Elias Canetti
O TRIGO
O trigo é, em mais de um aspecto, uma floresta reduzida. Ele cresce onde antes havia uma floresta, e jamais se torna tão alto quanto esta. Depende inteiramente do homem e de seu trabalho. O homem o semeia e ceifa; em antigos rituais, trabalha para que ele cresça. O trigal é flexível como a grama, exposto à influência dos ventos. Juntas, todas as suas hastes cedem ao movimento do vento; o trigal inteiro dobra-se de uma só vez. As tempestades o abatem, e o trigo jaz, então, longamente no solo. Possui, contudo, a misteriosa capacidade de reerguer-se, e, se não afetado com demasiada gravidade, põe-se, de súbito, novamente de pé — o trigal inteiro. As espigas repletas são como pesadas cabeças; acenam para nós ou voltam-se para o outro lado, conforme sopra o vento.
Normalmente, o trigo é menos alto que o homem. Este, porém,
permanece sempre o seu senhor, ainda que o trigo cresça acima de sua
cabeça. Ele é ceifado em conjunto, assim como em conjunto cresceu e
foi semeado. Também a grama, que o homem não emprega para seu
próprio uso, permanece sempre reunida. Quão mais coletivo é, porém,
o destino do trigo, que é semeado, ceifado, colhido, debulhado e
armazenado em conjunto. Enquanto cresce, mantém-se firmemente
enraizado; jamais pode apartar-se das demais hastes. O que quer que
aconteça, acontecerá a todas as hastes. Apresenta-se, pois, denso, sua
altura não variando mais do que a dos homens; em seu conjunto, o
trigal parece sempre ostentar uma altura homogênea. Seu ritmo,
quando o vento o move, assemelha-se ao de uma dança simples.
Aprecia-se ver na imagem do trigo a igualdade dos homens perante a
morte. O trigal, porém, cai a um só tempo, razão pela qual lembra um
tipo bastante específico de morte: a morte conjunta na batalha, quando
leiras inteiras de homens são ceifadas — o campo de trigo qual um
campo de batalha.
A flexibilidade do trigo converte-se em submissão; tem algo de um
aglomerado de súditos fiéis, incapazes de conceber a ideia de qualquer
resistência. Obedientes, eles se apresentam ligeiramente trêmulos,
receptivos a toda e qualquer ordem. Quando o inimigo se abater sobre
eles, serão todos impiedosamente pisoteados.
O fato de o trigo originar-se de um amontoado de sementes é tão
importante e significativo quanto o amontoado de grãos no qual, por fim, ele resulta. Seja o número destes sete ou cem vezes maior, os
montes em que são armazenados são muito maiores do que aqueles que
lhes deram origem. Crescendo em conjunto, o trigo multiplicou-se, e
essa multiplicação é sua bênção.
continua página 131...
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht
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Leia também:
Massa e Poder - O Trigo
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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994.
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) e O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de Marrakech, Festa sob as bombas e Sobre a morte.
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Título original Masse und Macht
"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."
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