razão para essa viagem a não ser o desejo de se divertir. E
de fato se divertira a valer, mas ao fazê-lo sentira a necessidade de se reabastecer de gás. Confiara
esse trabalho a um médico lã de baixo. Um rapaz encantador e tão cômico! Ah! ah! ah! Mas que
acontecera? Abarrotara-a! Não havia outro termo, esse já dizia tudo. Embora tomado de toda a
boa vontade, o médico não entendia muito do ofício. Numa palavra, ela regressara ao Berghof
totalmente abarrotada, isto é, com o coração opresso e sem fôlego nenhum, ah! ah! ih! ih! O
Behrens praguejara como o diabo e metera-a imediatamente na cama. Pois agora estava
gravemente enferma, posto que não tivesse febre alta. Haviam-na estragado, arruinado mesmo.
Ah! ah! ah! Essa cara, essa cara ridícula com que Hans Castorp estava! E ela se riu, enquanto
apontava com o dedo para ele; riu-se tanto da cara dele, que também a testa se lhe tingiu de azul.
Mas a coisa mais gozada – disse ela – era o Behrens, com seus ralhos e sua rudeza. Já de antemão
ela rira, ao notar que estava abarrotada. “A senhora encontra-se em perigo de morte imediata”,
gritara o conselheiro, sem mais aquela; esse grosseirão, ah! ah! ah! E novamente pediu desculpas.
Não se esclareceu o motivo por que ela dava essas risadas cascateantes com respeito às
declarações de Behrens; se era só devido à sua “rudeza” e porque não acreditava nelas, ou,
embora acreditando – o que afinal não podia deixar de fazer –, por achar terrivelmente cômico o
caso em si, isto é, o perigo de vida que a ameaçava. Hans Castorp tinha a impressão de que essa
última hipótese era a verdadeira, e que realmente ela gorjeava, piava e trinava só em virtude da
leviandade infantil e da falta de siso do seu cérebro de passarinho. Isso lhe parecia censurável.
Mesmo assim, mandou-lhe flores, mas não tornou a ver a risonha Srª. Zimmermann. Após ter
sido sustentada durante alguns dias por meio de oxigênio, ela de fato veio a falecer nos braços do
marido chamado por telegrama. “Uma besta quadrada!”, qualificou-a o conselheiro, ao informar
Hans Castorp do óbito.
Mas já antes o espírito empreendedor e compassivo de Hans Castorp, ajudado pelo
conselheiro áulico e pelo pessoal da enfermaria, estabelecera novas relações com outros doentes
graves da casa, e Joachim teve que acompanhá-lo. Teve que acompanhá-lo ao quarto do segundo
filho de “Tous-les-deux”, aquele que sobrara; pois fazia muito tempo já que o quarto do primeiro
fora faxinado e fumigado. Visitaram também o menino Teddy, que recentemente chegara do
Instituto Pedagógico Fredericianum, onde não pudera ficar, dada a gravidade do seu caso.
Também foram ver um teuto-russo, o Sr. Anton Karlovitch Ferge, funcionário de uma
companhia de seguros, e que era um sofredor de caráter bonachão. E também a infortunada mas
muito coquete Srª. von Mallinckrodt, que, tal e qual as demais pessoas que acabamos de citar, foi
obsequiada com flores, e à qual Hans Castorp, em presença de Joachim, até levou diversas vezes
o mingau à boca... Aos poucos chegaram, a adquirir a reputação de samaritanos ou irmãos de
caridade. Um belo dia, o próprio Settembrini interpelou Hans Castorp nesse sentido.
– Sapristi, engenheiro! Ouço dizer coisas sensacionais sobre a sua conduta. O senhor se
consagrou à beneficência? Procura justificar-se por meio de boas obras?
– Nem vale a pena falar disso, Sr. Settembrini. Não há nada que mereça ser mencionado.
Meu primo e eu...
– Não meta seu primo no assunto! Embora ambos deem que falar à gente, é do senhor
que se trata em realidade. Disso tenho certeza. O tenente é uma personalidade respeitável, mas
singela, e seu espírito não corre nenhum perigo que possa inquietar um pedagogo. O senhor não
me fará acreditar ser ele quem manda nessa história. O mais talentoso dos dois, mas também o
mais ameaçado, é o senhor. E, se me permite empregar este termo, um “filho enfermiço da
Vida”, com o qual é preciso preocupar-se. De resto, o senhor me deu licença de fazê-lo.
– Pois não, Sr. Settembrini. Essa licença lhe dei de uma vez por todas. É muito amável da
sua parte. E o termo “filho enfermiço da Vida” é bonito. Quanta coisa não inventam os
escritores! Não sei se devo orgulhar-me desse título; mas ele soa bem, indiscutivelmente! Pois é,
eu me dedico um pouquinho a esses “filhos da Morte”. Acho que é a isso que o senhor se refere.
Às vezes, quando tenho tempo, e sem que o regime sofra por isso, ocupo-me com os casos
graves e sérios, compreende? Com aqueles que não estão aqui para divertir-se e para entregar-se à
licenciosidade, mas que estão morrendo.
– Está escrito: “Deixai que os mortos enterrem os seus mortos!” – replicou o italiano.
Hans Castorp ergueu os braços e expressou com a sua fisionomia que existia muita coisa
escrita, isso e também aquilo, de maneira que era difícil discernir o melhor e inspirar-se nele.
Inegavelmente, o tocador de realejo apalpara um ponto nevrálgico, como fora de esperar. Na
verdade, Hans Castorp estava sempre disposto a escutá-lo, a considerar, sem compromisso, suas
teorias como dignas de serem ouvidas, e a admitir, a título de experiência, aquele influxo
pedagógico; contudo, não tinha a mínima intenção de renunciar, a favor de certos conceitos
educativos, a empresas que, apesar da mãe Gerngross e da sua ideia de um “pequeno flerte”,
apesar, também, da natureza prosaica do pobre Rotbein e dos tolos gorjeios da “abarrotada”,
pareciam-lhe vagamente proveitosas e de alcance considerável.
O filho de “Tous-les-deux” chamava-se Lauro. Recebera flores, violetas de Nice, de
aroma terroso, “da parte de dois companheiros compassivos, com os melhores votos de
restabelecimento”. Como o anonimato já se transformara em mera formalidade e todo mundo
sabia de quem partiam esses mimos, a própria “Tous-les-deux”, a pálida e enlutada mãe
mexicana, dirigiu aos primos, durante um encontro no corredor, algumas palavras de gratidão e
convidou-os, com voz rangente e sobretudo com uma gesticulação cheia de mágoa, a receber
pessoalmente os agradecimentos de seu filho, de son seul et dernier fils qui allait mourir aussi. A visita
realizou-se imediatamente. Manifestou-se que Lauro era um moço de surpreendente beleza, de
olhos ardentes, com um nariz aquilino cujas narinas palpitavam, e com esplêndidos lábios, por
cima dos quais brotava um bigodinho negro. No entanto, o rapaz exibiu uma atitude tão
fanfarrona e tão teatral, que os visitantes – tanto Hans Castorp quanto Joachim Ziemssen -se
sentiram aliviados quando a porta do quarto do enfermo voltou a fechar-se atrás deles. “Tous-les
deux” estava envolta em seu xale de lã preta, com o véu negro atado sob o queixo, com as rugas
transversais da sua testa baixa e com as bolsas enormes sob os olhos de ágata negra. De joelhos
dobrados ia e vinha pelo quarto, baixando aflitamente uma das comissuras da larga boca. De vez
em vez aproximava-se dos primos sentados à beira da cama, a fim de repetir, qual um papagaio, a
sua trágica frase: “Tous les dé, vous comprenez, messiés... Premièrement l’un et maintenant l’autre...”
Enquanto isso, o belo Lauro, falando igualmente francês, entregava-se a altissonantes fanfarrices
de um espalhafato insuportável; carregando nos erres, numa voz crepitante, afirmou que esperava
morrer heroicamente, comme héros, à l’espagnole, tal qual o irmão, de même que son fier jeune frère
Fernando, que também falecera como um herói espanhol; gesticulando, abriu a camisola para
oferecer aos golpes da morte o peito amarelado e continuou a comportar-se desse jeito até que
um ataque de tosse, fazendo subir-lhe aos lábios uma fina espuma rosada, lhe abafasse as bravatas
e induzisse os primos a se afastarem nas pontas dos pés.
Não comentaram entre si a visita que haviam feito a Lauro, e também intimamente
abstiveram-se de julgar a atitude do mexicano. Receberam uma impressão mais simpática no
quarto de Anton Karlovitch Ferge, de Petersburgo, que, com seu grande e jovial bigode, e com
seu proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, jazia na cama, refazendo-se, num
esforço lento e penoso, da tentativa de pneumotórax a que se sujeitara, e que quase lhe custara a
vida na mesa de operações. Fora ali que sofrera um choque violento, o chamado choque pleural,
complicação bastante frequente dessa intervenção moderna. No seu caso, o choque produzira-se
de uma forma particularmente perigosa, como colapso completo acompanhado de uma síncope
inquietante; numa palavra, o acidente apresentara-se com tamanha veemência, que fora preciso
interromper a operação e adiá-la por enquanto.
Os olhos cinzentos, bonachões, do Sr. Ferge dilatavam-se, e seu rosto tornava-se lívido,
cada vez que falava daquele acidente que devia ter sido horroroso para ele. -sem narcose,
cavalheiros! Muito bem, nós não podemos suportá-la; está contraindicada em nosso caso; um
homem razoável compreende isso e se conforma. Mas a anestesia local não penetra fundo, meus
senhores; apenas a carne envolvente. Quando cortam através dela, sente-se, na verdade, apenas
uma espécie de pressão ou de pisadura.. Eu estava deitado, com o rosto coberto para não ver
nada. O assistente segurava-me da direita, e a Superiora, da esquerda. Era como se me apertassem
e comprimissem, mas tratava-se somente da carne que abriam e retiravam por meio de pinças.
Então ouvi o Dr. Behrens dizer: “Agora!”, e nesse instante, cavalheiros, começou a apalpar a
pleura com um instrumento rombudo... Deve ser assim para que não a fure antes do tempo...
Apalpam-na em busca do lugar apropriado para fazer o furo e introduzir o gás... Enquanto ele
fazia isso, enquanto passeavam o instrumento por toda a extensão da minha pleura – oh, meus
senhores! –, eu não pude mais; tive uma sensação totalmente indescritível. A pleura, cavalheiros, é
coisa que não deve ser tocada; não é direito que a toquem, ela não o admite, é tabu, está revestida
de carne, isolada e inatingível de uma vez por todas! E agora a haviam posto a descoberto, e o
conselheiro apalpava-a. Senhores, comecei a enjoar. Horrível, pavoroso, meus senhores! Eu
nunca teria pensado que pudesse existir sensação tão medonha, tão miserável, tão abjeta, nesta
terra e em parte alguma do mundo, fora do inferno. Desmaiei. Tive três síncopes ao mesmo
tempo, uma verde, uma parda e uma violeta. Além disso penetrava um fedor através do desmaio.
O choque pleural atacou-me o olfato, meus senhores. Aquilo fedia loucamente a hidrogênio
sulfurado, assim como deve ser o cheiro do inferno. Com tudo isso notei que me ria, enquanto
perdia os sentidos; mas não era como se ri uma criatura humana, não! Era o riso mais nojento e
mais indecente que já ouvi em toda a minha vida. Pois o apalpamento da pleura, senhores,
produz as cócegas mais infames, mais exageradas, mais desumanas. Nisso mesmo consiste aquela
maldita e vergonhosa tortura. É o que se chama o choque pleural, que Deus queira que os
senhores nunca cheguem a experimentar.
Frequentemente, e sempre pálido de terror, Anton Karlovitch Ferge tornou a falar dessa
intervenção “abjeta”, cuja repetição iminente lhe inspirava um medo enorme. Confessara, aliás,
desde o início, ser apenas um homem simples, alheio a todas as coisas “sublimes”, e de cuja alma
e intelecto não se deviam esperar realizações extraordinárias, que ele também não exigiria de
ninguém. Isso posto, contou histórias bastante interessantes da sua vida antiga, da qual o
arrancara a enfermidade, a vida de um viajante a serviço de uma companhia de seguros contra
fogo. Partindo de Petersburgo, realizara em todas as direções longas viagens pela Rússia inteira,
para visitar as fábricas seguradas e para investigar aquelas cuja situação financeira fosse duvidosa.
Pois as estatísticas demonstravam que precisamente as indústrias que andavam mal se
incendiavam com a maior frequência. Por isso, a sua companhia sempre o encarregara da missão
de sondar as empresas sob esse ou aquele pretexto e de informá-la, para que ela, por meio de
resseguros mais elevados ou pela divisão do risco, pudesse prevenir uma perda sensível. Contava
acerca de viagens em pleno inverno através do vasto império, expedições noturnas sob um frio
espantoso, que fizera deitado num trenó, metido entre cobertores de peles de cordeiro. Contava
como, ao acordar, vira os olhos dos lobos luzir feito estrelas, sob a neve. Levara consigo, num
caixote, provisões congeladas, sopa de repolho e pão branco, que fora necessário degelar nas
etapas, durante a troca de cavalos; e o pão estivera, nessas ocasiões, tão fresco como se acabasse
de sair do forno. Era, entretanto, uma desgraça, quando o degelo se apresentava inopinadamente,
pois a sopa de repolho, empacotada em pedaços, derretia-se e espalhava-se toda.
Assim contava o Sr. Ferge, interrompendo-se de vez em quando para fazer notar, entre
suspiros, que tudo isso seria muito bonito, se não tivessem de repetir com ele a tentativa de
pneumotórax. Não era nada sublime o que ele dizia, mas de caráter real e agradável de ouvir,
sobretudo para Hans Castorp, que achava útil aprender alguma coisa a respeito do Império Russo
e do seu estilo de vida, de samovares, pastéis de couve, cossacos e igrejas de madeira, com tantas
torres em forma de cebola que se assemelhavam a uma colônia de cogumelos. Induziu ele o Sr.
Ferge a falar dos habitantes desse país, do seu exotismo setentrional e por isso, aos olhos de Hans
Castorp, ainda mais esquisito, da mescla asiática do seu sangue, das suas maçãs salientes e da
posição finesa-mongólica dos olhos. O jovem escutava tom interesse antropológico. Pediu
também para ouvir algumas frases em russo. O idioma oriental saía rápido, indistinto, sumamente
estranho e desprovido de ossos, de sob o bigode jovial do Sr. Ferge, partindo do proeminente
pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, e Hans Castorp – como é peculiar à juventude –
divertia-se tanto mais com tudo isso quanto mais proibido era o terreno onde brincava.
Frequentemente os primos iam passar um quarto de hora no quarto de Anton Karlovitch
Ferge. Em outras ocasiões visitavam o pequeno Teddy, do Fredericianum, um rapaz elegante de
catorze anos, louro e delicado, com uma enfermeira particular e um pijama de seda branca
enfeitado de alamares. Era órfão e rico, segundo ele mesmo contava. Esperava ser submetido a
uma intervenção de certa gravidade, a remoção de partes carcomidas, que tencionavam
experimentar; mas, quando se sentia melhor, saía às vezes da cama, por uma hora, para participar,
no seu belo traje esporte, da vida social lá embaixo. As senhoras gostavam de gracejar com o
adolescente, e ele ouvia as suas conversas, como, por exemplo, aquelas que se referiam ao
advogado Einhuf, à senhorita da combinação e a Fränzchen Oberdank. A seguir voltava para a
cama. Dessa maneira o pequeno Teddy matava elegantemente o tempo e deixava perceber que
nada mais esperava da vida a não ser precisamente isso.
No número 50, porém, achava-se a Srª. Natalie von Mallinckrodt, com seus olhos negros
e com brincos de ouro nas orelhas, coquete, faceira e todavia uma espécie de Lázaro ou de Jó
feminino, castigada por Deus com todo tipo de moléstias. Seu organismo parecia inundado de
toxinas, de maneira que um sem-número de enfermidades a acossavam alternada ou
simultaneamente. A pele era sobremodo atingida; estava coberta, em grande parte, de um eczema
que causava coceiras cruéis e formava chagas em determinados lugares, até nos lábios, o que
dificultava a introdução da colher. Revezavam-se na Srª. von Mallinckrodt inflamações internas,
ora da pleura ora dos rins, dos pulmões, do periósteo e mesmo do cérebro, com subsequentes
síncopes. Uma insuficiência cardíaca, originada pela febre e pelas dores, angustiava-a sumamente,
fazendo com que não conseguisse deglutir por completo os alimentos engolidos, que então
permaneciam presos na parte superior do esôfago. Numa palavra, o destino dessa mulher era
terrível. Além disso, achava-se a Srª. von Mallinckrodt sozinha no mundo. Deixara o marido e os
filhos por amor a outro homem, ou melhor, a um rapazote, que, por sua vez, a abandonara,
segundo ela mesma contou aos primos. Assim vivia, sem lar, embora não sem recursos, visto, o
marido enviar-lhe dinheiro. Em vez de mostrar uma altivez pouco indicada, tirava proveito dessa
generosidade ou paixão persistente, tanto mais que nem a si própria levava a sério e sabia que era
apenas uma mulherzinha desonrada e pecaminosa. Baseando-se nessa percepção, suportava todas
as calamidades de Jó, com surpreendente paciência e tenacidade, com aquela resistência
elementar, própria de uma mulher de raça, que triunfava sobre a miséria do seu corpo trigueiro e
transformava numa peça elegante de vestuário até mesmo a atadura de gaze que qualquer motivo
repugnante a obrigava a usar na cabeça. Mudava sem cessar as joias, exibindo corais pela manhã e
pérolas à noite. Muito satisfeita com as flores remetidas por Hans Castorp, que, evidentemente,
ela atribuía antes à galanteria do que à caridade, mandou transmitir aos dois jovens um convite
para tomarem chá junto à sua cama. Bebia esse chá numa chávena de bico, que segurava com os
dedos, todos, inclusive os polegares, cobertos até os nós de opalas, ametistas e esmeraldas. Com
os brincos de ouro balouçando nas orelhas, contou aos primos tudo quanto lhe acontecera.
Falou-lhes de seu marido respeitável, mas cacete, e dos seus filhos igualmente decentes e
fastidiosos, que puxavam ao pai e nunca lhe tinham inspirado sentimentos muito calorosos; falou
do rapazote, em cuja companhia fugira, e gabou-lhe a poética ternura. Mas os parentes do jovem,
servindo-se da astúcia e da força, haviam conseguido afastá-lo dela, e a doença, que então
irrompera violentamente e sob múltiplas formas, talvez lhe causasse asco. – Os senhores também
me acham asquerosa? – perguntou com faceirice, e sua feminilidade de puro-sangue triunfou do
eczema que se estendia pela metade do rosto.
continua pág 204...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Dança macabra (c)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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