O Idiota
Fiódor Dostoiévski
Tradução portuguesa por José Geraldo Vieira
Quarta Parte
4. O general ficou radiante. A espontaneidade e a simplicidade da
pergunta do príncipe dissiparam logo os últimos traços de desconfiança.
- Charras? Eu próprio fiquei indignado. Cheguei a escrever-lhe, a esta altura, mas
não me lembro se... Pergunta-me o amigo se eu tinha muito que fazer, no serviço
de Sua Majestade, o Imperador. Ora, nem por isso. Chamavam-me um pajem à
disposição, mas não levei aquilo muito a sério. De mais a mais, Napoleão logo
perdeu toda a esperança de vencer os russos, e não resta a menor dúvida de que
acabaria por me esquecer, se não tivesse tomado uma afeição especialíssima por
mim. Já o fato de me ter como que adotado, fora um golpe político magistral.
Digo isso, hoje, galhardamente. O meu coração sentira-se atraído para ele. Os
meus deveres não eram definidos; tinha, apenas, que estar presente, em palácio
e... acompanhá-lo quando saía. Eis tudo. Eu cavalgava bem. Ele costumava dar
passeios antes do jantar. Davout, eu e um mameluco, Roustan, fazíamos parte,
geralmente, do seu cortejo.
- Constant - o príncipe pronunciou este nome quase sem querer,
emendando o general.
- N... ão! Constant não estava lá. Tinha ido levar uma carta à Imperatriz Josefina.
O seu lugar foi preenchido por dois assistentes e por alguns fulanos polacos... Este
era habitualmente o seu séquito, exceto quando Napoleão também levava
consigo generais e marechais para explorarem as cercanias, ou consultá-los a
respeito das posições das tropas. Quem estava, o mais das vezes, de serviço, era
Davout, conforme, agora, me estou recordando. Era um homem corpulento,
entroncado, de óculos, de sangue-frio, com uma estranha expressão nos olhos.
Era mais consultado do que qualquer outro pelo Imperador que preferia o seu
modo de opinar. Lembro-me de que estiveram em conferência, durante vários
dias; Napoleão costumava receber Davout de manhã e de tarde. Houve entre
eles frequentes discussões; enfim Napoleão pareceu no ponto de ceder.
Estavam sozinhos no gabinete do Imperador e não repararam na minha
presença. Repentinamente o olhar do Imperador caiu sobre mim, e um estranho
pensamento brilhou em seus olhos. “Criança”, disse-me ele, “que achas? Se eu
adotar a fé ortodoxa e libertar os escravos. ficariam os russos do meu lado, ou
não?” - “Nunca!” - exclamei, indignado. Como isso impressionou o Imperador! “No
patriotismo que está brilhando nos olhos desta criança”, disse ele. “leio o
veredicto de todo o povo russo. Basta, Davout. Tudo isso não passa de uma
fantasia. Explique-me o plano seguinte!”
- Mas naquele primeiro plano havia
também uma grande ideia - disse o príncipe evidentemente se interessando.
- O
senhor atribui tal projeto a Davout?
- De qualquer forma, eles se consultavam
entre si. Mas não há dúvida de que a ideia fora de Napoleão, ideia de uma águia.
Mas também não era mau o segundo plano. Era o famoso “conseil du lion”,
como o próprio Napoleão chamou ao projeto de Davout. Tal projeto consistia em
fecharem-se no Kremlin, com todas as tropas; - construírem barracas, cavarem
trabalhos de engenharia, montarem canhões, matarem o maior número possível
de cavalos, salgarem- lhes as carnes, arranjarem, requisitando ou pilhando, todo
o trigo possível, e passarem lá o inverno até a primavera. E, na primavera, então,
abrir, aos golpes, caminho através dos russos. Esse plano fascinou Napoleão.
Costumávamos andar a cavalo em volta das muralhas do Kremlin, todos os dias.
E ele, em pessoa, mostrava onde demolir, onde construir mirantes e revelins,
onde devia ser a fila dos blocausses. Tinha olho vivo, julgamento pronto e visão
certa.
Afinal, isso ficara mais ou menos combinado. Mas Davout insistia por uma
decisão definitiva. Ei-los, de novo, incomunicáveis, em conferência. E eu lá!...
Como sempre, Napoleão passeava pelo salão, com os braços cruzados. Eu não
podia retirar os olhos dele. E -o meu coração estava aos pinotes. - “Já vou indo...”- disse Davout. - “Onde?” - perguntou Napoleão. - “Salgar carne de cavalo”
respondeu Davout. Napoleão empertigou-se todo, aquele era o ponto de
desacordo. - “Criança, que pensas da nossa ideia?” - Era evidente que, na maioria das vezes
que me interrogava, o fazia como um homem que, apesar de sua grande
inteligência, deseja se livrar de uma responsabilidade. Virei-me para Davout, em
vez de me virar para Napoleão e disse, assombrosamente inspirado: - “General,
melhor, enquanto é tempo, ainda seria voltar, correndo, para trás!” E... o plano
foi abandonado. Davout, encolhendo os ombros, saiu, resmungando: “- Bah! Il
devient superstitieux!” - E, no dia seguinte, a retirada foi ordenada.
- Tudo isso é muito interessante
murmurou o príncipe, em voz baixa, se é que realmente assim foi... quero dizer...- e tentou corrigir-se.
- Ah, Príncipe - exclamou o general, embalado pela sua
história, não a interrompendo nem mesmo à vista da indiscreta observação do
príncipe.
- Diz o senhor, “se realmente assim foi...” Mas houve mais, garanto-lhe,
muitíssimo mais. Estes são apenas insignificantes fatos políticos. Mas não se
esqueça, por exemplo, e lhe repito, que fui testemunha ocular e, por assim dizer,
íntima, das lágrimas e das lamentações desse grande homem, ànoite. E essas,
ninguém mais viu, senão eu! É verdade que lá para o fim ele deixara de chorar,
não tinha mais lágrimas; mas ainda se lamentava, de quando em quando, e a sua
face estava enevoada por uma como que... treva. Como se a eternidade já
tivesse aberto as suas asas negras sobre ele. As últimas noites, nós as passávamos
juntos, só nós dois, e em silêncio. O mameluco Roustan roncava no salão
contíguo; o sono desse camarada era medonhamente barulhento. “Sim, mas é
devotado a mim e à dinastia!” - costumava dizer ele, Napoleão. Certa noite
também me comovi, ficando muito aflito. Não sei como, ele viu as lágrimas nos
meus olhos. Olhou- me ternamente. “Sentes por mim!” - exclamou. - “E
provavelmente, uma outra criança há que, a esta hora, também sente por mim,
meu filho, le roi de Rome; todos os mais me odeiam, e meus irmãos ainda hão de
ser os primeiros a me lançarem na desgraça”. - Comecei a soluçar, precipitei
me para ele. Curvando- se para mim, abraçou-me; ficamos assim algum tempo.
E nossas lágrimas
correram juntas. “Escreva, escreva uma carta à Imperatriz Josefina!” - disse-lhe
eu, entre soluços. Napoleão conteve-se, ponderou e disse: “Agora me trouxeste à
lembrança esse outro coração que me ama. Obrigado, querido”.
Imediatamente se assentou e escreveu à Imperatriz Josefina, uma carta que foi
levada, no dia seguinte, por Constant.
- O senhor agiu esplendidamente - arriscou o príncipe. - Tirou-o dos maus
pensamentos e o levou aos bons sentimentos.
- Justamente, príncipe. E como o
senhor disse isso bem! Tal e qual como o seu bom coração - exclamou o general,
em transe; e por mais estranho que isso pareça, lágrimas verdadeiras correram
dos seus olhos. - Sim, príncipe, foi um espetáculo magnífico. E saiba que não o
abandonei, estive sempre perto dele, estive a ponto de acompanhá-lo até Paris. E
não resta dúvida que teria compartilhado com ele o degredo naquela “sufocante
ilha- presídio”. Mas, ai de nós! Os fatos violentamente nos separaram. Ele, para a
sufocante ilha-presídio” onde, quem sabe, nas horas da sua mais trágica
tribulação, se deve ter lembrado das lágrimas do garoto que o abraçou e perdoou
em Moscou! E eu, para o corpo dos cadetes, onde só encontrei ríspida disciplina,
rudeza de camaradagem!... Ai de mim! Tudo se transformou em pó e cinzas.
“Não quero separar-te de tua mãe, levando-te comigo”, dissera no dia da
retirada, “mas terei ensejo, e breve, de fazer alguma coisa por ti”. Já havia
montado a cavalo. “Escreva uma coisa qualquer para o álbum de minha irmã,
como souvenir”, disse eu, timidamente, porque notei que ele estava perturbado e
soturno. “Que idade tem ela?” perguntou. “Três anos só”, respondi. “Une petite
fille, alors!” E escreveu no álbum:
“Ne mentez jamais.Napoléon, votre ami sincère.”
- Um tal conselho, em um momento como aquele, príncipe, imagine o senhor!
- Sim, foi notável.
- Esta frase foi guarnecida e bordada a ouro, montada sob vidro, ficou anos e
anos dependurada na parede da sala de visitas de minha irmã, no lugar de maior
importância. Ela acabou morrendo de parto. Por onde andará aquilo, agora? Não
sei... Mas Céus! Pois não é que já são duas horas!? Como foi que o prendi até
agora, príncipe? Mas é imperdoável!
O general levantou-se da sua cadeira.
- Oh! Muito pelo contrário - ciciou o príncipe. - O senhor me entreteve tanto, e de
fato estava tão interessante! Sou-lhe tão grato!
- Príncipe - o general tornou a
falar, apertando-lhe a mão até doer, fixando-o com olhos que despediam
centelhas, como que repentinamente fulminado por um pensamento que lhe veio
à mente. - Príncipe, o senhor é tão bondoso, tem um coração tão bom! Quantas
vezes não entristeço por sua causa!? Fico comovido quando o olho. Oh! Que Deus
o abençoe! Possa uma vida florescente recomeçar para o senhor... Uma vida
com muito amor. Quanto à minha, está acabada! Perdoe-me. Adeus!
E saiu,
atropeladamente, cobrindo o rosto com as mãos. O príncipe não pôde duvidar da
sinceridade da emoção do general. Percebeu também que o velho se deixara
arrebatar pelo êxito da sua palestra. Mas, sendo da classe dos mentirosos, para os
quais mentir se torna uma paixão. ainda assim, como todos eles, o general,
mesmo no ápice da intoxicação, secretamente suspeitou que não estava sendo
acreditado, e que não podia ser acreditado. E provavelmente, na atual situação, o
velho se sentiu oprimido pela vergonha, quando voltou à realidade das coisas. Se
suspeitasse que Míchkin sentia compaixão, se consideraria insultado. E todavia o
príncipe, por sua vez, ponderou:
- “Não fiz pior, conduzindo-o a tal exaltação?”
Mas não se pôde conter, e riu desabaladamente, durante uns dez minutos. Depois
se repreendeu dessas gargalhadas; mas mesmo essa repreensão era inútil, pois
sabia que tinha uma infinita piedade para com o general. A sua apreensão, no
entanto, não fora senão um pressentimento, pois à noite recebeu uma carta
resoluta do general. Informava-o que se separava dele, também, e para sempre.
Que, conquanto o respeitasse e lhe fosse muito grato, ‘nem mesmo dele, todavia,
podia aceitar provas de compaixão que eram incompatíveis com a dignidade de
um homem já bastante infeliz sem isso”. Sabendo, porém, o príncipe, que o velho
se refugiara em casa de Nina Aleksándrovna, ficou mais tranquilo a respeito
dele. Mas já vimos que o velho tinha acabado por provocar, também,
aborrecimentos em Lizavéta Prokófievna, visto, diante dela, ter feito amargas
insinuações contra Gánia. Resultara disso, ter sido despedido, depois de causar
indignação à generala. Quanto a isso só fazemos menção aqui, não podendo
entrar em minúcias. O resultado foi ter ele passado toda a manhã e toda a noite
inteiramente desengonçado, pelas ruas, em um estado quase de delírio.
Kólia não teve forças para sobrepujar a situação. E não houve energia que
conseguisse fazer o pai voltar para casa.
- Ora, bem. Mas, afinal, para onde nos
atiramos nós agora, general, resolva logo - dizia Kólia. - Para a casa do príncipe.
não há de querer ir. Com Liébediev, o senhor está brigado. Dinheiro, o senhor não
tem. E eu, muito menos! Belo espetáculo damos nós dois aqui, rua abaixo, rua
acima, não há dúvida. rolando feito massa!
- É melhor estar na massa popular do que na do pão! Ah! Ah! É a segunda vez
que faço este trocadilho. A primeira vez foi para causar admiração em uma sala
de jantar de oficiais em quarenta e quatro... Espera, foi em mil oitocentos...
quarenta e quatro, sim. Não me lembro... Não corrija, espere a ver se me
lembro. Onde está a minha mocidade? Que foi feito do meu verdor?, conforme
exclamou... quem foi que exclamou assim, Kólia?
- Gógol, papai, nas Almas
Mortas - respondeu Kólia, arriscando uma olhadela ao estado paterno.
- Almas Mortas! Sim, morto... Quando vocês me sepultarem. escrevam na lápide
sepulcral: Aqui jaz uma alma morta. Sim, a desgraça me persegue. Quem foi
que disse isto, Kólia?
- Não sei, papai.
- Não teria sido uma pessoa assim como Ieropiégov? Ierochka Ieropiégov...
gritou no seu delírio, estacando no meio da rua. - E foi meu filho, o outro meu
filho quem disse essa coisa...
- Ieropiégov que, por onze meses, foi uma espécie de irmão para mim, e por
causa de quem me bati em duelo! - Disse-lhe o Príncipe Vigoriétskii, nosso
capitão, à mesa: - “Grísha, onde foi que tu ganhaste a tua condecoração, essa
cruz de Sant’Ana, vamos, dize-me!” - “No campo de batalha; pela minha pátria,
eis onde a conquistei!” - E eu bradei imediatamente: - “Isso, assim, bravos, Grísha!” - Depois... duelo!
Depois... ele se casou com Maria Petróvna Su... Sutúguina, e foi morto em
batalha. Uma bala, resvalando por meu peito, atingiu-o na fronte. - “Nunca me
esquecerei!” - disse e caiu ali mesmo. Eu... eu servi no exército, com honra,
Kólia; e servi nobremente. Mas a desgraça, “a desgraça me persegue”. Tu e
Nina vireis à minha sepultura. “Minha pobre Nina”. Costumava chamá-la assim,
nos antigos tempos, Kólia, há muitos, muitos anos, e como ela gostava, Kólia...
Nina, Nina, que fiz eu da nossa vida? Por que havias tu de me amar, alma que
tanto sofreste? Tua mãe tem a alma de um anjo, Kólia; estás ouvindo bem? De
um anjo!
- Então eu não sei disso, papai? Voltemos, querido papai, para casa, para
perto de mamãe. Ela nos está procurando. Venha, por que teima em ficar aqui?
Parece que o senhor não está compreendendo... Por que é que o senhor está
chorando?
Kólia limpou-lhe as lágrimas, e lhe beijou as mãos.
- Estás beijando as minhas
mãos? Estas, as minhas?
- Sim, as suas, as suas! Que é que tem isso de espantoso?
Venha, por que há de o senhor se pôr a chorar, no meio da rua? E o senhor se
chama a si mesmo de general, de figura do exército!... Então, venha, vamos!...
- Que o Senhor te abençoe, criança adorada, por estares sendo respeitosa para
com um desditoso e desgraçado velho. Sim, com um desditoso e desgraçado
velho, teu pai. Que também venhas tu a ter um filho assim... Le roi de Rome.
Maldição, maldição para aquela casa!...
- Mas por que, arre, também, há de o
senhor caminhar desse jeito? - exclamou Kólia. Afogueando-se repentinamente.
- Que foi que aconteceu? Por que não irmos agora para casa? Onde é que o
senhor está com a cabeça?
- Vou te explicar, vou te explicar. Dir-te-ei tudo. Não
grites assim. Ouvirão por aí... Le roi de Rome. Ah! Como me sinto doente! Como
me sinto triste! “Velha ama, onde é a tua tumba?” De quem é esta poesia, Kólia?
- Não sei. Não sei de quem é essa poesia. Vamos já pra casa. Imediatamente! Se
for preciso, dou uma surra em Gánia. Mas.., pra onde é que vai indo o senhor,
outra vez? - o general arrastava-o para os degraus de uma casa fechada. - Mas pra onde vai
o senhor? Esta casa é de um desconhecido.
O general sentou-se em um dos
degraus, segurando sempre a mão de Kólia, puxando-o.
- Inclina-te! Mais baixo,
um pouco mais baixo - sussurrava - Vou te contar tudo... “a desgraça me...” Inclina-te mais. Quero dizer no teu ouvido, no teu ouvido...
- Mas que é, papai? - E, terrivelmente alarmado, Kólia se abaixava para escutar.
- Le roi de Rome... - ciciou o general com uns estremecimentos incontidos e
paroxísticos.
- O quê? Por que continua o senhor a seringar com le roi de Rome? O quê?
- Eu...
eu... - sussurrou o general de novo, puxando cada vez mais o ombro do “seu
rapaz” - Eu quero contar tudo... Maria. Maria... Petróvna Su-su-su...
Kólia
desvencilhou-se, segurou o general que tentava levantar-se e o encarou
perplexo. O ancião estava vermelho, vermelho, mas os lábios tinham ficado
azuis nesse rosto que os espasmos começavam a deformar. E, de repente, o
general tropeçou para diante e começou, vagarosamente, a escorregar pelos
braços do filho abaixo. Compreendendo, afinal, o que se estava passando, o rapaz
começou a gritar em plena rua: - Um ataque! Um ataque! Ele está com ataque apoplético.
continua página 456...
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Terceira Parte
O Idiota: Quarta Parte (4b) - O general ficou radiante
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