Elias Canetti
O RIO
O que mais chama a atenção no rio é sua direção. Ele se move entre margens estáticas, a partir das quais pode-se ver incessantemente o seu correr. A inquietude de suas massas de água sucedendo-se ininterruptamente, enquanto o rio for verdadeiramente um rio; o caráter decidido de sua direção conjunta, ainda que esta se altere aqui ou ali; a determinação com que caminha para o mar; a absorção de outros rios menores — tudo isso possui inegavelmente o caráter da massa. E o rio tornou-se de fato um símbolo da massa; não tanto da massa em si, mas de algumas de suas manifestações isoladas. A limitação de sua largura, que não pode aumentar incessante e inesperadamente, faz com que o rio, como símbolo da massa, assuma sempre um caráter provisório. Ele simboliza as procissões; as pessoas que assistem a elas da calçada são como as árvores às margens do rio; o fixo acolhe o fluido. As passeatas nas grandes cidades possuem um caráter semelhante ao do rio. Dos diversos bairros chegam afluentes, até que a verdadeira corrente principal tenha se formado. Os rios simbolizam particularmente o tempo que a massa leva para se formar; o tempo dentro do qual ela ainda não se tornou o que virá a ser. Falta ao rio a capacidade de propagar-se do fogo e a universalidade do mar. Em compensação, a direção é levada ao extremo; e, sendo o fluxo incessante, ela está presente desde o início, por assim dizer — uma direção que parece inesgotável e que é, talvez, levada ainda mais a sério em sua origem do que em sua meta.
O rio é a vaidade da massa; é a massa exibindo-se. O ser visto não é
menos importante que a direção. Sem margem não há rio; o corredor
de vegetação que o ladeia é como o de pessoas. O rio tem uma pele, por
assim dizer, que deseja ser vista. Todas as formações de caráter fluvial —
como as procissões e as passeatas — exibem o mais possível de sua
superfície: enquanto podem, elas se estendem, oferecendo-se ao maior
número possível de espectadores. Querem ser admiradas ou temidas.
Sua meta imediata não importa realmente; importante é a extensão da
distância que as separa desta, o comprimento das ruas pelas quais se
estendem. No que se refere, porém, à densidade em meio aos
participantes, esta não se reveste de um caráter demasiado rígido. Ela é
maior entre os espectadores, e uma espécie particular de densidade tem
origem entre aqueles e estes. Tal densidade possui algo de uma
aproximação amorosa entre duas criaturas bastante compridas, uma das
quais envolve a outra e a faz, lenta e carinhosamente, deslizar por seu
corpo. O crescimento dá-se a partir da nascente, mas por meio de
afluentes predefinidos espacialmente com precisão.
No rio, a igualdade das gotas é óbvia, mas ele carrega uma grande
diversidade de coisas consigo, e o que carrega é mais determinante e
importante para sua aparência do que as cargas contidas no mar, que
desaparecem sob sua superfície gigante.
Resumindo-se tudo, somente com restrições poder-se-ia designar o
rio um símbolo de massa. Ele o é de um modo deveras distinto do fogo,
do mar, da floresta ou do trigo. O rio é um símbolo de uma situação
ainda sob controle, anterior à erupção e anterior à descarga,
simbolizando mais a ameaça do que a realidade destas: ele é o símbolo
da massa lenta.
continua página 128...
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Leia também:
Massa e Poder - A Massa (Massa Aberta e Massa Fechada)
Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
Massa e Poder - O Rio
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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