terça-feira, 3 de junho de 2025

Dostoiévski - O Idiota: Quarta Parte (2b) - Apressadamente se foi

O Idiota


Fiódor Dostoiévski

Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira

Quarta Parte
2.

.continuando...

      Apressadamente se foi, indignadíssimo. Nina Aleksándrovna, Kólia e Ptítsin embarafustaram atrás dele.

- Viu o que você fez? - disse Vária ao irmão. - Vai rodar por aí, outra vez, na certa! Isto é uma desgraça!
- Não furtasse! - vociferou Gánia, salivando de raiva, nisto os seus olhos encontraram os de Ippolít. Então, virando-se para ele, com firmeza, mas na realidade encobrindo o sobressalto que sentira, proferiu: - Quanto ao senhor, devia lembrar-se, afinal de contas, que está em casa alheia, usufruindo uma hospitalidade e não para irritar um velho que positivamente está fora do seu juízo.

     Ippolít também ficou um pouco confuso; mas se refez instantaneamente.

- Não concordo muito com isso. Não creio que seu pai não esteja em seu juízo perfeito.- falava com absoluta calma - Muito pelo contrário. Parece-me até que, ultimamente, ele vem tendo mais senso. O senhor não pensa assim? Tornou-se tão desconfiado, tão precavido! Espreita, acautela-se, pesa as palavras... E quando começou a me seringar com essa história de Ieropiégov ou Kapitóchka, logo percebi que tinha um intuito. Mera concepção pra ajeitar uma entrada...
- Escute lá! Vá para o diabo! Pouco se me dá que ele tenha querido ou não ajeitar fosse o que fosse!... Peço-lhe que não tente suas evasivas em mim - guinchou Gánia - Se o senhor também está a par do que lançou o velho neste estado (e reparei que o senhor andou estes cinco dias aqui, espionando, e, a tal ponto, que nem mesmo disfarçou), se, pois, também está ciente, mais uma razão para não irritar esse pobre infeliz e nem aborrecer minha mãe, exagerando o caso! Está farto de ter entendido que foi tudo burrada da bebedeira, apenas, e não mais; coisa enfim que não prova nada, que nem merece atenção! Mas preferiu espionar e atormentar porque o senhor é...
- Um parafuso! - e Ippolít riu.
- Porque o senhor é uma criatura abjeta; teve o desplante de atormentar durante meia hora uma porção de gente, intimidando-a com a afirmação de que se ia matar com uma pistola que afinal nem carregada estava, e se deu ao papel de se sujeitar a uma exibição dessa ordem, seu saco ambulante de fel, que não é capaz nem mesmo de se suicidar sem fazer o próprio panegírico, para afinal até na morte falhar como já falhou no resto! E eu lhe dei hospitalidade, mediante a qual começou a engordar, a parar de tossir! E, em paga...
- Peço permissão somente para duas palavras: estou na casa de Varvára Ardaliónovna, e não na sua! Se não incido em equívoco, o senhor também está usufruindo a hospitalidade do Senhor Ptítsin. Mas, há quatro dias, encarreguei minha mãe de me procurar cômodos aqui em Pávlovsk e de se mudar também ela para aqui, visto o clima me convir, o que não quer dizer que eu tenha engordado e não tussa mais. Comunicou-me minha mãe, ontem à noite, que um aposento está à minha espera. Assim, pois, me apresso em lhe participar que, por minha parte, agradecendo a bondade que sua mãe e sua irmã me dispensaram, me mudarei ainda hoje, conforme já resolvi desde a noite passada. E desculpe tê-lo interrompido, visto me parecer que o senhor ainda tem muito que dizer.
- Oh! Se é assim! - disse Gánía, contraindo-se.
- Se é assim, permita que me sente - acrescentou Ippolít, sentando-se com perfeito ademã na cadeira onde antes estivera o general. - Além do mais, estou doente, o senhor bem sabe. Bem, agora estou à sua disposição para escutar o que provavelmente vai ser a nossa última conversa, ou, usando de um maneirismo mais lato, o nosso último encontro. 

     Gánia subitamente se sentiu envergonhado.

- Não pense que estou aqui para me diminuir, entretendo-me em palestra com o senhor. E caso...
- Não é preciso ficar exaltado - interrompeu Ippolít - No dia exato em que vim para aqui, a mim mesmo fiz o voto, ou promessa, de não me negar o prazer de saldar antigas contas com o senhor, e da maneira mais cabal e eficaz, na hora da nossa despedida. Minha intenção é fazer isso agora, mas depois do senhor, naturalmente. 
- Peço-lhe que saia desta sala! 
- Eu achava melhor o senhor falar! O senhor sabe que se arrependerá se não desembuchar! 
- Contenha-se, Ippolít. Isso tudo é tão degradante! Faça o favor de ficar quieto - disse Vária 
- Tão só para obedecer a uma dama - riu Ippolít, levantando-se. - Com a maior boa vontade, Varvára Ardalióvna. Pela senhora estaria pronto a acabar definitivamente, mas tenha paciência, pois umas certas explicações entre mim e seu irmão são absolutamente essenciais e, por nada deste mundo, eu me iria, deixando um mal-entendido. 
- Em letras redondas, o senhor não passa de um traficante de escândalos - gritou Gánia - e só por isso quer se despedir com um escândalo.
- Ora aí está, vê o senhor? - observou Ippolít, friamente. - Volta ao assunto. Aliás eu já lhe tinha feito ver que o senhor lastimaria se não desembuchasse. Mais uma vez lhe abrirei o caminho. e agora estou à espera de suas palavras.

     Gavríl Ardaliónovitch encarou-o com o maior desdém.

- E o senhor a não querer falar. Quer me dar a entender, com isso, que prefere guardar a parte que lhe compete! Faça como lhe aprouver. Por minha vez, serei tão breve quanto possível. Hoje, já por duas ou três vezes, fui censurado por ter aceito a sua hospitalidade. Isso não é bonito! Ao convidar-me para vir ficar aqui com o senhor. o senhor ensaiou engodar-me, contando que eu pagaria as culpas do príncipe. O senhor veio a saber, além disso, que Agláia Ivánovna, demonstrando simpatia por mim, lera a minha confissão. Supondo, não sei por que, que eu estava pronto a me devotar completamente aos seus interesses, o senhor cuidou que eu o ajudasse a seu modo. Não quero nem tenho tempo para amiudar esta explicação. Tampouco peço confissões, ou termos fixos, da sua parte. Basta que eu deixe isso para a sua consciência, entendendo-os agora, cabalmente, um ao outro.  
- Só Deus sabe que complicações o senhor faz com as coisas mais comuns! - refletiu Vária.
- Eu já expliquei: esse indivíduo é um traficante de escândalos, um imundo colegial! - reafirmou Gánia.
- Com licença, Varvára Ardaliónovna. preciso continuar. Ao príncipe, naturalmente, não posso respeitar nem amar, embora sabendo que seja um homem bom conquanto bem ridículo. Mas não posso, por isso, dizer que tenha motivos para detestá-lo. Não impedi que seu irmão tentasse fazer de mim uma escora contra o príncipe. Eu fingia estar a olhar para a frente, para depois dar uma boa gargalhada. Eu sabia que seu irmão cometeria um erro de palmatória, inutilizando-se, lastimavelmente. E assim foi... Estou pronto a poupá-lo, agora, simplesmente em consideração à senhora, Varvára Ardaliónovna. Mas já que esclareci não ser fácil apanhar-me, explicar-lhe-ei, também, por que fiquei tão ansioso por enfurecer seu irmão. Devo dizer-lhe que agi assim porque o detesto e aqui o confesso francamente. Quando eu morrer (porque acabo morrendo, mesmo que tenha engordado como disseram), quando eu morrer, desconfio que irei para o paraíso com o coração incomparavelmente mais aliviado, caso, em vida ainda, tenha conseguido enfurecer ao menos um espécime da classe de gente que me andou perseguindo a vida inteira, e a quem eu toda a vida tenho odiado, classe essa da qual seu irmão é um excelente e notável exemplar. Gavríl Ardaliónovitch, eu detesto você simplesmente porque - e há de este “simplesmente porque” lhe parecer maravilhoso -, simplesmente porque você é o tipo, a encarnação, o suprassumo da mais insolente, da mais vulgar, da mais repugnante e da mais pomposa mediocridade. A sua mediocridade é feita de pompa, de vaidade, de contentamento olímpico. Você é mais ordinário do que o que de mais ordinário possa haver. Jamais a menor ideia de vontade própria se esboçou no seu coração, quanto mais em seu espírito! Acresce a isso que a sua vaidade não tem limites; você se persuadiu de que é um grande gênio; como, porém, a dúvida às vezes lhe tira o sono em certos momentos opacos, então, por isso, a sua inveja e o seu rancor se desmandam. Mas esses trechos opacos, sim, negros, ainda lhe toldam o horizonte. Quando, porém, você acabar de ficar estúpido, o que não falta muito, eles se clarearão. Mesmo assim, jaz diante de você uma longa e tortuosa estrada. Como me alegro em não poder chamá-la uma estrada prazenteira! Em primeiro lugar, desde já lhe vaticino que não obterá uma certa jovem... 
- Oh! Isso é insuportável! - exclamou Vária.
- Cale-se, criatura malvada e horripilante.

     Gánia estava branco. Contraído e calado. Ippolít parou, encarou demoradamente, com prazer e com desdém; depois se virou para Varvára, fez-lhe uma saudação, curvando-se, e saiu sem acrescentar nenhuma palavra mais. 
     Por algum tempo Vária não ousou dirigir-se ao irmão, nem sequer olhá-lo enquanto ele dava grandes passadas pela sala, de um lado para o outro, decerto com muita justiça se queixando intimamente do quinhão recebido e do vexame que não evitou. Acabou indo para a janela, onde ficou, de costas para a irmã que pensava no provérbio russo: “Faca que corta com os dois gumes...” 
     Nisto começou, outra vez, uma barulheira lá em cima.

- Onde é que vais? - perguntou Gánia, virando-se logo que reparou que ela se estava levantando para subir - Espera um pouco. Olha isto aqui. - aproximando-se dela, lhe atirou sobre a cadeira um pedaço de papel dobrado em dois, como um cartão.
- Céus divinos! - sussurrou Vária, juntando as mãos. O bilhete continha sete linhas apenas:

 “Gavril Ardaliónovitch. 
Convencida como estou dos seus amistosos sentimentos para comigo, tomo a liberdade de lhe pedir conselho em assunto da máxima importância para mim. 
Ficar-lhe ia muito reconhecida se fosse encontrar-se comigo, amanhã, às sete horas, no banco verde. Fica perto da nossa vila. 
Varvára Ardaliónovna, que o deve acompanhar, sabe onde é. 
 A. E.”
  
- Céus divinos! Que irá fazer ela, desta vez?

     E Varvára Ardaliónovna estirou os braços para o céu, em súplica. Depois do que tinha sofrido, e ainda sob o eco da profecia de Ippolít, Gánia não pôde logo demonstrar o seu triunfo, mas pouco a pouco lhe veio disposição para fanfarronadas. Vendo Vária também radiante de satisfação, não reprimiu o sorriso de íntima alegria que lhe percorreu o rosto. 

- E justamente logo no dia em que o noivado vai ser anunciado! Efetivamente ninguém é capaz de saber o que ela fará desta vez! 
- Que é que pensas? Que será que ela me quer falar amanhã? 
- Não te importes com isso. O que tens de reparar é que é a primeira vez que te quer ver, depois de seis meses. Ouve bem. Gánia. Aconteça o que acontecer, dê no que der, garanto-te que é importante. É tremendamente significativo. Não te pavoneies, não faças nenhum disparate e nem te acovardes, tampouco. Presta atenção. Ela agora deve ter adivinhado com que fim eu andei batendo pernas daqui pra lá, estes seis meses todos! E calcula só, não me disse uma palavra, hoje, um indício sequer! Estive lá, às escondidas, já te contei. A velha nem percebeu, do contrário me mandava agarrar. Arrisquei me a isso, por tua causa, e com que custo! 

     Lá em cima, novamente, começou a gritaria; e pouco depois, várias pessoas, descendo, faziam barulho.

- Isto, ainda mais agora, não convém de modo algum - exclamou Vária contrariada, persuadindo o irmão de que não convinha uma sombra sequer de escândalo - Sobe, vai ao encontro dele. Pede-lhe perdão!

     Mas o chefe da família passou por eles e saiu pela rua afora. Kólia esbofava-se, com a sacola atrás do pai. Nina Aleksándrovna ficou a chorar, parada no patamar; depois tentou precipitar-se atrás dele; mas Ptítsin a puxou degraus acima, dizendo-lhe:

- Não piore as coisas. Ele não tem para onde ir. Será trazido de volta em menos de meia hora; já dei ordem a Kólia. Deixá-lo fazer-se de louco. 

     Gánia gritou-lhe da janela:

- Não se faça de herói. Para onde quer ir o senhor? Não tem para onde ir!

     Vária chamou-o: 

- Volte, papai. Os vizinhos acabam escutando...

     O general virou-se bem, ergueu a mão esticada para o céu e bradou:

- Que a maldição do Todo-Poderoso caia sobre esta casa! 
- Ouçam... parece canastrão teatral... - murmurou Gánia fechando a janela com uma pancada súbita.

     Os vizinhos decerto estavam ouvindo. Vária saiu da sala para os seus cômodos, correndo. Vendo-se então sozinho, Gánia pegou no bilhete de cima da mesa e o beijou; depois estalou os dedos com satisfação e piruetou sobre si mesmo.
 
Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (2b) - Apressadamente se foi
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