Para o sr. Lee e Alice, em retribuição ao amor e afeto
Os advogados, suponho, um dia foram crianças.
CHARLES LAMB
SEGUNDA PARTE
12
continuando...
Zeebo levantou-se do banco, foi para a nave central e ficou de frente para toda a congregação. Tinha nas mãos um livro de
hinos gasto. Abriu-o e disse:
— Vamos cantar o hino número duzentos e setenta e três.
Aquilo era demais para mim.
— Como vamos cantar sem um livro de hinos?
Calpúrnia sorriu.
— Shhh, querida. Você já vai ver.
Zeebo pigarreou e leu com uma voz que parecia o ressoar de uma artilharia a distância.
— Há uma terra do outro lado do rio.
Com incrível afinação, uma centena de vozes cantaram com ele. A última sílaba, que terminou num vigoroso murmúrio, foi
seguida pela voz de Zeebo:
— Onde seremos felizes para sempre.
De novo, ficamos imersos na música e quando a última nota ainda estava no ar, Zeebo juntou-a ao verso seguinte:
— E só a fé nos faz chegar lá.
A congregação hesitou, Zeebo repetiu o verso e eles cantaram. No refrão, Zeebo fechou o livro, um sinal para todos
continuarem sem ele.
Nas últimas notas do Júbilo, Zeebo cantou:
— Felizes para sempre, bem ali na outra margem do rio.
Olhei para Jem, que olhava Zeebo de soslaio. Eu também não acreditava, mas nós dois tínhamos ouvido.
O reverendo então pediu que Deus abençoasse os doentes e os que sofriam, exatamente como o pastor na nossa igreja, com
a diferença de que o reverendo chamou a atenção de Deus para vários casos específicos.
O sermão foi uma veemente condenação do pecado, numa repetição severa da frase escrita na parede atrás dele, e preveniu
o rebanho contra os males do excesso de bebida, do jogo e das mulheres estranhas. Os contrabandistas de bebida alcoólica
davam muitos problemas no bairro dos negros, mas as mulheres eram ainda piores. Mais uma vez, como na minha igreja, eu
ouvia falar na doutrina da impureza das mulheres que parecia preocupar os clérigos de todas as religiões.
Jem e eu tínhamos ouvido aquele mesmo sermão domingo após domingo, com uma única diferença: ali, na Primeira
Aquisição, o reverendo usava o púlpito com mais liberdade para expressar suas opiniões sobre os deslizes dos fiéis: embora
não estivesse doente, havia cinco domingos que Jim Hardy não ia à igreja; Constance Jackson precisava tomar cuidado com
sua mania de brigar com todos no bairro. Era a única moradora na história do bairro a ter uma cerca de estacas.
O reverendo Sykes terminou o sermão. Encaminhou-se para uma mesa em frente ao púlpito e pediu a oferenda da manhã,
procedimento que Jem e eu desconhecíamos. Um por um, os fiéis se aproximaram e depositaram moedas numa lata preta de
café. Jem e eu fizemos o mesmo e ouvimos um delicado “obrigado, obrigado” quando nossas moedas tilintaram.
Para nossa surpresa, o reverendo Sykes esvaziou a lata sobre a mesa e contou as moedas na mão. Empertigou-se e disse:
— É pouco. Precisamos de dez dólares.
Os fiéis se alvoroçaram.
— Todos sabem para que é esse dinheiro… enquanto Tom está preso, Helen não pode deixar os filhos em casa para
trabalhar. Se cada um der mais uma moeda, vamos completar… — O reverendo acenou chamando alguém nos fundos da
igreja. — Alec, feche a porta. Ninguém sai até termos dez dólares.
Calpúrnia remexeu na bolsa e tirou uma velha bolsinha de couro para moedas.
— Não precisa, Cal — sussurrou Jem quando ela nos entregou uma reluzente moeda. — Nós podemos dar as nossas
moedas. Me dê a sua, Scout.
A igreja estava ficando abafada e me ocorreu que o reverendo queria fazer seu rebanho suar a fim de que dessem o
dinheiro. Os abanicos agitaram-se, as pessoas arrastaram os pés, impacientes, os mascadores de fumo ficaram ansiosos.
Levei um susto quando o reverendo Sykes disse, firme:
— Carlow Richardson, ainda não vi a sua contribuição.
Um homem magro, de calça cáqui, foi até a mesa e depositou uma moeda. Os fiéis fizeram um murmúrio de aprovação. O
reverendo então disse:
— Aqueles que não têm filhos, façam um sacrifício e deem mais uma moeda. Só assim completaremos a quantia
necessária.
Aos poucos, com muito custo, conseguiram os dez dólares. As portas da igreja se abriram e o bafo de ar fresco nos
ressuscitou. Zeebo cantou Às margens tempestuosas do Jordão e o serviço religioso terminou.
Eu queria ficar lá e explorar o local, mas Calpúrnia me empurrou na frente dela pela igreja. Quando chegamos à porta, ela
parou para falar com Zeebo e a família, e Jem e eu aproveitamos para falar com o reverendo Sykes. Eu queria saber muitas
coisas, mas achei melhor esperar e perguntar a Calpúrnia depois.
— Gostamos muito de ter vocês aqui. O pai de vocês é o melhor amigo desta igreja — disse o reverendo.
Não aguentei de curiosidade.
— Por que recolheram dinheiro para a mulher de Tom Robinson?
— Vocês não ouviram? Helen tem três filhos e não pode sair para trabalhar… — respondeu o reverendo.
— Por que ela não leva os filhos junto, reverendo? — perguntei. Era costume as negras que trabalhavam no campo
deixarem os filhos pequenos em alguma sombra enquanto trabalhavam. Em geral, as crianças ficavam sentadas à sombra entre
duas fileiras de pés de algodão. Os que não tinham ainda idade para ficar sentados eram amarrados às costas das mães ou
deitados sobre sacos de algodão.
O reverendo hesitou.
— Para ser sincero, srta. Jean Louise, Helen não está conseguindo trabalho… Quando chegar a época da colheita, acho que
o sr. Link Deas vai chamá-la.
— Por que ela não consegue trabalho, reverendo?
Antes que ele pudesse responder, Calpúrnia pôs a mão no meu ombro. Sob aquela pressão, eu disse:
— Obrigada por nos receber — eu disse. Jem também agradeceu e tomamos o caminho de casa.
— Cal, eu sei que Tom Robinson está na cadeia porque ele fez uma coisa muito errada, mas por que as pessoas não dão
trabalho para Helen? — perguntei.
Calpúrnia, de vestido de voile azul-marinho e chapéu, caminhava entre Jem e eu.
— É por causa do que as pessoas estão dizendo que Tom fez — ela respondeu. — Ninguém quer ter nenhuma ligação com
ele nem com a família dele.
— Mas o que ele fez, Cal?
Calpúrnia suspirou.
— O sr. Bob Ewell acusou Tom de estuprar a filha dele, então ele foi preso e colocado na cadeia…
— O sr. Ewell? — Tentei lembrar quem era. — É parente daqueles Ewell que só vão ao primeiro dia de aula? Mas
Atticus disse que eles são pessoas horríveis… Nunca vi Atticus falar assim de ninguém. Ele disse…
— Sim, são esses mesmo.
— Bom, se todo mundo em Maycomb sabe que tipo de gente são os Ewell, deviam ficar felizes em dar trabalho para
Helen… Cal, o que é estuprar?
— Isso você vai ter que perguntar ao sr. Finch — disse Cal. — Ele vai explicar melhor que eu. Estão com fome? Hoje o
reverendo falou muito, ele não costuma ser tão aborrecido.
— É igual ao nosso pastor — disse Jem. — Mas por que vocês cantam os hinos daquele jeito?
— Verso a verso? — ela quis saber.
— É assim que chamam?
— É, chama-se verso a verso. Sempre foi assim.
Jem disse que eles podiam guardar o dinheiro das contribuições por um ano e comprar alguns livros de hinos. Calpúrnia
riu e explicou:
— Não ia adiantar, eles não sabem ler.
— Não sabem ler? Toda aquela gente? — perguntei.
— Isso mesmo — concordou Calpúrnia. — Só umas quatro pessoas da congregação sabem ler, contando comigo.
— Em que escola você estudou, Cal? — perguntou Jem.
— Nenhuma. Deixa ver, quem me ensinou a ler? Foi a tia da srta. Maudie Atkinson, a velha srta. Buford…
— Você é tão velha assim?
— Sou mais velha até do que o sr. Finch. — Calpúrnia sorriu. — Mas não sei quantos anos. Uma vez começamos a
relembrar, tentando descobrir quantos anos eu tenho… Minha memória só vai até alguns anos antes da dele, então não sou
muito mais velha, sem contar que as mulheres lembram melhor que os homens.
— Quando você faz aniversário, Cal?
— Comemoro no Natal, assim é mais fácil lembrar. Não tenho data de nascimento.
— Mas, Cal, você não parece mais velha que papai — protestou Jem.
— Gente de cor demora mais a mostrar a idade.
— Talvez seja porque não sabem ler. Você ensinou Zeebo a ler, Cal?
— Ensinei, sr. Jem. Não tinha escola quando ele era menino. Mas eu ensinei.
Zeebo era o filho mais velho de Calpúrnia. Se eu tivesse parado para pensar, saberia que Calpúrnia já era idosa, porque
Zeebo tinha filhos crescidos, mas nunca tinha pensado nisso.
— Zeebo aprendeu na cartilha, como nós? — perguntei.
— Não, eu fazia ele ler uma página da Bíblia por dia e usei o livro que a srta. Buford usava para me ensinar… Aposto que
vocês não sabem como consegui esse livro — ela desafiou.
Não sabíamos mesmo. Calpúrnia então contou:
— Foi seu avô Finch que me deu.
— Você veio de Finch’s Landing? — perguntou Jem. — Nunca nos contou.
— Sou de lá, sim, sr. Jem. Cresci lá, entre a propriedade dos Buford e Finch’s Landing. Cresci trabalhando para os Finch e
para os Buford. Vim para Maycomb quando o pai e a mãe de vocês se casaram.
— Qual foi o livro que meu avô deu, Cal? — perguntei.
— Comentários, de Blackstone.
Jem ficou pasmo.
— Foi com esse livro que você ensinou Zeebo a ler?
— Pois foi, sr. Jem — Tímida, Calpúrnia levou os dedos à boca. — Eram os únicos livros que eu tinha. O avô de vocês
dizia que o sr. Blackstone escrevia muito bem…
— É por isso que você fala diferente deles — concluiu Jem.
— Eles quem?
— Os outros negros, Cal. Mas na igreja você falou como eles...
Nunca tinha me ocorrido que Calpúrnia levava uma modesta vida dupla. A ideia de que ela tinha outra vida, fora da nossa
casa, era nova para mim, isso sem falar no fato de ela dominar duas línguas.
— Cal, por que você fala como… os seus amigos quando está com eles se sabe que falam errado? — perguntei.
— Bom, primeiro porque sou negra…
— Mas isso não quer dizer que precisa falar errado, se sabe falar certo — disse Jem.
Calpúrnia empurrou o chapéu para o lado, coçou a cabeça, depois enfiou o chapéu até as orelhas.
— É difícil explicar. Imagine se você e Scout falassem como os negros em casa… seria estranho, não seria? Se eu falasse
como os brancos na igreja ou com meus vizinhos, eles iam pensar que eu estava querendo ser mais importante que o profeta
Moisés.
— Mas você sabe falar direito — insisti.
— Ninguém precisa mostrar tudo que sabe. Não é educado. Em segundo lugar, as pessoas não gostam de quem sabe mais
que eles. Incomoda. A gente não muda os outros falando direito, eles precisam querer aprender. E se não querem, o jeito é
ficar calada ou falar como eles.
— Cal, posso ir ver você de vez em quando?
Ela olhou para mim.
— Me ver, querida? Mas você não me vê todo dia?
— Ir na sua casa. Papai poderia me levar de vez em quando, depois do trabalho — sugeri.
— Quando você quiser. Gostaríamos muito — ela disse.
Estávamos na calçada da casa dos Radley.
— Olhem lá na varanda — disse Jem.
Olhei para a varanda dos Radley, esperando ver o fantasma que morava lá tomando sol no balanço. O balanço estava
vazio.
— Estou falando da nossa varanda — disse Jem.
Olhei. Altiva, séria, inflexível, tia Alexandra estava sentada na cadeira de balanço exatamente como se tivesse sentado ali
todos os dias de sua vida.
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Leia também:
O Sol é para todos: 2ª Parte (12b)
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Copyright © 1960 by Harper Lee, renovado em 1988
Copyright da tradução © José Olympio
Título do original em inglês
TO KILL A MOCKINGBIRD
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Um dos romances mais adorados de todos os tempos, O sol é para todos conta a história de duas crianças no árido terreno sulista norte-americano da Grande Depressão no início dos anos 1930.
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