sexta-feira, 13 de junho de 2025

Thomas Mann - A Montanha Mágica: Dança macabra (c)

Thomas Mann

A Montanha Mágica 

Capítulo V

Dança macabra 
.
continuando...

     Era difícil aconselhá-lo. Os primos ponderaram que se deveria levar em conta a excelente técnica cirúrgica do conselheiro áulico. Concordaram em deixar a decisão ao velho Rotbein, que já se achava a caminho. Quando se despediram, o jovem Fritz voltou a chorar um pouquinho; as lágrimas que vertia, embora só fossem produto da sua debilidade, formavam um contraste singular com a seca objetividade da sua maneira de pensar e de falar. Rogou aos primos que repetissem a visita, o que eles prometeram de bom grado. Mas não tiveram ocasião de fazê-lo. O fabricante de bonecos chegou na mesma noite, e logo na manhã seguinte realizou-se a operação, depois da qual o jovem Fritz não se achava num estado que lhe permitisse receber visitas. E dois dias após, Hans Castorp, ao passar em companhia de Joachim pelo quarto de Rotbein, viu que ali se fazia uma faxina. A Irmã Berta, com a sua maleta, já saíra do Berghof, porque fora chamada com urgência para cuidar de um novo moribundo em outro estabelecimento. Suspirando, com o cordão do pince-nez atrás da orelha, encaminhara-se para ali, visto ser precisamente essa a única perspectiva que se lhe abria. Um quarto “abandonado”, um quatro livre, submetido a uma limpeza geral, com ambas as portas abertas e com os móveis empilhados uns sobre os outros, como podiam ver os que passassem por ele a caminho da sala de refeições ou tia saída – um quarto nessas condições oferecia um aspecto significativo e todavia tão costumeiro que mal impressionava as pessoas, e ainda menos a quem um dia se apossara de um quarto que acabava de ser “desocupado” e desinfetado dessa forma, e criara raízes nele. Às vezes se sabia quem acabava de ocupar o respectivo número, coisa que então dava o que pensar. Isso aconteceu no referido caso, como também oito dias depois, quando Hans Castorp, passando pelo aposento da pequena Gerngross, deparou com ele no mesmo estado. Dessa vez, seu espírito se opôs, de início, a aceitar o sentido da atividade que ali reinava. Deteve-se a olhar, pensativo e consternado, no momento em que o Dr. Behrens o encontrou por casualidade. 

– Eu estava olhando a faxina – disse Hans Castorp. – Bom dia, senhor conselheiro. A pequena Leila... 
– Pois é! – disse Behrens, dando de ombros. Depois de um instante de silêncio, que permitiu a esse gesto produzir o seu efeito, acrescentou: – Pouco antes do final, o senhor ainda se apressou a cortejá-la segundo a regra, não é? Acho muito gentil da sua parte que demonstre algum interesse aos pobres dos pulmões assobiantes nas suas gaiolas, tanto mais que o senhor pessoalmente anda mais ou menos forte. É um traço simpático do seu caráter. Sim, senhor! Não o negue, é um traço muito simpático. Gostaria, talvez, que de vez em quando eu o apresentasse a outros? Tenho lá uma porção de passarinhos, caso o senhor queira vê-los. Agora, por exemplo, vou visitar a minha “abarrotada”. Quer me acompanhar? Vou apresentá-lo simplesmente como um companheiro de infortúnio.

     Hans Castorp disse que o conselheiro se adiantara às suas palavras e lhe oferecera justamente o que lhe desejava pedir. Aproveitaria a licença com a maior gratidão e seguiria o doutor. Mas quem era essa tal “abarrotada”? Como se devia interpretar essa palavra? 

– Literalmente – respondeu o médico. – De um modo textual, sem a menor metáfora. Deixe que ela mesma lhe conte a história. – Ao cabo de poucos passos chegaram ao quarto da “abarrotada”. O conselheiro áulico atravessou a dupla porta e mandou Hans Castorp esperar um instante. O som de risadas e palavras opressas pela falta de fôlego, mas claras e alegres, ressoou do quarto, quando da entrada de Behrens, para ser logo interceptado pelas portas. E o visitante compassivo tornou a ouvir esse som, quando, poucos minutos após, foi admitido e o Dr. Behrens o apresentou a uma senhora loura, estendida na cama, e que fixava curiosamente no jovem os olhos azuis. Com algumas almofadas nas costas, achava-se entre sentada e deitada. Muito irrequieta, ria-se sem cessar, embora lhe faltasse o fôlego; era um riso cascateante, muito agudo e argentino, nervoso e como que originado por meio de cócegas. Riu-se também das frases com que o conselheiro lhe apresentou o visitante, e quando o médico foi embora, gritou várias vezes atrás dele: – Adeusinho! Muito obrigado! Até logo! – acenando-lhe com a mão. A seguir lançou um suspiro vibrante, voltou a rir num trinado argentino, fincou as mãos no peito que ondeava por baixo da camisola de cambraia, e era incapaz de manter quietas as pernas. Chamava se Srª. Zimmermann.

     Hans Castorp conhecia-a vagamente de vista. Durante algumas semanas, ela ocupara um lugar à mesa da Salomon e do colegial voraz, e sempre se mostrara muito risonha. Depois desaparecera, sem que o jovem se preocupasse muito com a sua ausência. Talvez tivesse partido – opinara ele. Agora reencontrava-a ali, sob a denominação de “abarrotada”, e esperava a explicação dessa palavra.

– Ah! ah! ah! – riu-se ela, como se lhe fizessem cócegas. – É engraçadíssimo, esse Behrens, fantasticamente cômico e divertido. A gente quase morre de tanto rir. Por que não se senta, Sr. Kasten, ou Sr. Karsten, ou como se chama? O senhor tem um nome tão gozado, ah! ah! ih! ih! Desculpe. Sente-se nessa cadeira aí, ao pé da cama, mas permita que eu mexa as pernas, ah! ah! – suspirou com a boca vastamente aberta e logo tornou a trinar. – Simplesmente não posso deixar de fazê-lo...

     Era quase bonita, com feições claras, talvez excessivamente acentuadas, porém agradáveis, e com um início de papada. Mas seus lábios eram azulados, e a ponta do nariz tinha a mesma cor, sem dúvida devido à falta de ar. As mãos, de uma magreza simpática, ressaltadas pelos punhos de renda da camisola, eram tão incapazes de sossegar quanto os pés. Tinha um pescoço de mocinha, com duas “saboneteiras” acima das clavículas delicadas, e também os seios, que a dispneia e o riso mantinham, sob o linho, numa agitação inquieta e forçada, pareciam pequenos e jovens. Hans Castorp resolveu enviar-lhe ou levar-lhe também um ramalhete bonito de flores molhadas e perfumosas, procedentes dos estabelecimentos de horticultura de Nice ou de Cannes. Com certa preocupação compartilhou da hilaridade volúvel e nervosa da Srª. Zimmermann. 

– Então o senhor visita os doentes graves? – perguntou ela. – Como isso é divertido e amável da sua parte, ah! ah! ah! Eu mesma não estou muito enferma, imagine! Quer dizer, não o estava nem um pouquinho, até há pouco... Até que recentemente, essa história... Escute e diga não é a coisa mais engraçada que já ouviu... – E lutando por respirar, entre trinos e gorjeios, contou o que lhe ocorrera. 

     Chegara a Davos um pouco enferma. A doença existira inegavelmente, pois, do contrário, não teria vindo. Talvez nem sequer se tratasse de um caso leve. Mas fora antes leve do que grave. O pneumotórax, essa conquista ainda recente, mas já muito apreciada, da técnica cirúrgica, fora experimentado também no seu caso com o melhor êxito. A intervenção dera o melhor resultado possível. O estado de saúde e a disposição da Srª. Zimmermann haviam melhorado de modo sumamente reconfortante. Seu marido –- pois era casada, embora sem filhos – pudera contar com o seu regresso dentro de três ou quatro meses. Então, para distrair-se, ela fizera uma excursão a Zurique; não houvera outra razão para essa viagem a não ser o desejo de se divertir. E de fato se divertira a valer, mas ao fazê-lo sentira a necessidade de se reabastecer de gás. Confiara esse trabalho a um médico lã de baixo. Um rapaz encantador e tão cômico! Ah! ah! ah! Mas que acontecera? Abarrotara-a! Não havia outro termo, esse já dizia tudo. Embora tomado de toda a boa vontade, o médico não entendia muito do ofício. Numa palavra, ela regressara ao Berghof totalmente abarrotada, isto é, com o coração opresso e sem fôlego nenhum, ah! ah! ih! ih! O Behrens praguejara como o diabo e metera-a imediatamente na cama. Pois agora estava gravemente enferma, posto que não tivesse febre alta. Haviam-na estragado, arruinado mesmo. Ah! ah! ah! Essa cara, essa cara ridícula com que Hans Castorp estava! E ela se riu, enquanto apontava com o dedo para ele; riu-se tanto da cara dele, que também a testa se lhe tingiu de azul. Mas a coisa mais gozada – disse ela – era o Behrens, com seus ralhos e sua rudeza. Já de antemão ela rira, ao notar que estava abarrotada. “A senhora encontra-se em perigo de morte imediata”, gritara o conselheiro, sem mais aquela; esse grosseirão, ah! ah! ah! E novamente pediu desculpas.
     Não se esclareceu o motivo por que ela dava essas risadas cascateantes com respeito às declarações de Behrens; se era só devido à sua “rudeza” e porque não acreditava nelas, ou, embora acreditando – o que afinal não podia deixar de fazer –, por achar terrivelmente cômico o caso em si, isto é, o perigo de vida que a ameaçava. Hans Castorp tinha a impressão de que essa última hipótese era a verdadeira, e que realmente ela gorjeava, piava e trinava só em virtude da leviandade infantil e da falta de siso do seu cérebro de passarinho. Isso lhe parecia censurável. Mesmo assim, mandou-lhe flores, mas não tornou a ver a risonha Srª. Zimmermann. Após ter sido sustentada durante alguns dias por meio de oxigênio, ela de fato veio a falecer nos braços do marido chamado por telegrama. “Uma besta quadrada!”, qualificou-a o conselheiro, ao informar Hans Castorp do óbito.
     Mas já antes o espírito empreendedor e compassivo de Hans Castorp, ajudado pelo conselheiro áulico e pelo pessoal da enfermaria, estabelecera novas relações com outros doentes graves da casa, e Joachim teve que acompanhá-lo. Teve que acompanhá-lo ao quarto do segundo filho de “Tous-les-deux”, aquele que sobrara; pois fazia muito tempo já que o quarto do primeiro fora faxinado e fumigado. Visitaram também o menino Teddy, que recentemente chegara do Instituto Pedagógico Fredericianum, onde não pudera ficar, dada a gravidade do seu caso. Também foram ver um teuto-russo, o Sr. Anton Karlovitch Ferge, funcionário de uma companhia de seguros, e que era um sofredor de caráter bonachão. E também a infortunada mas muito coquete Srª. von Mallinckrodt, que, tal e qual as demais pessoas que acabamos de citar, foi obsequiada com flores, e à qual Hans Castorp, em presença de Joachim, até levou diversas vezes o mingau à boca... Aos poucos chegaram, a adquirir a reputação de samaritanos ou irmãos de caridade. Um belo dia, o próprio Settembrini interpelou Hans Castorp nesse sentido. 

– Sapristi, engenheiro! Ouço dizer coisas sensacionais sobre a sua conduta. O senhor se consagrou à beneficência? Procura justificar-se por meio de boas obras? 
– Nem vale a pena falar disso, Sr. Settembrini. Não há nada que mereça ser mencionado. Meu primo e eu... 
– Não meta seu primo no assunto! Embora ambos deem que falar à gente, é do senhor que se trata em realidade. Disso tenho certeza. O tenente é uma personalidade respeitável, mas singela, e seu espírito não corre nenhum perigo que possa inquietar um pedagogo. O senhor não me fará acreditar ser ele quem manda nessa história. O mais talentoso dos dois, mas também o mais ameaçado, é o senhor. E, se me permite empregar este termo, um “filho enfermiço da Vida”, com o qual é preciso preocupar-se. De resto, o senhor me deu licença de fazê-lo. 
– Pois não, Sr. Settembrini. Essa licença lhe dei de uma vez por todas. É muito amável da sua parte. E o termo “filho enfermiço da Vida” é bonito. Quanta coisa não inventam os escritores! Não sei se devo orgulhar-me desse título; mas ele soa bem, indiscutivelmente! Pois é, eu me dedico um pouquinho a esses “filhos da Morte”. Acho que é a isso que o senhor se refere. Às vezes, quando tenho tempo, e sem que o regime sofra por isso, ocupo-me com os casos graves e sérios, compreende? Com aqueles que não estão aqui para divertir-se e para entregar-se à licenciosidade, mas que estão morrendo. 
– Está escrito: “Deixai que os mortos enterrem os seus mortos!” – replicou o italiano.

     Hans Castorp ergueu os braços e expressou com a sua fisionomia que existia muita coisa escrita, isso e também aquilo, de maneira que era difícil discernir o melhor e inspirar-se nele. Inegavelmente, o tocador de realejo apalpara um ponto nevrálgico, como fora de esperar. Na verdade, Hans Castorp estava sempre disposto a escutá-lo, a considerar, sem compromisso, suas teorias como dignas de serem ouvidas, e a admitir, a título de experiência, aquele influxo pedagógico; contudo, não tinha a mínima intenção de renunciar, a favor de certos conceitos educativos, a empresas que, apesar da mãe Gerngross e da sua ideia de um “pequeno flerte”, apesar, também, da natureza prosaica do pobre Rotbein e dos tolos gorjeios da “abarrotada”, pareciam-lhe vagamente proveitosas e de alcance considerável.
     O filho de “Tous-les-deux” chamava-se Lauro. Recebera flores, violetas de Nice, de aroma terroso, “da parte de dois companheiros compassivos, com os melhores votos de restabelecimento”. Como o anonimato já se transformara em mera formalidade e todo mundo sabia de quem partiam esses mimos, a própria “Tous-les-deux”, a pálida e enlutada mãe mexicana, dirigiu aos primos, durante um encontro no corredor, algumas palavras de gratidão e convidou-os, com voz rangente e sobretudo com uma gesticulação cheia de mágoa, a receber pessoalmente os agradecimentos de seu filho, de son seul et dernier fils qui allait mourir aussi. A visita realizou-se imediatamente. Manifestou-se que Lauro era um moço de surpreendente beleza, de olhos ardentes, com um nariz aquilino cujas narinas palpitavam, e com esplêndidos lábios, por cima dos quais brotava um bigodinho negro. No entanto, o rapaz exibiu uma atitude tão fanfarrona e tão teatral, que os visitantes – tanto Hans Castorp quanto Joachim Ziemssen -se sentiram aliviados quando a porta do quarto do enfermo voltou a fechar-se atrás deles. “Tous-les deux” estava envolta em seu xale de lã preta, com o véu negro atado sob o queixo, com as rugas transversais da sua testa baixa e com as bolsas enormes sob os olhos de ágata negra. De joelhos dobrados ia e vinha pelo quarto, baixando aflitamente uma das comissuras da larga boca. De vez em vez aproximava-se dos primos sentados à beira da cama, a fim de repetir, qual um papagaio, a sua trágica frase: “Tous les dé, vous comprenez, messiés... Premièrement l’un et maintenant l’autre...” Enquanto isso, o belo Lauro, falando igualmente francês, entregava-se a altissonantes fanfarrices de um espalhafato insuportável; carregando nos erres, numa voz crepitante, afirmou que esperava morrer heroicamente, comme héros, à l’espagnole, tal qual o irmão, de même que son fier jeune frère Fernando, que também falecera como um herói espanhol; gesticulando, abriu a camisola para oferecer aos golpes da morte o peito amarelado e continuou a comportar-se desse jeito até que um ataque de tosse, fazendo subir-lhe aos lábios uma fina espuma rosada, lhe abafasse as bravatas e induzisse os primos a se afastarem nas pontas dos pés.
     Não comentaram entre si a visita que haviam feito a Lauro, e também intimamente abstiveram-se de julgar a atitude do mexicano. Receberam uma impressão mais simpática no quarto de Anton Karlovitch Ferge, de Petersburgo, que, com seu grande e jovial bigode, e com seu proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, jazia na cama, refazendo-se, num esforço lento e penoso, da tentativa de pneumotórax a que se sujeitara, e que quase lhe custara a vida na mesa de operações. Fora ali que sofrera um choque violento, o chamado choque pleural, complicação bastante frequente dessa intervenção moderna. No seu caso, o choque produzira-se de uma forma particularmente perigosa, como colapso completo acompanhado de uma síncope inquietante; numa palavra, o acidente apresentara-se com tamanha veemência, que fora preciso interromper a operação e adiá-la por enquanto.
     Os olhos cinzentos, bonachões, do Sr. Ferge dilatavam-se, e seu rosto tornava-se lívido, cada vez que falava daquele acidente que devia ter sido horroroso para ele. -sem narcose, cavalheiros! Muito bem, nós não podemos suportá-la; está contraindicada em nosso caso; um homem razoável compreende isso e se conforma. Mas a anestesia local não penetra fundo, meus senhores; apenas a carne envolvente. Quando cortam através dela, sente-se, na verdade, apenas uma espécie de pressão ou de pisadura.. Eu estava deitado, com o rosto coberto para não ver nada. O assistente segurava-me da direita, e a Superiora, da esquerda. Era como se me apertassem e comprimissem, mas tratava-se somente da carne que abriam e retiravam por meio de pinças. Então ouvi o Dr. Behrens dizer: “Agora!”, e nesse instante, cavalheiros, começou a apalpar a pleura com um instrumento rombudo... Deve ser assim para que não a fure antes do tempo... Apalpam-na em busca do lugar apropriado para fazer o furo e introduzir o gás... Enquanto ele fazia isso, enquanto passeavam o instrumento por toda a extensão da minha pleura – oh, meus senhores! –, eu não pude mais; tive uma sensação totalmente indescritível. A pleura, cavalheiros, é coisa que não deve ser tocada; não é direito que a toquem, ela não o admite, é tabu, está revestida de carne, isolada e inatingível de uma vez por todas! E agora a haviam posto a descoberto, e o conselheiro apalpava-a. Senhores, comecei a enjoar. Horrível, pavoroso, meus senhores! Eu nunca teria pensado que pudesse existir sensação tão medonha, tão miserável, tão abjeta, nesta terra e em parte alguma do mundo, fora do inferno. Desmaiei. Tive três síncopes ao mesmo tempo, uma verde, uma parda e uma violeta. Além disso penetrava um fedor através do desmaio. O choque pleural atacou-me o olfato, meus senhores. Aquilo fedia loucamente a hidrogênio sulfurado, assim como deve ser o cheiro do inferno. Com tudo isso notei que me ria, enquanto perdia os sentidos; mas não era como se ri uma criatura humana, não! Era o riso mais nojento e mais indecente que já ouvi em toda a minha vida. Pois o apalpamento da pleura, senhores, produz as cócegas mais infames, mais exageradas, mais desumanas. Nisso mesmo consiste aquela maldita e vergonhosa tortura. É o que se chama o choque pleural, que Deus queira que os senhores nunca cheguem a experimentar.
     Frequentemente, e sempre pálido de terror, Anton Karlovitch Ferge tornou a falar dessa intervenção “abjeta”, cuja repetição iminente lhe inspirava um medo enorme. Confessara, aliás, desde o início, ser apenas um homem simples, alheio a todas as coisas “sublimes”, e de cuja alma e intelecto não se deviam esperar realizações extraordinárias, que ele também não exigiria de ninguém. Isso posto, contou histórias bastante interessantes da sua vida antiga, da qual o arrancara a enfermidade, a vida de um viajante a serviço de uma companhia de seguros contra fogo. Partindo de Petersburgo, realizara em todas as direções longas viagens pela Rússia inteira, para visitar as fábricas seguradas e para investigar aquelas cuja situação financeira fosse duvidosa. Pois as estatísticas demonstravam que precisamente as indústrias que andavam mal se incendiavam com a maior frequência. Por isso, a sua companhia sempre o encarregara da missão de sondar as empresas sob esse ou aquele pretexto e de informá-la, para que ela, por meio de resseguros mais elevados ou pela divisão do risco, pudesse prevenir uma perda sensível. Contava acerca de viagens em pleno inverno através do vasto império, expedições noturnas sob um frio espantoso, que fizera deitado num trenó, metido entre cobertores de peles de cordeiro. Contava como, ao acordar, vira os olhos dos lobos luzir feito estrelas, sob a neve. Levara consigo, num caixote, provisões congeladas, sopa de repolho e pão branco, que fora necessário degelar nas etapas, durante a troca de cavalos; e o pão estivera, nessas ocasiões, tão fresco como se acabasse de sair do forno. Era, entretanto, uma desgraça, quando o degelo se apresentava inopinadamente, pois a sopa de repolho, empacotada em pedaços, derretia-se e espalhava-se toda.
     Assim contava o Sr. Ferge, interrompendo-se de vez em quando para fazer notar, entre suspiros, que tudo isso seria muito bonito, se não tivessem de repetir com ele a tentativa de pneumotórax. Não era nada sublime o que ele dizia, mas de caráter real e agradável de ouvir, sobretudo para Hans Castorp, que achava útil aprender alguma coisa a respeito do Império Russo e do seu estilo de vida, de samovares, pastéis de couve, cossacos e igrejas de madeira, com tantas torres em forma de cebola que se assemelhavam a uma colônia de cogumelos. Induziu ele o Sr. Ferge a falar dos habitantes desse país, do seu exotismo setentrional e por isso, aos olhos de Hans Castorp, ainda mais esquisito, da mescla asiática do seu sangue, das suas maçãs salientes e da posição finesa-mongólica dos olhos. O jovem escutava tom interesse antropológico. Pediu também para ouvir algumas frases em russo. O idioma oriental saía rápido, indistinto, sumamente estranho e desprovido de ossos, de sob o bigode jovial do Sr. Ferge, partindo do proeminente pomo-de-adão, de aspecto igualmente jovial, e Hans Castorp – como é peculiar à juventude – divertia-se tanto mais com tudo isso quanto mais proibido era o terreno onde brincava.
     Frequentemente os primos iam passar um quarto de hora no quarto de Anton Karlovitch Ferge. Em outras ocasiões visitavam o pequeno Teddy, do Fredericianum, um rapaz elegante de catorze anos, louro e delicado, com uma enfermeira particular e um pijama de seda branca enfeitado de alamares. Era órfão e rico, segundo ele mesmo contava. Esperava ser submetido a uma intervenção de certa gravidade, a remoção de partes carcomidas, que tencionavam experimentar; mas, quando se sentia melhor, saía às vezes da cama, por uma hora, para participar, no seu belo traje esporte, da vida social lá embaixo. As senhoras gostavam de gracejar com o adolescente, e ele ouvia as suas conversas, como, por exemplo, aquelas que se referiam ao advogado Einhuf, à senhorita da combinação e a Fränzchen Oberdank. A seguir voltava para a cama. Dessa maneira o pequeno Teddy matava elegantemente o tempo e deixava perceber que nada mais esperava da vida a não ser precisamente isso.
     No número 50, porém, achava-se a Srª. Natalie von Mallinckrodt, com seus olhos negros e com brincos de ouro nas orelhas, coquete, faceira e todavia uma espécie de Lázaro ou de Jó feminino, castigada por Deus com todo tipo de moléstias. Seu organismo parecia inundado de toxinas, de maneira que um sem-número de enfermidades a acossavam alternada ou simultaneamente. A pele era sobremodo atingida; estava coberta, em grande parte, de um eczema que causava coceiras cruéis e formava chagas em determinados lugares, até nos lábios, o que dificultava a introdução da colher. Revezavam-se na Srª. von Mallinckrodt inflamações internas, ora da pleura ora dos rins, dos pulmões, do periósteo e mesmo do cérebro, com subsequentes síncopes. Uma insuficiência cardíaca, originada pela febre e pelas dores, angustiava-a sumamente, fazendo com que não conseguisse deglutir por completo os alimentos engolidos, que então permaneciam presos na parte superior do esôfago. Numa palavra, o destino dessa mulher era terrível. Além disso, achava-se a Srª. von Mallinckrodt sozinha no mundo. Deixara o marido e os filhos por amor a outro homem, ou melhor, a um rapazote, que, por sua vez, a abandonara, segundo ela mesma contou aos primos. Assim vivia, sem lar, embora não sem recursos, visto, o marido enviar-lhe dinheiro. Em vez de mostrar uma altivez pouco indicada, tirava proveito dessa generosidade ou paixão persistente, tanto mais que nem a si própria levava a sério e sabia que era apenas uma mulherzinha desonrada e pecaminosa. Baseando-se nessa percepção, suportava todas as calamidades de Jó, com surpreendente paciência e tenacidade, com aquela resistência elementar, própria de uma mulher de raça, que triunfava sobre a miséria do seu corpo trigueiro e transformava numa peça elegante de vestuário até mesmo a atadura de gaze que qualquer motivo repugnante a obrigava a usar na cabeça. Mudava sem cessar as joias, exibindo corais pela manhã e pérolas à noite. Muito satisfeita com as flores remetidas por Hans Castorp, que, evidentemente, ela atribuía antes à galanteria do que à caridade, mandou transmitir aos dois jovens um convite para tomarem chá junto à sua cama. Bebia esse chá numa chávena de bico, que segurava com os dedos, todos, inclusive os polegares, cobertos até os nós de opalas, ametistas e esmeraldas. Com os brincos de ouro balouçando nas orelhas, contou aos primos tudo quanto lhe acontecera. Falou-lhes de seu marido respeitável, mas cacete, e dos seus filhos igualmente decentes e fastidiosos, que puxavam ao pai e nunca lhe tinham inspirado sentimentos muito calorosos; falou do rapazote, em cuja companhia fugira, e gabou-lhe a poética ternura. Mas os parentes do jovem, servindo-se da astúcia e da força, haviam conseguido afastá-lo dela, e a doença, que então irrompera violentamente e sob múltiplas formas, talvez lhe causasse asco. – Os senhores também me acham asquerosa? – perguntou com faceirice, e sua feminilidade de puro-sangue triunfou do eczema que se estendia pela metade do rosto.

continua pág 204...
___________________

Leia também:

Capítulo I
A Chegada
Capítulo III
Capítulo IV
Dança macabra (c)
___________________

A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.

Nenhum comentário:

Postar um comentário