quinta-feira, 5 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Todos se aproximaram da Sra. de Villeparisis)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Todos se aproximaram da Sra. de Villeparisis para vê-la pintar. 

- Estas flores são de um tom róseo verdadeiramente celeste. - disse Legrandin -; quero dizer, da cor do céu róseo. Pois existe um róseo celeste como há um azul celeste. Porém murmurou, para tentar ser ouvido somente pela marquesa -, creio que me inclino mais para o róseo sedoso, para o encarnado vivo da cópia que a senhora faz. Ah! A senhora deixa muito para trás o Pisanello e Van Huysum, com seu herbário minucioso e morto. 

     Um artista, por mais modesto que seja, aceita sempre ser preferido aos rivais e cuida apenas de lhes fazer justiça. 

- O que lhe dá essa impressão é que eles pintavam flores daquele tempo, que já não conhecemos, mas possuíam grande técnica. 
- Ah, flores daquele tempo! Como é engenhoso! - exclamou Legrandin. 
- Com efeito, a senhora pinta belas flores de cerejeira... ou de rosas de maio disse o historiador da Fronda, não sem hesitação quanto à flor, mas com segurança na voz, pois começava a esquecer o incidente dos chapéus. 
- Não, são flores de macieira. - disse a duquesa de Guermantes, dirigindo-se à tia. 
- Ah, vejo que é uma camponesa; como eu, você sabe distinguir as flores. 
- Ah, sim; é verdade! Mas julgava que o tempo das macieiras já havia passado. - disse ao acaso o historiador da Fronda, para se desculpar. 
- Não, pelo contrário, elas ainda não estão floridas, só daqui a quinze dias, talvez três semanas. - disse o arquivista, o qual, administrando até certo ponto as propriedades da Sra. De Villeparisis, estava mais a par das coisas do campo. 
- Sim, e ainda nos arredores de Paris, onde estão muito adiantadas. Na Normandia, por exemplo, na casa de seu pai - disse a marquesa, designando o duque de Châtellerault -, que possui magníficas macieiras à beira-mar, como num biombo japonês, elas só estão de fato cor-de rosa depois de 26 de maio. 
- Não as vejo nunca -disse o jovem duque- porque me provocam a febre do feno; é incrível. 
- Febre do feno. Nunca ouvi falar nisso. disse o historiador. 
- É a doença da moda. - disse o arquivista. 
- Depende. Talvez não lhe desse nada se fosse um ano de maçãs. Conhece o ditado dos normandos: "Para um ano em que houver maçãs" - disse o Sr. de Argencourt que, não sendo inteiramente francês, procurava dar-se ares de parisiense. 
- Tem razão. - respondeu a Sra. de Villeparisis à sobrinha -; são macieiras do Sul. Foi uma florista que me enviou esses ramos, pedindo que os aceitasse. Espanta-o, senhor Valleneres disse ela voltando-se para o arquivista - que uma florista me mande ramos de macieira? Mas, apesar de ser uma velha dama, conheço muita gente, tenho alguns amigos - acrescentou sorrindo por simplicidade, como geralmente acreditaram, mas antes, na minha opinião, porque achava picante envaidecer-se da amizade de uma florista quando dispunha de tão elevadas relações.

     Bloch se ergueu para ir, por sua vez, admirar as flores que a Sra. de Villeparisis estava pintando. 

- Não importa, marquesa - disse o historiador voltando à sua cadeira -, mesmo que ocorresse de novo uma dessas revoluções que têm tão frequentemente ensanguentado a história da França e, meu Deus, nos tempos em que vivemos, nunca se sabe - acrescentou, lançando um olhar circunspecto em torno, como para ver se não achava algum "mau pensador" no salão, embora não o esperasse -, com um talento como o seu e falando cinco línguas, a senhora poderia sempre estar segura de se livrar de apertos.

     O historiador da Fronda gozava de um certo repouso, pois havia esquecido suas insônias. Mas se lembrou de repente que não dormia há seis dias; então um duro cansaço, nascido de seu espírito, se apoderou de suas pernas, fê-lo curvar os ombros, e seu rosto desolado pendeu como o de um velho.
     Bloch quis fazer um gesto para exprimir sua admiração, mas, com uma cotovelada, derrubou o vaso onde estavam os ramos de macieira, e toda a água se espalhou pelo tapete. 

- Na verdade, a senhora tem dedos de fada - disse à marquesa o historiador, que, de costas naquele momento, não percebera o desastre de Bloch.

     Mas este julgou que tais palavras se aplicavam a ele próprio e, para esconder sob uma insolência a vergonha de seu gesto infeliz: 

- Isso não tem nenhuma importância - disse -, pois nem fiquei molhado.

     A Sra. de Villeparisis tocou a campainha e um lacaio veio enxugar o tapete e reunir os cacos de louça. Ela convidou os dois rapazes para a matinê, bem como a duquesa de Guermantes, a quem recomendou: 

- Lembre-se de avisar Gisele e Berthe - eram as duquesas de Auberjon e de Portefin - de que estejam aqui um pouco antes das duas, para me ajudar - como teria dito a mordomos extras que chegassem de antemão - a fim de preparar as compoteiras.

     Não tinha, para com os parentes principescos, nem mesmo com o Sr. de Norpois, nenhuma dessas amabilidades que mostrava para com o historiador, com Cottard, com Bloch ou comigo, e tais parentes pareciam não ter para ela outro interesse senão o de apresentá-los para satisfazer nossa curiosidade. É que sabia que não precisava incomodar-se com pessoas para quem não era uma mulher mais ou menos brilhante, e sim a irmã suscetível e econômica de seu pai ou de seu tio. Não lhe teria servido de nada procurar brilhar diante deles, a quem não poderia enganar quanto à sua situação, e que, melhor que ninguém, conheciam a sua história e respeitavam a estirpe ilustre de que ela descendia. Mas, principalmente, já não passavam, tirara ela, de um resíduo morto que não mais daria frutos, não a faziam mais conhecer os seus novos amigos, nem partilhar de seus prazeres. Ela só podia alcançar a sua presença, ou a possibilidade de falar deles, na sua recepção das cinco horas, como mais tarde em suas Memórias, lá que aquela era apenas uma espécie de ensaio, de primeira leitura em vez alta diante de um pequeno círculo. E na companhia que todos esses parentes nobres lhe prestavam para interessar, deslumbrar e arrastar a companhia dos Cottard, dos Bloch, dos autores dramáticos notórios, historiadores da Fronda de todos os tipos, era nessa última companhia que, para a Sra. de Villeparisis - à falta da parte do mundo elegante que não ia à sua casa -, se encontravam o movimento, a novidade, as diversões e a vida; era dessas pessoas que ela podia extrair vantagens sociais (o que bem valeria que as fizesse encontrar às vezes a duquesa de Guermantes, sem que jamais tivessem conhecido): jantares com homens notáveis cujos trabalhos a tinham interessado, uma ópera-cômica ou uma pantomima já encenada e que o autor fazia representar em sua casa, camarotes para espetáculos curiosos. Bloch se ergueu para ir embora. Dissera em voz alta que o incidente do vaso de flores não tinha qualquer importância, mas o que havia dito baixinho era diferente, mais diferente até do que pensava: 

- Quando não se tem criados perfeitamente adestrados para saber colocar um vaso; corre se o risco de molhar e mesmo de ferir os visitantes, é bom não ter esses lixos. - resmungava em voz baixa. Bloch era dessas pessoas suscetíveis e nervosas que não podem suportar terem feito uma asneira, que, no entanto, não confessam a si mesmos, e que lhes estraga o dia inteiro. Furioso, estava cheio de negros pensamentos, não mais queria frequentar a sociedade. Um pouco de distração era necessária naquele momento. Felizmente, em um segundo, a Sra. de Villeparisis logrou detê-lo. Seja por conhecer as opiniões de seus amigos e a vaga antissemita que principiava a se elevar, já por distração, ela não o apresentara às pessoas que ali se achavam. Entretanto, ele, que não tinha o traquejo da sociedade, julgou que, ao retirar-se, devia cumprimentá-los, por uma questão de cortesia, mas sem amabilidade; inclinou várias vezes a cabeça, enfiou o queixo barbudo no colarinho postiço, olhando sucessivamente cada um através do pince-nez, com ar de frieza e descontentamento.

     Mas a Sra. de Villeparisis o fez parar; tinha receio de lhe falar ainda do pequeno ato que devia ser representado em sua casa e, por outro lado, não teria gostado que ele partisse sem ter tido a satisfação, de conhecer o Sr. de Norpois (que ela se espantava de não ver entrar), e, embora tal apresentação fosse supérflua, pois Bloch já se resolvera a persuadir os dois artistas, de que falara, a vir cantarem de graça na casa da marquesa, no interesse de sua glória, numa das recepções frequentadas pela elite da Europa. Chegara mesmo a propor, a mais, uma atriz trágica, "de olhos garços, bela como Hera", que diria prosas líricas com a noção da "beleza plástica". Mas, diante de seu nome, a Sra. de Villeparisis havia recusado: era a amiga de Saint-Loup. 

- Tenho melhores notícias - disse-me ela ao ouvido -; creio que o caso deles está se azedando, e em breve estarão separados. Apesar de um oficial que desempenhou um papel abominável em toda a história - acrescentou. (Pois a família de Robert começava a nutrir ódio mortal ao Sr. de Borodino por ter dado licença para que fosse a Bruges, a instâncias do barbeiro, e acusava-o de favorecer uma ligação infame.) - É um sujeito muito vil - disse-me a Sra. de Villeparisis com o acento virtuoso dos Guermantes, mesmo os mais depravados. - Muito, muito vil repetiu, pondo três mm em muito. Sentia-se que ela não duvidava que ele entrasse de terceiro em todas as orgias. Mas, como a amabilidade era, na marquesa, o hábito predominante, sua expressão de severidade franzida em relação ao horrível capitão, cujo nome pronunciou com ênfase irônica: "o príncipe de Borodino", como mulher para quem o Império não tem valor, acabou num terno sorriso na minha direção, acompanhado de uma piscadela mecânica de vaga conivência comigo. 
- Gosto muito de Saint-Loup-en-Bray - disse Bloch -, embora ele seja muito sovina, porque é muito bem-educado. Gosto muito, não dele, mas das pessoas extremamente bem-educadas, é tão raro - continuou, sem se dar conta, porque ele próprio era muito mal-educado, de como suas palavras desagradavam. - Vou dar-lhes uma prova, que me parece bem típica, de sua perfeita educação. Encontrei-o certa vez com um rapaz, quando ia subir no seu carro de belas rodas, depois de ter ele próprio passado as correias esplêndidas em dois cavalos nutridos de aveia e cevada, e que não é preciso excitar com o chicote cintilante. Ele nos apresentou, mas não percebi o nome do rapaz, pois a gente nunca percebe o nome das pessoas a quem somos apresentados acrescentou rindo, porque se tratava de um gracejo de seu pai. - De Saint-Loup-en-Bray não deixou a sua simplicidade, não prestou atenções exageradas ao rapaz, não pareceu de modo algum incomodado. Ora, por acaso, soube, alguns dias depois, que aquele jovem era filho de Sir Rufus Israels!

     O fim dessa historieta pareceu menos chocante que o seu começo, pois permaneceu incompreensível para as pessoas presentes. Com efeito, Sir Rufus Israels, que parecia a Bloch e a seu pai uma personagem quase régia, diante da qual Saint-Loup devia tremer, era, pelo contrário, aos olhos do meio Guermantes, um estrangeiro arrivista, tolerado pela sociedade, e de cuja amizade não se tinha ideia de orgulhar-se, muito ao contrário! 

- Soube-o - disse Bloch pelo procurador de Sir Rufus Israels, - que é amigo de meu pai e um homem absolutamente extraordinário. Ah! Um indivíduo bastante curioso - acrescentou, com essa energia afirmativa, esse acento de entusiasmo que só emprestamos às convicções que não formamos por conta própria. - Mas diga-me - continuou Bloch, - falando baixinho comigo -, qual será a fortuna de Saint-Loup? Compreendes perfeitamente que, se pergunto isto, interessa-me tanto como os anos quarenta, mas do ponto de vista balzaquiano, compreendes. E nem ao menos sabes em que estará investida, se ele possui títulos franceses, títulos estrangeiros, terras?
 
     Não pude informá-lo de nada. Deixando de falar a meia voz, Bloch pediu em voz alta licença para abrir as janelas e, sem esperar a resposta, encaminhou-se para elas.
     A Sra. de Villeparisis disse que era impossível abri-las, que ela estava gripada. 

- Ah, isso deve lhe fazer mal - comentou Bloch, decepcionado. - Mas pode-se dizer que faz calor! - E pôs-se a rir, obrigando seu olhar a uma ronda pela assistência, numa indagação que reclamava apoio contra a Sra. de Villeparisis. Não o obteve no meio daquelas pessoas bem educadas. Seus olhos incendiados, que não tinham podido seduzir ninguém, retomaram resignados o tom sério; declarou, para disfarçar a derrota: - Está fazendo pelo menos vinte e dois graus. Vinte e cinco? Não me espanta. Estou quase suando. E não tenho, como o sábio Antenor, filho do rio Alfeu, a faculdade de mergulhar na onda paterna, para estancar o suor, antes de me meter numa banheira luzidia e de me untar de óleos perfumados. - E com aquela necessidade que temos de esboçar, para uso alheio, teorias médicas cuja aplicação seria favorável ao nosso próprio bem-estar: - Visto que a senhora julga que lhe faz bem! Quanto a mim, acho o contrário. É justamente isso o que a deixa gripada.

     Bloch mostrara-se encantado à ideia de conhecer o Sr. de Norpois.

- Gostaria - disse - de fazê-lo falar acerca do caso Dreyfus. 
- Aí está uma mentalidade que não conheço bem, e seria muito atraente ter uma intervenção com esse diplomata considerável - aduziu num tom sarcástico, para não parecer que se julgava inferior ao embaixador.

     A Sra. de Villeparisis lamentou que ele tivesse dito aquilo em voz alta, mas não ligou muita importância ao fato quando viu que o arquivista, cujas opiniões nacionalistas a traziam, por assim dizer, encadeada, achava-se longe demais para poder ouvir. Ficou mais chocada ao escutar que Bloch, arrastado pelo demônio de sua má-educação, que o tornara previamente cego, lhe perguntava, rindo pelo gracejo paterno: 

- Não terei lido, de sua autoria, um sábio estudo em que ele demonstrava com razões irrefutáveis que a guerra russo-japonesa devia terminar com a vitória dos russos e a derrota dos japoneses? E já não está um tanto caduco? Parece-me que foi ele quem vi olhar para sua cadeira, antes de ir sentar-se nela, deslizando como se andasse sobre rodas. 
- Nunca na vida! Espere um instante - acrescentou a marquesa -, não sei o que poderá estar fazendo.

     Tocou a campainha e, quando o criado entrou, como ela não dissimulava de modo algum e até gostava de mostrar que seu velho amigo passava a maior parte do tempo em sua casa: 

- Vá logo dizer ao Sr. de Norpois que venha; ele está catalogando papéis no meu escritório; disse que viria dentro de vinte minutos e já faz quase duas horas que estou esperando. Ele lhe falará do caso Dreyfus, de tudo aquilo que o senhor quiser - disse ela a Bloch em tom amuado -; não aprova muito o que está acontecendo.

     Pois o Sr. de Norpois estava em más relações com o ministério atual, e a Sra. de Villeparisis, conquanto ele não se permitisse levar-lhe pessoas do governo (ainda assim ela mantinha sua altivez de dama da alta aristocracia e permanecia alheia e acima das relações que ele era obrigado a cultivar), estava, por meio dele, a par do que se passava. Da mesma forma, os políticos do regime não ousariam pedir ao Sr. de Norpois que os apresentasse à Sra. de Villeparisis. Porém, vários deles tinham ido procurá-lo na casa dela, no campo, quando precisaram de seu concurso em circunstâncias graves. Conheciam o endereço. Iam ao castelo. Não viam a castelã. Mas no jantar ela dizia: 

- Senhor, sei que vieram incomodá-lo. Os negócios vão melhor? Não está com muita pressa? indagou a Sra. de Villeparisis à Bloch. 
- Não, não, eu queria partir porque não me sinto muito bem; talvez seja mesmo ocasião de fazer uma estação de cura em Vichy por causa da minha vesícula biliar - disse ele, articulando estas palavras com uma ironia satânica. 
- Pois veja: o meu sobrinho-neto Châtellerault deve ir até lá; o senhor poderia combinar ir junto. Será que ele ainda está aqui? Ele é muito amável, o senhor sabe - disse a Sra. de Villeparisis, talvez de boa-fé e pensando que duas pessoas que ela conhecia não tinham motivo para não se juntarem. 
- Oh, não sei se isso lhe agradará, não o conheço... quase; lá está ele. - disse Bloch, confuso e deslumbrado.

     Certamente o mordomo não executara de modo completo a comissão de que acabara de ser encarregado para o Sr. de Norpois. Pois este, para fazer acreditar que chegava de fora e que ainda não tinha visto a senhora da casa, agarrou seu chapéu, ao azar, na sala de espera, e beijou cerimoniosamente a mão da senhora de Villeparisis, perguntando como se encontrava, com o mesmo interesse que se manifesta depois de uma larga ausência. Ignorava que a marquesa de Villeparisis havia tirado de antemão toda verossimilhança àquela comédia, à qual, pelo resto, pôs fim levando o senhor de Norpois e Bloch a um salão vizinho. Bloch, que tinha visto todos os cumprimentos que os demais dirigiam ao que ainda não sabia que fosse o senhor de Norpois, assim como as saudações compassadas, graciosos e profundos com que o embaixador respondia àqueles, sentia-se inferior a, todo aquele cerimonial, e, molestado ao pensar que jamais se dirigia a ele, havia-me dito, por alardear de desenvoltura: 

«Quem é esse pedaço de imbecil?»

     Possivelmente, pelo resto, como todas as saudações do senhor de Norpois feriam o melhor que havia em Bloch; a franqueza mais direta de um ambiente moderno; encontrava-os em parte sinceramente ridículos. Como quer que fosse, deixaram de lhe parecer tais, e inclusive encantaram-no o instante em que foi ele mesmo, Bloch, quem se encontrou convertido em objeto deles. 

- Senhor embaixador - disse a senhora de Villeparisis - quero lhe apresentar este cavalheiro. O senhor Bloch, o senhor marquês de Norpois.

     Apesar da maneira que tinha de tratar ao senhor de Norpois com aspereza, mostrava particular empenho em chamá-lo «senhor embaixador», por urbanidade, por exagerada consideração à categoria de embaixador, consideração que lhe tinha inculcado o marquês, e, enfim, por aplicar essas maneiras menos familiares, mais cerimoniosas para com um determinado homem, que, no salão de uma mulher distinta, ao contrastar com a liberdade de que esta usa com seus demais assíduos, indicam imediatamente ser seu amante.
     O senhor de Norpois afogou seu olhar azul em sua barba branca, dobrou profundamente sua elevada estatura como se inclinasse acima de tudo o que de notório e imponente representava para ele o nome de Bloch, e murmurou: 

«Encantado!», enquanto seu jovem interlocutor, lisonjeado, mas julgando que o célebre diplomático ia demasiado longe, retificou presunçoso e disse: 
«Nada disso! Ao contrário, que está encantado sou eu!»

     Mas esta cerimônia que o senhor de Norpois, por amizade à senhora Villeparisis, renovava com cada desconhecido que sua antiga amiga lhe apresentava, ainda não parecia à esta suficiente cortesia para com Bloch, ao que disse: 

- Mas pergunte-lhe tudo o que deseja saber! Leve-lhe ao lado, se for mais cômodo; ficará encantado de conversarem; parece-me que queria falar da questão do caso Dreyfus -acrescentou, sem preocupar-se se agradava ou não o senhor Norpois; mais nem menos que não lhe tivesse ocorrido solicitar sua vênia ao retrato da duquesa de Montmorency antes de fazer que o iluminassem para que o visse o historiador, ou consultar o parecer do chá antes de servir-lhe uma taça. 
- Fale alto - disse ao Bloch-, é um pouco surdo; mas lhe dirá tudo o que deseje saber; conheceu muito bem Bismarek e Cavour. - Não é verdade - disse com força - que conheceu muito bem Bismarck? 
- Você tem alguma coisa em preparação? - perguntou-me o senhor de Norpois, fazendo me um gesto de inteligência enquanto estreitava-me a mão cordialmente. Aproveitou disso para descarregar cortesmente o chapéu, que eu acreditara que devia trazer consigo em sinal de cerimônia, porque acabava de perceber que era o meu que pegara, por acaso. - Havia-me mostrado uma pequena obra um tanto traçada, em que se dedicava a “cortar cabelos em quatro.” Daria-lhe francamente minha opinião; o que fez não valia a pena ser colocado no papel. Prepara algo? Tem enchido o miolo com Bergotte, se não me falhe a lembrança? 
- Ah, não fale mal de Bergotte! - exclamou a duquesa 
 - Não discuto seu talento de pintor; a ninguém lhe ocorreria semelhante coisa, duquesa. Sabe gravar com o buril ou à água-forte, já que não pinta a brochadas, como Cherbuliez, uma vasta composição. Mas parece-me que nosso tempo incorre em uma confusão de gêneros, e que o que é próprio do novelista é urdir uma intriga e levantar os corações mas bem que esmerar-se em desenhar à ponta seca um frontispício ou uma vinheta. Tenho que ver seu pai no domingo, em casa do bom A. J. - acrescentou, voltando-se para mim.

     Por um instante esperei, ao vê-lo falar com a senhora de Guermantes, que acaso me emprestasse para ir a casa desta a ajuda que me tinha negado para, ir ao senhor Swann. 

- Outra de minhas grandes admirações – disse ele - é Elstir. Parece que a duquesa de Guermantes tem alguns seus quadros maravilhosos, especialmente o admirável molho de rabanetes que vi de passada na Exposição e que tanto eu gostaria de voltar a ver; que obra de mestre é esse quadro! E, em efeito, de ter sido eu um homem destacado e se me tivessem perguntado que obra pictórica preferia, teria chamado aquele molho de rabanetes. 
- Uma obra de mestre? - exclamou o senhor de Norpois com expressão de estranheza e de censura. Nem sequer tem a pretensão de ser um quadro, a não ser um simples esboço (tinha razão). Se o chama você obra de mestre a esse esboço, o que diria você para a Virgem de Hébert ou do Dagnan-Bouveret? - Já ouvi que rechaçava o amigo de Roberto - disse a senhora do Guermantes a sua tia depois que Bloch levou à parte ao embaixador; - acredito que nada tem que lamentar com isso, já sabe que é uma calamidade, não tem nem faísca de talento, e ainda por cima é grotesco. 
- Mas, como a conhece, duquesa? - disse o senhor de Argencourt. 
- Pois então o senhor não sabe que ela recitou em minha casa antes que em qualquer outro lugar? Nem por isso me orgulho do fato - disse rindo a Sra. de Guermantes, feliz no entanto, já que falavam nessa atriz, de fazer saber que ela tivera a primazia de seus ridículos. - Vamos, só me resta partir - acrescentou sem se mexer.

     Acabava de ver entrar o marido, e, pelas palavras que pronunciava, aludia ao cômico de parecerem estar fazendo juntos uma visita de núpcias, e de modo algum às relações muitas vezes difíceis existentes entre ela e aquele imenso rapagão que ia envelhecendo, mas que continuava a levar sempre uma vida de jovem. Passeando pelo grande número de pessoas que rodeavam a mesa de chá o olhar afável, malicioso e um tanto ofuscado pelos raios do sol poente, de suas pequenas pupilas redondas e precisamente incrustadas no olho como "moscas" de alvo, que sabia visar e acertar tão perfeitamente, como excelente atirador que era, o duque avançava com uma lentidão maravilhada e prudente, como se, intimidado por uma tão brilhante assembléia, temesse pisar nos vestidos e atrapalhar as conversas. Um permanente sorriso de bom rei de Yvetot, levemente embriagado, uma das mãos meio estendida, flutuando, como a barbatana de um tubarão, ao lado do peito, e que ele deixava ser apertada indistintamente por seus velhos amigos e pelos desconhecidos que lhe eram apresentados, lhe permitiam, sem precisar fazer um só gesto, nem interromper a sua ronda complacente, indolente e régia, satisfazer a solicitude de todos, murmurando apenas: "Boa-tarde, meu velho", "Boa-tarde, meu caro amigo", "Encantado, senhor Bloch", "Boa-tarde, Argencourt", e junto a mim, que fui o mais favorecido, ao ouvir meu nome: "Boa-tarde, meu pequeno vizinho, como está seu pai? Que belo homem!" Só deu grandes demonstrações de atenção à Sra. de Villeparisis, que o saudou com um aceno de cabeça, tirando uma das mãos do aventalzinho.
     Extraordinariamente rico, num mundo onde a gente o é cada vez menos, tendo assimilado à sua pessoa, de modo permanente, a noção dessa enorme fortuna, a vaidade do grão-senhor era nele duplicada pela do homem endinheirado, a educação refinada do primeiro sendo o bastante para controlar a suficiência do segundo. Compreendia-se, aliás, que os seus sucessos com as mulheres, que constituíam a infelicidade da sua, não fossem devidos exclusivamente ao seu nome e à sua fortuna, pois ele ainda mostrava grande beleza, com um perfil que tinha a pureza e a nitidez de contornos de um deus grego. 

- Na verdade, ela representou em sua casa? - perguntou o Sr. de Argencourt à duquesa. 
- Ora, ela veio recitar, com um buquê de lírios na mão e outros lírios "sôbe" o vestido. (A Sra. de Guermantes, como a Sra. de Villeparisis, afetava pronunciar certos vocábulos de modo bastante provinciano, embora de forma alguma rolasse os rr como sua tia.) 

     Antes que o Sr. de Norpois, constrangido e forçado, levasse Bloch para a pequena sacada onde poderiam conversar a sós, voltei um instante para junto do velho diplomata e insinuei-lhe uma palavra a respeito da cadeira acadêmica que meu pai almejava. A princípio, ele quis adiar a conversa para mais tarde. Mas objetei que iria partir para Balbec. 

- Como! Você vai de novo a Balbec? Mas de fato é um verdadeiro globe-trotfer! -

continua na página 99...
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Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Todos se aproximaram da Sra. de Villeparisis)
O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Depois, ouviu-me)
Volume 4
Volume 5
Volume 7

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