segunda-feira, 9 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - O Sr. de Guermantes pronunciou)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     O Sr. de Guermantes pronunciou essas palavras "quando alguém se chama marquês de Saint-Loup" com ênfase. No entanto, bem sabia que era muito mais importante chamar-se "duque de Guermantes". Mas, se o seu amor-próprio tendia antes a exagerar a superioridade do título de duque de Guermantes, talvez não fossem tanto as regras do bom gosto como as leis da imaginação que o levavam a diminuí-lo. Cada um vê mais bonito o que vê a distância, o que vê nos outros. Pois as leis gerais que regulam a perspectiva na imaginação se aplicam igualmente bem tanto aos duques como aos outros homens. Não só as leis da imaginação, mas também as da linguagem. Ora, qualquer das leis da linguagem poderia ser aplicada aqui. Uma pretende que nos expressemos como as pessoas de nossa classe mental, e não da nossa estirpe de origem. Assim, o Sr. de Guermantes podia ser, em suas expressões, mesmo quando queria falar da nobreza, tributário de baixos burgueses que diriam: "quando alguém se chama duque de Guermantes", ao passo que um homem letrado, um Swann, um Legrandin, não o teria dito. Um duque pode escrever romances de cordel, mesmo sobre os costumes da alta sociedade, pois os títulos de nobreza de nada valem neste caso, e o epíteto de aristocrático pode ser merecido pelos escritos de um plebeu. Quem era neste caso o burguês a quem o Sr. de Guermantes ouvira dizer: "Quando alguém se chama", sem dúvida ele não o sabia. Mas uma outra lei da linguagem é que, de vez em quando, assim como aparecem e desaparecem certas doenças de que a seguir não se ouve mais falar, nascem, não se sabe como, seja espontaneamente, seja por um acaso comparável àquele que fez germinar na França uma erva daninha da América, cuja semente, grudada na lã de um cobertor de viagem, caiu num barranco da estrada de ferro, modas de expressões que se ouvem na mesma década, ditas por pessoas que não se combinaram para isso. Ora, da mesma forma que, em determinado ano, ouvi Bloch dizer, falando de si mesmo: "Como as pessoas mais agradáveis, mais brilhantes, mais sérias, mais exigentes, perceberam que só havia uma criatura que achavam inteligente, agradável, e que não podiam dispensar, e que era Bloch", e a mesma frase na boca de muitos outros jovens que não o conheciam e que apenas substituíam o nome de Bloch pelo seu próprio nome, assim também eu devia ouvir muitas vezes o "Quando alguém se chama".

- Que quer? - continuou o duque. - Com o espírito que reina por lá, é bastante compreensível. 
- É principalmente cômico - respondeu a duquesa -, considerando as ideias da mãe dele, que nos arrasa da manhã à noite com a Pátria Francesa. 
- Sim, mas não existe só a sua mãe; não é preciso nos contar lorotas. Por aí anda uma fulana, uma sirigaita da pior espécie, que tem maior influência sobre ele e que é precisamente compatriota do Sr. Dreyfus. Ela transmitiu a Robert o seu estado de espírito. 
- Talvez não saiba, senhor duque, mas há uma palavra nova para expressar esse gênero de espírito - disse o arquivista, o qual era secretário de comitês anti-revisionistas. - Diz-se "mentalidade". Significa exatamente a mesma coisa, mas ao menos ninguém sabe o que quer dizer. É o que há de mais fino, como se diz, o derniercri

     Entretanto, tendo ouvido o nome de Bloch, ele o via fazer perguntas ao Sr. de Norpois, com uma inquietação que despertou uma inquietação diversa, mas igualmente intensa na marquesa. Temendo o arquivista e se fingindo de antidreyfusista com ele, receava as suas censuras caso ele percebesse que havia recebido um judeu mais ou menos filiado ao "Sindicato".

- Ah, mentalidade; vou tomar nota, hei de aproveitar - disse o duque. (Não se tratava de uma imagem: o duque possuía um caderninho cheio de "citações", e que relia antes dos grandes jantares.) - "Mentalidade" me agrada. Há várias dessas palavras novas que se lançam, porém elas não duram. Ultimamente, tenho lido que um escritor era "talentudo". Compreenda quem quiser. Depois, nunca mais vi tal palavra. 
- Mas mentalidade é mais empregada que "talentudo" - disse o historiador da Fronda para se misturar à conversa. - Sou membro de uma Comissão no Ministério da Instrução Pública, onde a ouvi empregar diversas vezes, e também no meu grupo, o círculo Volney, e até no jantar em casa do Sr. Émile Ollivier. 
- Eu que não tenho a honra de fazer parte do Ministério da Instrução Pública - respondeu o duque com fingida humildade, mas com uma vaidade tão profunda que sua boca não pôde evitar de sorrir e seus olhos de lançar à assistência olhares cintilantes de alegria, sob cuja ironia enrubesceu o pobre historiador -, eu que não tenho a honra de fazer parte do Ministério da Instrução Pública - repetiu, ouvindo-se falar nem do círculo Volney (pertenço apenas ao União e ao Jockey); o senhor não pertence ao Jockey? - perguntou ele ao historiador que, enrubescendo ainda mais, previa uma insolência sem compreendê-la, e se pôs a tremer com todos os membros; -eu que não janto sequer na casa do Sr. Émile Ollivier, confesso que não conhecia "mentalidade". Estou certo de que está no mesmo caso que eu, Argencourt. Sabe por que não é possível mostrar as provas da traição de Dreyfus? Parece que é porque ele é amante da mulher do ministro da Guerra; é o que se murmureja à boca pequena. 
- Ah, pensava que fosse do presidente do Conselho disse o Sr. de Argencourt. 
- Acho vocês todos muito tediosos com este assunto - disse a duquesa de Guermantes, que, do ponto de vista mundano, fazia sempre questão de mostrar que não se deixava levar por ninguém. - Isso não pode ter importância para mim, no que respeita aos judeus, pela boa razão de que não tenho relações com eles, e pretendo continuar sempre nessa feliz ignorância. Mas, por outro lado, acho intolerável que, ao pretexto de que são bem pensantes, de que nada compram dos comerciantes judeus ou de que têm escrito "Morte aos judeus" em suas sombrinhas, um bando de senhoras Durand ou Dubois, a quem jamais teríamos conhecido, nos sejam impostas por Marie-Aynard ou por Victurnienne. Fui à casa de Marie-Aynard anteontem. Antigamente era um encanto. Hoje, a gente encontra ali todas as pessoas que a gente tem passado a vida evitando, sob o pretexto de que são contra Dreyfus, e outras que a gente nem imagina quem são. 
- Não; trata-se da mulher do ministro da Guerra. É pelo menos o rumor que corre nas ruelas - retornou o duque, que, assim, empregava na conversa alguns termos que considerava Ancien Régime. - Enfim, seja como for, sabe-se que eu, pessoalmente, penso o contrário de meu primo Gilbert. Não sou um feudal, como ele, passearia com um negro, se este fosse um de meus amigos, e pouco me importaria a opinião de terceiros, mas enfim, de qualquer modo, hão de concordar que, quando alguém se chama Saint-Loup, não pode se divertir em contrariar as ideias de todos que têm mais espírito que Voltaire e até que o meu sobrinho. E, sobretudo, a gente não se entrega ao que denominaria acrobacias de sensibilidade oito dias antes de se candidatar ao Clube! Esta é dura de roer! Não, provavelmente foi a sua peruinha que lhe meteu isso na cabeça. Ela o terá convencido de que se classificaria entre os "intelectuais". Os intelectuais, é o "doce de creme" desses senhores. Aliás, isso causou um belo trocadilho, mas muito maldoso. E o duque citou baixinho para a duquesa e o Sr. de Argencourt: Mater Semita, que, de fato, já se dizia no Jockey, pois, de todas as sementes migradoras, aquela a que estão ligadas as asas mais sólidas, que lhe permitem ser disseminada a maior distância de seu local de eclosão, é ainda a piada. 
- Poderíamos pedir explicações ao senhor aqui, pois tem o aspecto de uma intelectual - disse ele indicando o historiador. - Mas é preferível não falar nisso, tanto mais que o fato é completamente falso. Não sou tão ambicioso como a minha prima Mirepoix, que pretende poder seguir a filiação de sua casa, antes de Jesus Cristo, até a tribo de Levi, e comprometo-me a demonstrar que nunca houve uma gota de sangue judeu em nossa família. Mas enfim, não convém que nos deixemos embair; é certo que as encantadoras opiniões do senhor meu sobrinho podem causar muito barulho em Landerneau. Ainda mais que Fezensac está doente, e Duras é quem vai presidir a eleição, e vocês sabem como ele gosta de provocar incômodos - concluiu o duque, que jamais chegara a conhecer o sentido exato de certas palavras e julgava que "provocar incômodos" queria dizer não "importunar", e sim "complicar as coisas". 
- Em todo caso, se Dreyfus é inocente - interrompeu a duquesa -, ele não o prova de modo algum. Que cartas idiotas, enfáticas, escreve da sua ilha! Não sei se o Sr. Esterhazy vale mais que ele, mas tem outra finura na forma de compor as frases, uma outra cor. Isto não deve agradar aos partidários de Dreyfus. Que desgraça para eles não poderem trocar de inocente!  

     Todo mundo riu às gargalhadas. 

- Ouviu a frase de Oriane? - perguntou ansiosamente o duque à Sra. de Villeparisis. 
- Sim, acho-a muito engraçada.

     Aquilo não bastava ao duque: 

- Ora, quanto a mim, não a considero engraçada; ou melhor, pouco me importa se é engraçada ou não. Não faço caso algum do espírito.

     O Sr. de Argencourt protestou. 

- Ele não pensa uma só palavra do que está dizendo - murmurou a duquesa. 
- Sem dúvida, é porque fiz parte das Câmaras, onde ouvi discursos brilhantes que não significavam coisa alguma. Ali aprendi a apreciar principalmente a lógica. Decerto, é a isto que devo não ter sido reeleito. As coisas engraçadas me são indiferentes. 
- Basin, não banque o Joseph Prudhomme, sabe muito bem que ninguém aprecia mais o espírito que você. 
- Deixe-me acabar. É justamente porque sou insensível a um certo gênero de facécias, que prezo muitas vezes o espírito de minha mulher. Pois parte em geral de uma observação justa. Ela raciocina como um homem, formula como um escritor.

     Bloch procurava fazer com que o Sr. de Norpois se pronunciasse acerca do coronel Picquart. 

- É fora de dúvida - respondeu o Sr. de Norpois - que seu depoimento era necessário. Sei que, sustentando esta opinião, fiz mais de um de meus colegas soltar gritos, mas julgo que o governo tinha o dever de deixar falar o coronel. Não se sai de um impasse desses com uma simples pirueta, ou então arriscamo-nos a cair num atoleiro. Quanto ao próprio oficial, esse depoimento provocou uma impressão das mais favoráveis na primeira audiência. Quando o viram, bem aprumado em seu belo uniforme dos caçadores, vir contar, num tom perfeitamente simples e franco, o que tinha visto e o que havia suposto, e dizer: "Pela minha honra de soldado" (e aqui a voz do Sr. de Norpois vibrou num leve tremulo patriótico), "esta é a minha convicção", não há como negar, a impressão foi profunda. 

"Aí está, ele é dreyfusista, sem qualquer sombra de dúvida", pensou Bloch. 

- Mas o que lhe tirou inteiramente as simpatias que pudera angariar a princípio foi a sua confrontação com o arquivista Gribelin, quando se ouviu esse velho funcionário, esse homem que só tem uma palavra - (e o Sr. de Norpois acentuou com a energia das convicções sinceras as palavras seguintes) -, quando o viram olhar nos olhos ao seu superior, não temer enfrentá-lo e dizer-lhe, num tom que não admitia réplica: "Ora, meu coronel, o senhor bem sabe que, neste momento, como sempre, nunca menti, bem sabe que sempre digo a verdade." O vento mudou, e por mais que Picquart movesse céus e terra nas audiências seguintes, fez um completo fiasco. "Não, decididamente ele é antidreyfusista, claro", pensou Bloch. "Mas se julga Picquart um traidor que mente, como pode levar a sério as suas revelações e evocá-las como se lhes achasse algum encanto e as acreditas se sinceras? E se, ao contrário, enxerga em Picquart um homem justo que descarrega sua consciência, como pode supor que esteja mentindo em sua confrontação com Gribelin?"

     Talvez o motivo pelo qual o Sr. de Norpois falava desse jeito a Bloch, como se ambos estivessem de acordo, decorresse de que ele era de tal modo antidreyfusista que, achando que o governo não o era bastante, era tão inimigo deste como os dreyfusistas. Talvez porque o objeto a que se ligava em política fosse algo mais profundo, situado num plano diverso, e de onde o dreyfusista aparecia como uma modalidade sem importância e que não merece prender a atenção de um patriota preocupado com os grandes problemas externos. Ou melhor, talvez porque as máximas de sua sabedoria política, aplicando-se apenas às questões de forma, de procedimento, de oportunidade, eram tão impotentes para resolver as questões de fundo, como em filosofia a pura lógica o é para destrinçar as questões da existência ou porque essa mesma sabedoria lhe fizesse achar perigoso tratar desses assuntos e, por prudência, se limitasse a falar de circunstâncias secundárias. Mas onde Bloch se enganava era quando julgava que o Sr. de Norpois, ainda que menos prudente de temperamento e de espírito menos exclusivamente formal, lhe pudesse dizer, caso o quisesse, a verdade sobre o papel de Henry, de Picquart, de Du Paty de Clam, sobre todos os pontos do Caso Dreyfus. De fato, Bloch não podia duvidar que o Sr. de Norpois conhecesse a verdade sobre todas essas coisas. Como podia ignorá-la, visto que conhecia os ministros? Por certo, Bloch pensava que a verdade política pode ser aproximadamente reconstituída pelos cérebros mais lúcidos, porém imaginava, bem como a maioria do povo, que ela habita sempre, indiscutível e material, o dossiê secreto do presidente da República e do presidente do Conselho, os quais dão conhecimento dele aos ministros. Ora, mesmo quando a verdade política abrange documentos, é raro que estes alcancem mais valor que um clichê radioscópico, onde o vulgo supõe que a enfermidade do paciente se inscreve com todas as letras, ao passo que, de fato, esse clichê fornece um simples elemento de apreciação que se juntará a muitos outros, sobre os quais há de se aplicar o raciocínio do médico, e de onde ele vai extrair o seu diagnóstico. Assim, a verdade política, ao nos aproximarmos dos homens bem informados, nos foge quando julgávamos atingi-la. Mesmo mais tarde, e para permanecer no Caso Dreyfus, quando ocorreu um fato tão estarrecedor como a confissão de Henry, seguida de seu suicídio, tal fato foi logo interpretado de modo oposto pelos ministros dreyfusistas, e por Cavaignac e Cuignet, que haviam descoberto a falsidade e conduzido o interrogatório; mais ainda, entre os próprios ministros dreyfusistas, e do mesmo tom, julgando não só conforme os mesmos documentos, mas dentro do mesmo espírito, o papel de Henry foi explicado de maneira inteiramente oposta, uns vendo nele um cúmplice de Esterhazy, outros, ao contrário, atribuindo esse papel a Du Paty de Clam, concordando assim com uma tese do seu adversário Cuignet e estando em completa oposição com seu partidário Reinach. Tudo o que Bloch pôde extrair do Sr. de Norpois foi que, se era verdade que o chefe do Estado-Maior, o Sr. de Boisdeffre, fizera uma comunicação secreta ao Sr. de Rochefort, havia aí, sem dúvida alguma, uma coisa singularmente lamentável. 

- Tenha como certo que o ministro da Guerra deve ter in petto pelo menos, votado seu chefe de Estado-Maior aos deuses infernais. Um desmentido oficial não seria, a meu ver, uma excrescência. Mas o ministro da Guerra, sobre o assunto, se exprime com muita crueza infer pocula." (entre amigos) De resto, há certos assuntos sobre os quais é muito imprudente criar uma agitação que depois nos fuja ao controle. 
- Mas esses documentos são visivelmente falsos - disse Bloch.

     O Sr. de Norpois não respondeu, mas declarou que não aprovava as manifestações do príncipe Henry de Orléans: 

- Além disso, elas podem apenas perturbar a serenidade do tribunal e estimular agitações que, num ou noutro sentido, seriam de lamentar. Certamente é necessário dar um basta às manobras antimilitaristas, mas também não devemos passar por alto as agitações provocadas pelos elementos de direita que, em vez de servir à ideia patriótica, sonham em servir-se dela. A França, graças a Deus, não é uma república sul-americana, e não se faz sentir a necessidade de um general de pronunciamento.

     Bloch não conseguiu fazê-lo falar sobre a questão da culpabilidade de Dreyfus, nem que desse um prognóstico acerca do julgamento que resultaria do processo civil atualmente em curso. Em compensação, o Sr. de Norpois pareceu satisfeito em lhe fornecer detalhes sobre as consequências desse veredicto. 

- Se for uma condenação - disse ele -, será provavelmente cassada, pois é raro que, num processo em que os depoimentos das testemunhas são tão numerosos, não haja vícios de forma que os advogados possam invocar. Quanto à balbúrdia criada pelo príncipe Henri de Orléans, duvido muito que tenha sido do gosto de seu pai. 
- Acha que Chartres apoia Dreyfus? - perguntou a duquesa sorrindo, olhos arregalados, as faces rosadas, o nariz inclinado para o pires de biscoitinhos, com ar escandalizado. 
- De modo nenhum. Quis dizer apenas que há em toda a família, por esse lado, um senso político de que se pôde ver, no caso da admirável princesa Clémentine, o nec plus ultra, e que seu filho, o príncipe Ferdinand, conservou como legado precioso. Não haveria de ser o príncipe da Bulgária quem abraçaria o comandante Esterhazy. 
- Teria preferido um simples soldado - murmurou a Sra. de Guermantes, que jantava diversas vezes com o búlgaro na casa do príncipe de Joinville e que lhe respondera, certa vez, quando ele lhe perguntara se não era invejosa: "Sim, monsenhor, de seus braceletes." 
- Não vai esta noite ao baile da Sra. de Sagan? - perguntou o Sr. de Norpois à Sra. de Villeparisis, para cortar a conversa com Bloch. Este não desagradava ao embaixador, que nos disse mais tarde, não sem ingenuidade, e sem dúvida por causa de alguns vestígios que subsistiam, na linguagem de Bloch, da moda neo-homérica que ele, no entanto, já abandonara: - Ele é bem divertido, com seu jeito de falar um tanto antiquado, um tanto solene. Por um pouco mais, dir-se-ia "as Doutas Irmãs", como Lamartine ou Jean-Baptiste Rousseau. É algo que se tornou muito raro na juventude de hoje, e já o era na anterior. Nós mesmos éramos um pouco românticos. -

     Mas, por singular que lhe parecesse o interlocutor, o Sr. de Norpois considerava que a conversa já havia durado demais. 

- Não, senhor, não vou mais aos bailes - respondeu ela com um lindo sorriso de velha. - E os senhores, vão? É próprio da sua idade - acrescentou, englobando num mesmo olhar o Sr. de Châtellerault, seu amigo, e Bloch. - Eu também fui convidada disse ela, fingindo que se sentia vaidosa com aquilo. - Até vieram me convidar. (Vieram referia-se à princesa de Sagan.) 
- Eu não tenho cartão de convite - informou Bloch, pensando que a Sra. de Villeparisis lhe fosse oferecer um, e que a princesa de Sagan ficaria feliz em receber o amigo de uma pessoa que ela tinha ido convidar pessoalmente.

     A marquesa não respondeu coisa alguma, e Bloch não insistiu, pois tinha um negócio mais sério a tratar com ela e para o qual acabava de lhe pedir um encontro para dali a dois dias. Tendo ouvido os dois rapazes dizer que haviam pedido demissão do círculo da rua Royale, onde qualquer um entrava facilmente, queria pedir à Sra. de Villeparisis que o fizesse ser recebido nele. 

- Não são muito falsamente elegantes, muito esnobes, esses Sagans? - indagou ele com ar sarcástico. 
- De forma alguma, é o que fazemos de melhor no gênero - respondeu o Sr. de Argencourt, que adotara todos os gracejos parisienses. 
- Então - disse Bloch, meio irônico - é que se chama uma das solenidades, das grandes sessões mundanas da estação!

     A Sra. de Villeparisis disse alegremente à Sra. de Guermantes: 

- Ora vamos, então é uma grande solenidade mundana o baile da Sra. de Sagan? 
- Não é a mim que se deve perguntar isso - respondeu-lhe a duquesa com ironia -; ainda não cheguei a saber o que é uma solenidade mundana. Além do mais, os assuntos mundanos não são o meu forte. 
- Ah, eu julgava o contrário - disse Bloch, que pensava ter a Sra. de Guermantes falado com sinceridade.

     Para grande desespero do Sr. de Norpois, Bloch continuou a lhe fazer muitas perguntas sobre o Caso Dreyfus; o Sr. de Norpois declarou que o coronel Du Paty de Clam lhe dava, mais ou menos, a impressão de um cérebro um tanto confuso e que talvez não fora escolhido com muita felicidade para conduzir essa coisa delicada que é um inquérito, e que exige tanto sangue frio e discernimento.

- Sei que o partido socialista exige a sua cabeça com insistência, bem como a libertação imediata do prisioneiro da Ilha do Diabo. Porém, penso que ainda não estamos reduzidos assim a um ato de tal modo vergonhoso dos Srs. Gérault-Richard e cúmplices. Até agora, esse caso é muito complicado. Não digo que tanto de um lado como de outro haja coisas muito baixas e vis para ocultar. Que mesmo certos protetores mais ou menos desinteressados desse seu cliente possam ter boas intenções não digo o contrário; mas bem sabe que de boas intenções o inferno está cheio - acrescentou com um olhar penetrante. - É essencial que o governo dê a impressão de que já não está em mãos das facções de esquerda e de que não lhe resta senão entregar-se, de pés e mãos atados, às intimidações de não sei qual exército pretoriano, que, acredite-me, não é o Exército. É claro que, se ocorresse um fato novo, seria tentada uma revisão. A consequência salta aos olhos. Reclamar semelhante coisa é o mesmo que arrombar uma porta aberta. Nesse dia, ou o governo há de saber falar alto e em bom som, ou abdicará do que é a sua prerrogativa essencial. Os despropósitos não bastarão. Será preciso dar juízes a Dreyfus. E isto será coisa fácil, pois, embora seja costume em nossa doce França, onde gostamos de nos caluniar a nós próprios, acreditar ou deixar que acreditem que, para fazer ouvir as palavras da verdade e da justiça, é indispensável atravessar o canal da Mancha, o que muitas vezes é uma forma disfarçada de alcançar o Spree. Não somente em Berlim é que há juízes. Mas, uma vez posta em movimento a ação governamental, saberão os senhores ouvir o governo? Quando ele os convidar a cumprir com o seu dever cívico, saberão escutá-lo, ajuntar-se-ão ao redor dele? Ao seu patriótico apelo, saberão não ficar surdos e responder: "Presente!"?

     O Sr. de Norpois fazia essas perguntas a Bloch com uma veemência que, sem deixar de intimidá-lo, também o lisonjeava: pois o embaixador dava a impressão de dirigir-se, na pessoa dele, a todo um partido, de interrogar Bloch como se este houvesse recebido as confidências de semelhante partido e pudesse assumir a responsabilidade pelas decisões que seriam tomadas. 

- Se os senhores não se desarmarem - continuou o Sr. de Norpois sem esperar a resposta coletiva de Bloch -, se, antes mesmo que esteja seca a tinta do decreto que instituiria o processo de revisão, obedecendo a não sei que insidiosa palavra de ordem, os senhores não se desarmarem, mas se se restringirem a uma oposição estéril que, para alguns, parece a ultima ratio da política, se se retirarem para as suas tendas e queimarem os navios, será para seu maior dano. São os senhores prisioneiros dos fautores da desordem? Por acaso, deram-lhes garantias? - Bloch estava embaraçado para responder. O Sr. de Norpois não lhe deu tempo para isso. - Se a negativa for verdadeira, como quero crer, e se os senhores têm um pouco daquilo que, infelizmente, me parece faltar a alguns de seus chefes e amigos, certo espírito político, no próprio dia em que houver intervenção na Câmara Criminal, se não se deixarem levar pelos pescadores de águas turvas, terão ganho a partida. Não afirmo que todo o Estado-Maior possa sair incólume do episódio, mas já será muito bom que pelo menos uma parte possa livrar a cara sem pôr fogo na pólvora. Aliás, é claro que compete ao governo proclamar o direito e fechar a lista excessivamente longa dos crimes impunes, decerto que não obedecendo às excitações socialistas, e nem sei de que soldadesca ajuntou, - encarando Bloch nos olhos e talvez com o instinto de todos os conservadores para obter apoios no campo adversário. - A ação governamental deve se exercer sem a preocupação de sobrelanços, venham de onde vierem. O governo não está, graças a Deus, às ordens nem do coronel Driant nem no polo oposto, do Sr. Clémenceau. É necessário abater os agitadores profissionais e impedi-los de levantar a cabeça. A França, em sua imensa maioria, deseja o trabalho dentro da ordem! A esse respeito, já formei a minha religião. Mas não é preciso temer o esclarecimento da opinião; e, se alguns carneiros, desses que tão bem conheceu o nosso Rabelais, se atirarem n'água de cabeça baixa, seria conveniente mostrar-lhes que essa água é turva, que foi deliberadamente turvada por uma corja que não é da nossa casa, a fim de lhe dissimular o fundo perigoso. E o Governo não deve parecer que sai a contragosto de sua passividade, quando exercer o direito que lhe é essencialmente seu, ou seja, de pôr em movimento a Senhora Justiça. O Governo aceitará todas as sugestões dos senhores. Se se demonstrar que houve erro judicial, o governo estará apoiado por uma esmagadora maioria, o que lhe permitiria dar as cartas. 
- O senhor, cavalheiro - disse Bloch, voltando-se para o Sr. de Argencourt, a quem fora apresentado ao mesmo tempo que aos demais -, certamente é dreyfusista: no estrangeiro, todo mundo o é. 
- É uma questão que só diz respeito aos franceses, não é mesmo? - respondeu o Sr. de Argencourt, com essa insolência particular, que consiste em emprestar a um interlocutor uma opinião de que se sabe claramente que ele não compartilha, pois acaba de emitir uma outra oposta.  

continua na página 110...
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