O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
5.continuando...
Tal narrativa deixou Lizavéta
Prokófievna completamente confusa. Perguntar-se-á: por quê? É que ela estava
evidentemente em um estado de espírito mórbido. Sua apreensão subiu ao ponto
extremo com a história do ouriço. Que significaria esse ouriço? Que convenção
estaria nisso subentendida? Que representaria ele? Qual seria a mensagem
cifrada? E ainda por cúmulo, Iván Fiódorovitch que aconteceu estar presente
durante a conversa, estragou todo o negócio com a sua resposta. Na sua opinião
não havia hieróglifo nem mensagem de qualquer espécie, o ouriço “era
simplesmente um ouriço e nada mais do que um ouriço - no máximo
significando um amistoso desejo de esquecer o amuo recente e recomeçar; em
uma palavra, tudo era travessura, mas inocente e perdoável”.
Devemos notar, entre parênteses, que ele conjeturara direito.
O príncipe tinha
voltado para casa depois de ter sido ridicularizado e despedido por Agláia, tendo
ficado sentado a um canto, mais de meia hora, no mais negro dos desesperos
quando, inesperadamente, surgiu Kólia com o ouriço. E o céu logo clareou. Foi
como se o príncipe tivesse ressuscitado. Deu em perguntar uma porção de coisas
a Kólia, suspenso em cada palavra dita por ele, repetindo as perguntas mais de
dez vezes, rindo como uma criança e continuamente apertando as mãos dos dois
garotos engraçados que o examinavam com tanta franqueza.
A conclusão de tudo
era que Agláia o perdoara e que poderia ir vê-la outra vez. Iria à noite, e isso para
ele não era o fato principal, mas o único.
- Que crianças que vocês são, Kólia!
E... e... que belo é que vocês sejam assim crianças! - exclamara, por fim,
jubiloso.
- O fato puro é que ela está apaixonada pelo senhor, príncipe, isso é que
é tudo! - respondera Kólia com autoridade, categoricamente.
O príncipe enrubesceu, mas desta vez não respondeu nada, tendo Kólia
simplesmente rido e batido palmas. Um minuto depois ria o príncipe também; e desde então começou a olhar para o
relógio cada cinco minutos, para ver como o tempo custava a passar, achando
que demorava para chegar a noite. Mas o temperamento da Sra. Epantchíná
sobrepujou qualquer senso de conveniência; por fim, não pôde deixar de
desafogar a sua excitação paroxística.
A despeito dos protestos do marido e das
filhas, imediatamente mandou chamar Agláia, com o fim de lhe fazer a fatal
pergunta e arrancar-lhe uma resposta perfeitamente clara e decisiva. “Para pôr
um fim nisso tudo, de uma vez para sempre, para ficar livre e não ter de voltar
ao assunto de novo! Se esperar até amanhã, morro sem vir a saber!” E foi então
que eles se deram conta do absurdo ponto a que tinham levado as coisas. Não
puderam extrair de Agláia senão fingida admiração, cólera, risadas e gracejos
para com o príncipe e para quantos a interrogavam.
Lizavéta Prokófievna permaneceu nos seus aposentos até ao anoitecer, só
descendo para o chá na hora em que o príncipe era esperado. Aguardava a vinda
dele em pânico e quase caiu com um ataque quando ele apareceu. O príncipe,
por sua parte, entrou timidamente, como que procurando um lugar conveniente,
olhando para os olhos de todo o mundo, e com o ar de querer indagar de todos
eles por que era que Agláia não estava já na sala, fato que logo o deixou
preocupado.
Essa noite não estava presente nenhuma outra visita. A família
estava só. O Príncipe Chtch... ainda se achava em Petersburgo, ocupado com os
negócios do tio de Evguénii Pávlovitch. “Se esse, ao menos, estivesse aqui, para
dizer qualquer coisa, fosse o que fosse” - disse Lizavéta Prokófievna a si própria,
deplorando aquela ausência. Iván Fiódorovitch mostrava-se com um ar
espantado; as irmãs permaneciam sérias e, de propósito, ou não, caladas.
Lizavéta Prokófievna ficou sem saber como iniciar a conversa.
Finalmente, vigorosamente criou ânimo e descompôs a estrada de ferro,
encarando o príncipe como em um resoluto desafio. Pobre Míchkin! Agláia não
descia e ele estava em palpos de aranha. Perdendo a cabeça e mal podendo
pronunciar as palavras, exprimiu a opinião de que melhorar a linha seria
excessivamente prático; mas Adelaída riu de repente, e ele ficou outra vez
esmagado. Foi nesse instante que Agláia surgiu.
Calmamente e com dignidade,
fez uma cerimoniosa curvatura para o príncipe e solenemente se foi sentar no
lugar mais à vista, junto à mesa redonda.
De lá olhava para o príncipe, indagadoramente. E todo o mundo percebeu
que era chegado o momento em que todas as dúvidas seriam dissipadas. Foi
então que ela lhe perguntou firmemente e com ar quase de reprimenda:
- Recebeu o meu ouriço?
- Recebi - respondeu o príncipe, com o coração sucumbido; e ficou escarlate.
- Então explique logo o que pensa a respeito. Isso é essencial para a paz de
espirito de mamãe e de toda a família.
- Agláia, minha filha, Agláia... - começou o general subitamente alvoroçado.
- Mas que despropósito, menina! - disse Lizavéta Prokófievna, alarmada, sem
saber direito por quê.
- Não vejo em que seja isso um despropósito, mamãe! - respondeu logo a filha,
desabridamente - Eu hoje mandei ao príncipe um ouriço, e quero saber a opinião
dele. Então, príncipe?
- Mas que espécie de opinião, Agláia Ivánovna?
- Sobre o ouriço.
- Quereis dizer, suponho eu, Agláia Ivánovna, que desejais saber como eu
recebi.., o ouriço... ou, melhor, como encarei o fato de.. me mandardes.., o
ouriço, isto é... Em tal caso, a meu ver, creio que, de fato...
Faltou-lhe o ar e
emudeceu.
- Bem, não disse lá grande coisa - sentenciou Agláia, depois de esperar cinco
segundos. - Muito bem. Concordo em que ponhamos de lado o ouriço. Mas
ficarei muito contente se puder pôr um fim a uma série de mal-entendidos que se
veem acumulando entre nós. Quero saber pessoalmente se pretende me pedir
em casamento, ou não?
- Deus do Céu! - rompeu do peito de Lizavéta Prokófievna.
O príncipe
sobressaltou-se e recuou; Iván Fiódorovitch ficou petrificado, as irmãs fecharam
os semblantes.
- Não minta, príncipe. Diga a verdade. Por sua causa venho sendo perseguida por
estranhas perguntas. Há qualquer fundamento para que tais perguntas se deem?
Então?!...
- Eu não vos fiz o meu pedido, Agláia Ivánovna - o príncipe subitamente
reanimado. - Mas sabeis quanto vos amo e quanto creio em vós.., mesmo agora.
- O que eu estou perguntando é.. se está pedindo, ou não está pedindo a minha
mão!
- Estou - respondeu Míchkin com o coração opresso.
Seguiu-se um movimento
geral de pasmo.
- A coisa não é absolutamente assim, meu caro amigo - atalhou Iván
Fiódorovitch, violentamente agitado - Isto... isto é quase impossível, se é que é assim, Agláia. Perdoe, príncipe,
perdoe,. meu caro amigo!... Lizavéta Prokófievna! - e se voltou pedindo o auxílio
da esposa - Tu deves tomar parte nisto...
- Eu não! Recuso-me! - exclamou
Lizavéta Prokófievna sacudindo as mãos.
- Deixe que eu fale, mamãe. Neste
caso eu valho alguma coisa; o momento capital da minha sorte está sendo
decidido (esta foi a expressão usada por Agláia). Eu quero decidir por mim
mesma e fico contente de o fazer perante todos aqui. Permita que lhe pergunte,
príncipe: se “acaricia tal intenção”, de que modo se propõe a assegurar a minha
felicidade?
- Para falar a verdade, não sei, Agláia Ivánovna; como responder-vos
a esta pergunta... Responder o quê?
E, além do mais, é isso necessário?
- Parece-me que está embaraçado e com falta de ar. Descanse um pouco e
refaça o seu espírito. Beba um copo de água, embora daqui a pouco lhe tragam
um pouco de chá.
- Eu vos amo, Agláia Ivánovna, eu vos amo muitíssimo, não amo senão a vós e...
Não gracejeis, imploro-vos.., eu vos amo muitíssimo.
- Trata-se de um assunto
importante, aliás, e não somos crianças; devemos encará-lo praticamente...
Tenha a bondade de explicar qual é a sua fortuna!
- Agláia, que é isso? Que é que
você está fazendo? Não se trata disso, absolutamente não se trata disso - murmurou Iván Fiódorovitch, desapontado.
- Que vergonha! - disse Lizavéta
Prokófievna em um balbucio audível, ao que Aleksándra, também em um
balbucio, rematou. - Ela está fora do seu juízo.
- A minha fortuna?... Isto é, quanto tenho em dinheiro? - disse o príncipe,
aparvalhado.
- Justamente!
- Atualmente... eu tenho cento e trinta e cinco mil rublos - afirmou o príncipe,
corando.
- E é tudo? - disse Agláia, alto, com franca admiração, sem nenhum fingido
rubor - Não tem importância, todavia, principalmente vivendo com economia. Pensa
entrar para algum cargo?
- Eu estava pensando em me preparar para os exames, a ver se me torno um
preceptor...
- Muito apropriado; e nem há dúvida que isso aumentará a sua renda.
Pretende então vir a ser um gentil-homem da câmara?
- Gentil-homem da
câmara? Nunca pensei nisso, mas...
Mas a essa altura as duas irmãs não puderam
resistir e caíram na gargalhada. Adelaída já havia desde antes reparado pelos
traços contraídos do rosto de Agláia sintomas de iminente e irreprimível risada
que ela estava a prender com quanta força tinha. Olhou Agláia
ameaçadoramente para as irmãs que ainda riam, mas um segundo depois
também ela desandou em um acesso de gargalhada frenética e quase histérica.
Por fim se levantou e saiu correndo da sala.
- Eu já estava vendo que tudo era brincadeira e nada mais! - exclamou Adelaída.
- Desde o começo, desde a história do ouriço.
- Não, isso não permitirei. De
modo algum - e exasperada, fervendo de raiva, Lizavéta Prokófievna se
precipitou atrás de Agláia.
As irmãs correram lá para dentro, imediatamente,
atrás dela. O príncipe ficou sozinho na sala, com o chefe da família.
- Isso agora... Poderia você imaginar uma coisa destas, Liév Nikoláievitch?
exclamou abruptamente o General Epantchín, mal sabendo o que deveria dizer. - Sim, seriamente, diga-me!
- Vejo que Agláia Ivánovna está se rindo de mim - disse Míchkin, tristemente.
- Espere um pouco, meu rapaz. Vou até lá e você espere aí um pouco, porque...
afinal de contas, você, no mínimo, Liév Nikoláievitch, deve me explicar já agora
como foi que tudo isso aconteceu, e que significa isto encarado em conjunto, por
assim dizer?! Você há de concordar, meu rapaz - eu sou o pai dela! Seja como
for, sou pai... E todavia não compreendo nada; que você ao menos me ponha a
par.
- Eu amo Agláia Ivánovna, ela sabe disso... e eu acho que o sabe há muito tempo.
O general encolheu os ombros.
- Estranho, estranho!... E você gosta mesmo muito dela?
- Muito.
- Pois tudo isso me parece muito estranho. Isto é uma surpresa e um tal golpe que
eu... Quer saber de uma coisa, meu rapaz, não se trata de fortuna (embora eu
esperasse que você tivesse um pouco mais), mas é a felicidade de minha filha...
De fato... está você em condições de assegurar... a felicidade dela?
E... e... que significa isso? É brincadeira ou é verdade, da parte dela? Não
quanto a você, mas quanto a ela, me refiro eu agora.
Nisto se ouviu a voz de
Aleksándra, lá da porta, chamando o pai.
- Espere um pouco, meu rapaz, espere
um pouco! Espere um pouco e fique aí a cogitar. Voltarei já – disse
apressadamente, quase que em alarma, avançou lá para dentro em resposta ao
chamado.
Encontrou a mulher e a filha, uma nos braços da outra, misturando as
lágrimas. Eram lágrimas de felicidade, de ternura e reconciliação. Agláia estava
beijando as mãos da mãe, as faces e os lábios. Permaneciam apertadas em um
grande amplexo.
- Olhe para isto, Iván Fiódorovitch. Aqui está ela, como realmente é - dizia
Lizavéta Prokófievna.
Agláia escorregou aquele seu rosto feliz, banhado de lágrimas, até ao seio
materno, e depois olhou para o pai; riu alto, atirou-se sobre ele, abraçou-o
calorosamente, beijando-o várias vezes. Depois se atirou de novo sobre sua mãe,
e escondeu o rosto completamente no seio dela, sem que ninguém o pudesse ver.
E logo desatou a chorar outra vez. Lizavéta Prokófievna cobria-a com a ponta da
sua manta.
- Que é que nos estás fazendo, tu, cruel menina, é só o que eu quero
saber! - dizia, mas jubilosamente, como se já agora pudesse respirar mais
livremente.
- Como sou cruel! Como sou cruel! - concordava ela. - E ruim! Não
valho nada. Dize isso a papai. Oh! Sim, ele está aqui. Papai, estás aqui? Estás
ouvindo? - e riu por entre as lágrimas.
- Minha querida! Meu ídolo! - o general
beijava-lhe as mãos, todo resplandecente de felicidade. Agláia não retirou a
mão. - Assim, pois, tu então amas esse jovem?
- Não! Não posso suportar o teu
jovem. Não o tolero! - exclamou Agláia, se inflamando repentinamente, e
erguendo a cabeça. - E se tu, papai, ousas outra vez... Eu já disse, papai, eu quero
dizer, papai, estás ouvindo, eu quero significar que...
E certamente que seus modos eram veementes. Ficou vermelha e os seus olhos
cintilaram. O pai quedou estático e sem jeito. Mas Lizavéta Prokófievna lhe fez
um sinal por detrás da filha e ele tomou tal sinal como significando: “Não faças
perguntas.”
- Se assim é, meu anjo, seja como quiseres, é a ti que cabe decidir; ele ficou
esperando lá, sozinho. Deveremos nós dar-lhe a entender que se deva ir embora?
Iván Fiódorovitch, por seu turno, piscou para a esposa.
- Não, não, isso não é necessário. E nem seria delicado. Tu vais até ele, tu
mesmo, papai. E eu entrarei logo a seguir. Desejo pedir perdão a esse bom rapaz,
porque feri os seus sentimentos.
- Sim, e de um modo terrível - concordou Iván
Fiódorovitch, muito sério.
- Bem, então... o melhor é ficarem aqui e eu entro
sozinha. Logo imediatamente depois entram todos. Mas venham imediatamente,
mal eu esteja chegando; será melhor.
continua página 466...
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Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (5b) - Tal narrativa deixou Lizavéta Prokófievna
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