O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
2..continuando...
Apressadamente se foi, indignadíssimo. Nina Aleksándrovna, Kólia e Ptítsin
embarafustaram atrás dele.
- Viu o que você fez? - disse Vária ao irmão. - Vai rodar por aí, outra vez, na
certa! Isto é uma desgraça!
- Não furtasse! - vociferou Gánia, salivando de raiva, nisto os seus olhos
encontraram os de Ippolít. Então, virando-se para ele, com firmeza, mas na
realidade encobrindo o sobressalto que sentira, proferiu: - Quanto ao senhor,
devia lembrar-se, afinal de contas, que está em casa alheia, usufruindo uma
hospitalidade e não para irritar um velho que positivamente está fora do seu juízo.
Ippolít também ficou um pouco confuso; mas se refez instantaneamente.
- Não
concordo muito com isso. Não creio que seu pai não esteja em seu juízo perfeito.- falava com absoluta calma - Muito pelo contrário. Parece-me até que,
ultimamente, ele vem tendo mais senso. O senhor não pensa assim? Tornou-se
tão desconfiado, tão precavido! Espreita, acautela-se, pesa as palavras... E
quando começou a me seringar com essa história de Ieropiégov ou Kapitóchka,
logo percebi que tinha um intuito. Mera concepção pra ajeitar uma entrada...
- Escute lá! Vá para o diabo! Pouco se me dá que ele tenha querido ou não ajeitar
fosse o que fosse!... Peço-lhe que não tente suas evasivas em mim - guinchou
Gánia - Se o senhor também está a par do que lançou o velho neste estado (e
reparei que o senhor andou estes cinco dias aqui, espionando, e, a tal ponto, que
nem mesmo disfarçou), se, pois, também está ciente, mais uma razão para não
irritar esse pobre infeliz e nem aborrecer minha mãe, exagerando o caso! Está
farto de ter entendido que foi tudo burrada da bebedeira, apenas, e não mais;
coisa enfim que não prova nada, que nem merece atenção! Mas preferiu
espionar e atormentar porque o senhor é...
- Um parafuso! - e Ippolít riu.
- Porque o senhor é uma criatura abjeta; teve o desplante de atormentar durante
meia hora uma porção de gente, intimidando-a com a afirmação de que se ia
matar com uma pistola que afinal nem carregada estava, e se deu ao papel
de se sujeitar a uma exibição dessa ordem, seu saco ambulante de fel, que não é
capaz nem mesmo de se suicidar sem fazer o próprio panegírico, para afinal até
na morte falhar como já falhou no resto! E eu lhe dei hospitalidade, mediante a
qual começou a engordar, a parar de tossir! E, em paga...
- Peço permissão
somente para duas palavras: estou na casa de Varvára Ardaliónovna, e não na
sua! Se não incido em equívoco, o senhor também está usufruindo a hospitalidade
do Senhor Ptítsin. Mas, há quatro dias, encarreguei minha mãe de me procurar
cômodos aqui em Pávlovsk e de se mudar também ela para aqui, visto o clima
me convir, o que não quer dizer que eu tenha engordado e não tussa mais.
Comunicou-me minha mãe, ontem à noite, que um aposento está à minha
espera. Assim, pois, me apresso em lhe participar que, por minha parte,
agradecendo a bondade que sua mãe e sua irmã me dispensaram, me mudarei
ainda hoje, conforme já resolvi desde a noite passada. E desculpe tê-lo
interrompido, visto me parecer que o senhor ainda tem muito que dizer.
- Oh! Se é assim! - disse Gánía, contraindo-se.
- Se é assim, permita que me
sente - acrescentou Ippolít, sentando-se com perfeito ademã na cadeira onde
antes estivera o general. - Além do mais, estou doente, o senhor bem sabe. Bem, agora estou à sua disposição para escutar o que provavelmente vai ser a nossa
última conversa, ou, usando de um maneirismo mais lato, o nosso último
encontro.
Gánia subitamente se sentiu envergonhado.
- Não pense que estou aqui
para me diminuir, entretendo-me em palestra com o senhor. E caso...
- Não é preciso ficar exaltado - interrompeu Ippolít - No dia exato em que vim
para aqui, a mim mesmo fiz o voto, ou promessa, de não me negar o prazer de
saldar antigas contas com o senhor, e da maneira mais cabal e eficaz, na hora da
nossa despedida. Minha intenção é fazer isso agora, mas depois do senhor,
naturalmente.
- Peço-lhe que saia desta sala!
- Eu achava melhor o senhor falar! O senhor sabe que se arrependerá se não
desembuchar!
- Contenha-se, Ippolít. Isso tudo é tão degradante! Faça o favor de ficar quieto - disse Vária
- Tão só para obedecer a uma dama - riu Ippolít, levantando-se. - Com a maior
boa vontade, Varvára Ardalióvna. Pela senhora estaria pronto a acabar
definitivamente, mas tenha paciência, pois umas certas explicações entre mim e
seu irmão são absolutamente essenciais e, por nada deste mundo, eu me iria,
deixando um mal-entendido.
- Em letras redondas, o senhor não passa de um traficante de escândalos - gritou
Gánia - e só por isso quer se despedir com um escândalo.
- Ora aí está, vê o
senhor? - observou Ippolít, friamente. - Volta ao assunto. Aliás eu já lhe tinha
feito ver que o senhor lastimaria se não desembuchasse. Mais uma vez lhe abrirei
o caminho. e agora estou à espera de suas palavras.
Gavríl Ardaliónovitch
encarou-o com o maior desdém.
- E o senhor a não querer falar. Quer me dar a
entender, com isso, que prefere guardar a parte que lhe compete! Faça como lhe
aprouver. Por minha vez, serei tão breve quanto possível. Hoje, já por duas ou
três vezes, fui censurado por ter aceito a sua hospitalidade. Isso não é bonito! Ao
convidar-me para vir ficar aqui com o senhor. o senhor ensaiou engodar-me,
contando que eu pagaria as culpas do príncipe. O senhor veio a saber, além disso,
que Agláia Ivánovna, demonstrando simpatia por mim, lera a minha confissão.
Supondo, não sei por que, que eu estava pronto a me devotar completamente aos
seus interesses, o senhor cuidou que eu o ajudasse a seu modo. Não quero nem
tenho tempo para amiudar esta explicação. Tampouco peço confissões, ou
termos fixos, da sua parte. Basta que eu deixe isso para a sua consciência,
entendendo-os agora, cabalmente, um ao outro.
- Só Deus sabe que
complicações o senhor faz com as coisas mais comuns! - refletiu Vária.
- Eu já expliquei: esse indivíduo é um traficante de escândalos, um imundo
colegial! - reafirmou Gánia.
- Com licença, Varvára Ardaliónovna. preciso continuar. Ao príncipe,
naturalmente, não posso respeitar nem amar, embora sabendo que seja um
homem bom conquanto bem ridículo. Mas não posso, por isso, dizer que tenha
motivos para detestá-lo. Não impedi que seu irmão tentasse fazer de mim uma
escora contra o príncipe.
Eu fingia estar a olhar para a frente, para depois dar uma boa gargalhada. Eu
sabia que seu irmão cometeria um erro de palmatória, inutilizando-se,
lastimavelmente. E assim foi... Estou pronto a poupá-lo, agora, simplesmente em
consideração à senhora, Varvára Ardaliónovna. Mas já que esclareci não ser
fácil apanhar-me, explicar-lhe-ei, também, por que fiquei tão ansioso por
enfurecer seu irmão. Devo dizer-lhe que agi assim porque o detesto e aqui o
confesso francamente. Quando eu morrer (porque acabo morrendo, mesmo que
tenha engordado como disseram), quando eu morrer, desconfio que irei para o
paraíso com o coração incomparavelmente mais aliviado, caso, em vida ainda,
tenha conseguido enfurecer ao menos um espécime da classe de gente que me
andou perseguindo a vida inteira, e a quem eu toda a vida tenho odiado, classe
essa da qual seu irmão é um excelente e notável exemplar. Gavríl
Ardaliónovitch, eu detesto você simplesmente porque - e há de este
“simplesmente porque” lhe parecer maravilhoso -, simplesmente porque você é
o tipo, a encarnação, o suprassumo da mais insolente, da mais vulgar, da mais
repugnante e da mais pomposa mediocridade. A sua mediocridade é feita de
pompa, de vaidade, de contentamento olímpico. Você é mais ordinário do que o
que de mais ordinário possa haver. Jamais a menor ideia de vontade própria se
esboçou no seu coração, quanto mais em seu espírito! Acresce a isso que a sua
vaidade não tem limites; você se persuadiu de que é um grande gênio; como,
porém, a dúvida às vezes lhe tira o sono em certos momentos opacos, então, por
isso, a sua inveja e o seu rancor se desmandam. Mas esses trechos opacos, sim,
negros, ainda lhe toldam o horizonte. Quando, porém, você acabar de ficar
estúpido, o que não falta muito, eles se clarearão. Mesmo assim, jaz diante de
você uma longa e tortuosa estrada. Como me alegro em não poder chamá-la
uma estrada prazenteira! Em primeiro lugar, desde já lhe vaticino que não obterá
uma certa jovem...
- Oh! Isso é insuportável! - exclamou Vária.
- Cale-se, criatura malvada e
horripilante.
Gánia
estava
branco.
Contraído
e
calado.
Ippolít
parou,
encarou demoradamente, com prazer e com desdém; depois se virou para
Varvára, fez-lhe uma saudação, curvando-se, e saiu sem acrescentar nenhuma
palavra mais.
Por algum tempo Vária não ousou dirigir-se ao irmão, nem sequer olhá-lo
enquanto ele dava grandes passadas pela sala, de um lado para o outro, decerto
com muita justiça se queixando intimamente do quinhão recebido e do vexame
que não evitou. Acabou indo para a janela, onde ficou, de costas para a irmã que
pensava no provérbio russo: “Faca que corta com os dois gumes...”
Nisto
começou, outra vez, uma barulheira lá em cima.
- Onde é que vais? - perguntou
Gánia, virando-se logo que reparou que ela se estava levantando para subir - Espera um pouco. Olha isto aqui. - aproximando-se dela, lhe atirou sobre a cadeira um pedaço de papel dobrado
em dois, como um cartão.
- Céus divinos! - sussurrou Vária, juntando as mãos. O bilhete continha
sete linhas apenas:
“Gavril Ardaliónovitch.
Convencida como estou dos seus amistosos sentimentos para comigo, tomo a
liberdade de lhe pedir conselho em assunto da máxima importância para mim.
Ficar-lhe
ia muito reconhecida se fosse encontrar-se comigo, amanhã, às sete horas, no
banco
verde. Fica perto da nossa vila.
Varvára Ardaliónovna, que o deve acompanhar, sabe onde é.
A. E.”
- Céus divinos! Que irá fazer ela, desta vez?
E Varvára Ardaliónovna estirou os
braços para o céu, em súplica. Depois do que tinha sofrido, e ainda sob o eco da
profecia de Ippolít, Gánia não pôde logo demonstrar o seu triunfo, mas pouco a
pouco lhe veio disposição para fanfarronadas. Vendo Vária também radiante de
satisfação, não reprimiu o sorriso de íntima alegria que lhe percorreu o rosto.
- E justamente logo no dia em que o noivado vai ser anunciado! Efetivamente
ninguém é capaz de saber o que ela fará desta vez!
- Que é que pensas? Que será
que ela me quer falar amanhã?
- Não te importes com isso. O que tens de
reparar é que é a primeira vez que te quer ver, depois de seis meses. Ouve bem.
Gánia. Aconteça o que acontecer, dê no que der, garanto-te que é importante. É
tremendamente significativo. Não te pavoneies, não faças nenhum disparate e
nem te acovardes, tampouco. Presta atenção. Ela agora deve ter adivinhado com
que fim eu andei batendo pernas daqui pra lá, estes seis meses todos! E calcula
só, não me disse uma palavra, hoje, um indício sequer! Estive lá, às escondidas,
já te contei. A velha nem percebeu, do contrário me mandava agarrar. Arrisquei
me a isso, por tua causa, e com que custo!
Lá em cima, novamente, começou a
gritaria; e pouco depois, várias pessoas, descendo, faziam barulho.
- Isto, ainda mais agora, não convém de modo algum - exclamou Vária
contrariada, persuadindo o irmão de que não convinha uma sombra sequer de
escândalo - Sobe, vai ao encontro dele. Pede-lhe perdão!
Mas o chefe da família
passou por eles e saiu pela rua afora. Kólia esbofava-se, com a sacola atrás do
pai.
Nina Aleksándrovna ficou a chorar, parada no patamar; depois tentou
precipitar-se atrás dele; mas Ptítsin a puxou degraus acima, dizendo-lhe:
- Não
piore as coisas. Ele não tem para onde ir. Será trazido de volta em menos de meia
hora; já dei ordem a Kólia. Deixá-lo fazer-se de louco.
Gánia gritou-lhe da
janela:
- Não se faça de herói. Para onde quer ir o senhor? Não tem para onde ir!
Vária
chamou-o:
- Volte, papai. Os vizinhos acabam escutando...
O general virou-se bem, ergueu a
mão esticada para o céu e bradou:
- Que a maldição do Todo-Poderoso caia
sobre esta casa!
- Ouçam... parece canastrão teatral... - murmurou Gánia
fechando a janela com uma pancada súbita.
Os vizinhos decerto estavam ouvindo. Vária saiu da sala para os seus cômodos,
correndo. Vendo-se então sozinho, Gánia pegou no bilhete de cima da mesa e o
beijou; depois estalou os dedos com satisfação e piruetou sobre si mesmo.
continua página 434...
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