terça-feira, 3 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Alix suportou o golpe sem fraquejar)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Alix suportou o golpe sem fraquejar. Permanecia de mármore. Seu olhar era penetrante e vazio, o nariz nobremente recurvo. Mas uma face se escamava. Vegetações leves, estranhas, verdes e róseas, invadiam o queixo. Talvez um inverno mais a derrubasse. 

- Olhe, senhor, se gosta de pintura, observe o retrato da Sra. de Montmorency. - disse a Sra. de Villeparisis a Legrandin, para interromper os cumprimentos que recomeçavam.

     Aproveitando o fato de que ele se afastara, a Sra. de Guermantes o designou à tia com um olhar irônico e interrogativo. 

- É o Sr. Legrandin disse a Sra. de Villeparisis a meia voz. - Tem uma irmã que se chama Sra. de Cambremer, o que aliás não deve lhe dizer mais do que a mim. 
- Como, mas conheço-a perfeitamente! - exclamou a Sra. de Guermantes pondo a mão diante da boca. - Ou melhor, não a conheço; mas não sei o que deu em Basin, que encontra o marido sabe Deus onde, e diz a essa mulheraça que venha visitar-me. Não posso nem dizer o que foi essa visita. Ela me contou que fora a Londres, enumerou-me todos os quadros do British. Aqui como me vê, ao sair de sua casa, vou deixar um cartão na casa desse monstro. E não que seja coisa das mais fáceis, pois, sob o pretexto de estar agonizante, encontra-se sempre em casa; e, tanto faz visitá-la às sete horas da noite ou às nove da manhã, ela está pronta a nos oferecer torta de morangos. Está claro que é mesmo um monstro. - continuou a Sra. de Guermantes diante de um olhar interrogativo da tia. - É uma pessoa impossível; ela diz "plumitivo" e coisas assim. 
- O que quer dizer "plumitivo"? - indagou a Sra. de Villeparisis à sobrinha. 
- Não faço a menor ideia! - exclamou a duquesa com raiva fingida. - Nem quero saber. Não falo esse tipo de francês. - E, vendo que a tia não sabia de fato o que significava "plumitivo", para ter a satisfação de mostrar que era sábia tanto quanto purista, e para troçar da tia depois de haver troçado da Sra. de Cambremer: - Claro que sim. - disse com um meio-sorriso reprimido pelos restos do mau humor afetado -, todo mundo sabe disso, um plumitivo é um escritor, é alguém que se utiliza de uma pena. Mas é uma palavra horrível. É de fazer cair os dentes do siso. Jamais me obrigarão a dizer isto. Com que então, é o irmão dela! Ainda não tinha percebido. Mas no fundo não é incompreensível. Ela tem a mesma humildade de esteira de cama, os mesmos recursos de biblioteca ambulante. É tão bajuladora, tão enfadonha como ele. Começo a perceber bem esse parentesco. 
- Sente-se, vai-se tomar um pouco de chá. - disse a Sra. de Villeparisis à Sra. de Guermantes -; sirva-se você mesma, não precisa ver os retratos de suas tataravós, conhece-os tão bem quanto eu.

     A Sra. de Villeparisis voltou em breve para sentar-se e pôs-se a pintar. Todos se aproximaram; aproveitei para ir ao encontro de Legrandin e, não achando nada de culposo em sua presença na casa da Sra. de Villeparisis, disse-lhe, sem imaginar o quanto iria a um tempo feri-lo e fazê-lo acreditar na intenção de o ferir:

- Muito bem, senhor, estou quase desculpado de estar num salão, visto que o encontro aqui. - O senhor Legrandin concluiu dessas palavras (pelo menos foi esse o juízo que fez de mim alguns dias depois) que eu era uma criaturinha essencialmente má que só se agradava do mal. Você poderia ter a delicadeza de começar por me cumprimentar. - respondeu-me ele, sem me estender a mão e num tom de voz enraivecido e vulgar que não lhe imaginava e que, sem qualquer relação racional com o que ele dizia de costume, possuía uma outra mais imediata e impressionante com algo que estava sentindo. É que, como estamos sempre ocultando o que sentimos, nunca pensamos no modo pelo qual o expressaríamos. E, de repente, é um animal imundo e desconhecido que se faz ouvir em nós e cujo acento às vezes pode causar medo a quem recebe essa confidência involuntária, elíptica e quase irresistível de nosso defeito ou de nosso vício, como o causaria a súbita confissão, indireta e estranhamente proferida por um criminoso que não pudesse deixar de confessar um assassinato do qual não o sabíamos culpado. Decerto, eu bem sabia que o idealismo, mesmo subjetivo, não impede que grandes filósofos continuem sendo gulosos ou que se apresentem tenazmente à Academia. Mas na verdade Legrandin não precisava lembrar tão amiúde que pertencia a um outro planeta, quando todos os seus movimentos convulsivos de cólera ou de amabilidade eram governados pelo desejo de obter uma boa posição social neste. 
- Naturalmente, quando me perseguem vinte vezes seguidas para que eu vá a um certo lugar continuou em voz baixa -, conquanto eu tenha direito à minha liberdade, não posso todavia proceder como um grosseirão. 

     A Sra. de Guermantes se assentara. Seu nome, como era seguido pelo título, ajuntava à pessoa física o seu ducado, que se projetava a seu redor e fazia reinar a frescura sombria e dourada dos bosques de Guermantes no meio do salão, em torno ao tamborete em que ela estava. Apenas sentia-me espantado de que a semelhança não fosse mais legível no rosto da duquesa, que nada possuía de vegetal e onde, quando muito, as sardas que, parece, deveriam estar brasonadas pelo nome de Guermantes - eram o efeito mas não a imagem de longas cavalgadas ao ar livre. Mais tarde, quando a duquesa se me tornou indiferente, cheguei a conhecer muitas de suas particularidades, e notadamente (a fim de me ater no momento àquilo cujo encanto já sofria sem que o soubesse então distinguir) seus olhos, onde está preso, como num quadro, o céu azul de uma tarde francesa, largamente descoberto, banhado de luz mesmo quando ela não brilhava; e uma voz que se julgaria, pelos primeiros sons enrouquecidos, quase canalha, onde se arrastava, como pelos degraus da igreja de Combray, ou pela pastelaria da praça, o ouro preguiçoso e fértil de um sol provinciano. Mas, neste primeiro dia, eu não distingui coisa alguma; minha atenção ardente volatilizava de imediato o pouco que pudesse ter recolhido e onde poderia ter encontrado algo relativo ao nome de Guermantes. Em todo caso, dizia comigo que era mesmo ela quem designava para todo mundo o nome da duquesa de Guermantes: a vida inconcebível que este nome significava, continha-a de fato aquele corpo; ele acabava de introduzi la no meio de seres diversos, naquele salão que a rodeava de todos os lados e sobre o qual ela exercia uma reação tão viva que eu supunha ver, no ponto onde essa vida deixava de alongar-se, uma franja de efervescência a delimitar-lhe as fronteiras; na circunferência que a saia de pequim azul recortava sobre o tapete, e nas claras pupilas da duquesa, na intersecção dos problemas, das lembranças, do pensamento incompreensível, depreciativo, divertido e curioso que as povoavam, e das imagens estranhas que aí se refletiam. Talvez tivesse ficado menos impressionado se a encontrasse em casa da Sra. de Villeparisis em uma vesperal, em vez de vê la assim num dos "dias" da marquesa, num desses chás que, para as mulheres, não passam de uma curta parada no meio da sua saída e onde, conservando o chapéu com que acabam de fazer compras, trazem à série de salões a qualidade do ar de fora e dão mais claridade a Paris no fim da tarde do que as altas janelas abertas por onde se ouve o rolar das vitórias: a Sra. de Guermantes estava com um chapéu de palha ornado de acianos; e o que essas flores me evocavam não era, sobre as trilhas de Combray onde muitas vezes as colhera, sobre a ladeira rente à sebe de Tansonville, os sóis dos anos de outrora; era o odor e a poeira do crepúsculo, tais como há pouco ainda estavam, no momento em que a Sra. de Guermantes acabara de atravessá los, na rua de La Paix. Com ar risonho, desdenhoso e vago, os lábios apertados num rito, ela, com a ponta da sombrinha, como se com a extrema antena de sua vida misteriosa, desenhava círculos no tapete; depois, com essa atenção indiferente que principia por eliminar todo ponto de contato entre o que a gente considera e o próprio eu, seu olhar se fixava alternadamente em cada um de nós, depois inspecionava os canapés e as poltronas, porém suavizando-se então com aquela simpatia humana que desperta a própria presença insignificante de uma coisa que se conhece, de uma coisa que é quase uma pessoa; aqueles móveis não eram como nós, pertenciam vagamente ao seu mundo, estavam ligados à vida de sua tia; depois, do móvel de Beauvais aquele olhar se voltava para a pessoa que nele estava sentada, e então retomava o mesmo ar de perspicácia e de desaprovação que o respeito da Sra. de Guermantes pela tia a teria impedido de exprimir, mas enfim que ela teria sentido se houvesse percebido sobre as poltronas, em vez da nossa presença, a de uma mancha de graxa ou de uma camada de pó.
     O excelente escritor G*** entrou; vinha fazer à Sra. de Villeparisis uma visita que julgava um suplício. A duquesa, que se mostrou encantada em revê-lo, no entanto não lhe fez nenhum sinal, mas, com toda a naturalidade, ele se chegou para junto dela, visto que o encanto da duquesa, seu tato, sua simplicidade, faziam-na ser considerada uma mulher de espírito. Aliás, mandava a polidez que fosse falar com ela, pois, como ele era agradável e famoso, a Sra. de Guermantes o convidava seguidamente para almoçar, mesmo a sós com ela e o marido, ou, no outono, em Guermantes, se aproveitava dessa intimidade para convidá-lo algumas noites para jantar com altezas curiosas de conhecê-lo. Pois a duquesa gostava de receber certos homens de elite, porém sob a condição de que fossem solteiros, condição que, mesmo casados, eles preenchiam sempre para ela, pois, como suas mulheres, sempre mais ou menos vulgares, destoariam num salão onde só havia as mais elegantes beldades de Paris, eram sempre convidados sem elas; e o duque, para prevenir toda e qualquer suscetibilidade, explicava a esses viúvos forçados que a duquesa não recebia mulheres, não suportava a sociedade das mulheres, quase como se fosse por ordens do médico e como se este dissesse que ela não podia permanecer num quarto onde houvesse cheiros, comer coisas excessivamente salgadas, viajar no último vagão ou usar colete. É verdade que esses grandes homens viam, na casa dos Guermantes, a princesa de Parma, a princesa de Sagan (a quem Françoise, ouvindo sempre falar dela, acabou por chamá-la, crendo que esse feminino era exigido pela gramática, de A Sagana), e muitas outras, mas a sua presença era justificada dizendo-se que pertenciam à família, ou eram amigas de infância que não se podia eliminar. Convencidos ou não pelas explicações que o duque de Guermantes lhes dera sobre a singular enfermidade da duquesa de não poder frequentar mulheres, os grandes homens as transmitiam às esposas. Algumas pensavam que a doença não passava de um pretexto para ocultar o seu ciúme, pois a duquesa queria ser a única a reinar sobre uma corte de adoradores. Mais ingênuas ainda, outras pensavam que talvez a duquesa fosse um tipo singular, até mesmo com um passado escandaloso, que as mulheres não desejavam ir à casa dela, e que ela dava um nome de sua fantasia à necessidade. As melhores, ouvindo os maridos dizerem maravilhas do espírito da duquesa, achavam que esta era tão superior ao resto das mulheres que se aborrecia na sua sociedade, pois as mulheres não sabem falar de nada. E é verdade que a duquesa se aborrecia junto das mulheres quando a sua qualidade principesca não lhes emprestava um interesse especial. Mas as esposas eliminadas se enganavam ao imaginar que a Sra. de Guermantes não queria receber senão homens para poder falar de literatura, ciência e filosofia. Pois nunca falava disso, ao menos com os grandes intelectuais. Se, em virtude da mesma tradição de família que faz com que as filhas dos grandes militares conservem, em meio às suas mais vaidosas preocupações, o respeito às coisas do exército, ela, neta de mulheres que tinham sido ligadas a Thiers, Mérimée e Augier, pensava que, antes de tudo, é preciso guardar em seu salão um espaço para as pessoas de espírito, mas, por outro lado, mantivera, da maneira a um tempo condescendente e íntima com que esses homens eram recebidos em Guermantes, o costume de considerar as pessoas de talento como relações familiares, cujas qualidades não ofuscam e a quem não se fala de suas obras, o que aliás não lhes interessaria. E, além disso, o gênero de espírito de Mérimée, e de Meilhac e Halévy, que era o seu, a conduzia, por contraste com o sentimentalismo verbal de uma época anterior, a um tipo de conversação que rejeita tudo aquilo que se exprime em frases altissonantes e demonstra sentimentos elevados, e fazia com que ela exibisse uma espécie de elegância, quando estava com um poeta ou um músico, em só falar dos pratos que comiam ou dos jogos de cartas que iam praticar. Semelhante abstenção apresentava, para um terceiro que não estivesse ao corrente da coisa, algo de perturbador que chegava ao mistério. Se a Sra. de Guermantes lhe perguntava se desejaria ser convidado junto com determinado poeta célebre, ele comparecia à hora marcada, devorado de curiosidade. A duquesa falava ao poeta sobre o tempo que estava fazendo. Passavam à mesa. 

- Gosta desse modo de preparar os ovos? perguntava ela ao poeta.

     Diante de sua aquiescência, de que ela compartilhava, pois tudo o que fosse de sua casa lhe parecia delicioso, até mesmo uma cidra detestável que mandava vir de Guermantes: 

- Torne a servir ovos ao senhor. - ordenava ao mordomo, enquanto o terceiro, ansioso, esperava sempre o que o poeta e a duquesa tinham a se dizer, visto que, apesar de mil dificuldades, haviam conseguido uma forma de se ver antes da partida do poeta. Mas a refeição continuava, os pratos eram levados uns após outros, não sem fornecer à Sra. de Guermantes a ocasião de gracejos espirituosos ou de finas historietas. Entretanto, o poeta comia sempre sem que o duque ou a duquesa parecessem lembrar que ele era poeta. E logo o jantar acabava, e as pessoas se despediam sem ter dito uma palavra da poesia que, no entanto, todos apreciavam, mas da qual ninguém falava, devido a uma reserva análoga àquela da qual Swann me dera a antecipação. Essa reserva era simplesmente de bom gosto. Mas, para o terceiro, se refletisse um pouco a respeito, tinha ela algo de muito melancólico, e as refeições do círculo dos Guermantes faziam então pensar nessas horas que namorados tímidos passam muitas vezes juntos, falando de banalidades até o instante de se separarem, e sem que, seja por timidez, pudor ou falta de jeito, tenham podido passar do coração aos lábios o grande segredo que ficariam tão felizes em confessar. Aliás, cumpre acrescentar que tal silêncio guardado sobre coisas profundas, cujo momento de serem abordadas sempre se espera em vão, se podia passar como característico da duquesa, nela não era absoluto. A Sra. de Guermantes tinha passado a juventude num ambiente um pouco diverso, também aristocrático, porém menos brilhante e sobretudo menos fútil que o daquele em que hoje vivia, e de grande cultura. Este deixara à sua frivolidade atual uma espécie de tufo mais sólido, invisivelmente nutritivo, e onde a própria duquesa ia buscar (muito raramente, pois detestava o pedantismo) alguma citação de Victor Hugo ou de Lamartine que, muito bem adequada, dita com um olhar sentido de seus belos olhos, não deixava de surpreender e de encantar. Às vezes até, sem pretensões, com pertinência e simplicidade, ela dava a um dramaturgo acadêmico um conselho sagaz, fazia com que atenuasse uma situação ou modificasse um desfecho.
     
     Se, no salão da Sra. de Villeparisis, tanto como na igreja de Combray, eu custava a encontrar no rosto bonito e por demais humano da Sra. de Guermantes o desconhecido de seu nome, pensava ao menos que, quando ela falasse, sua conversação, profunda, misteriosa, teria uma estranheza de tapeçaria medieval, de vitral gótico. Mas, para que eu não me decepcionasse com as palavras que ouviria pronunciar a uma pessoa que se chamava Sra. de Guermantes, mesmo que não a amasse, não bastaria que tais palavras fossem delicadas, belas e profundas; seria necessário que refletissem aquele tom de amaranto da última sílaba de seu nome, aquela cor que, desde o primeiro dia, eu me espantava por não encontrar em sua pessoa, e que eu fizera refugiar-se no seu pensamento. Decerto eu já ouvira a Sra. de Villeparisis, Saint-Loup, pessoas cuja inteligência nada apresentava de extraordinário, pronunciarem sem precauções esse nome de Guermantes, simplesmente como sendo o de uma pessoa que chegaria de visita ou com quem iam jantar, não parecendo sentir nesse nome terrenos de bosques amarelecidos e todo um misterioso recanto de província. Mas isto devia ser uma afetação da parte deles, como quando os poetas clássicos não nos advertem das profundas intenções que no entanto tiveram, afetação que eu também me esforçava por imitar, dizendo no tom mais natural: a duquesa de Guermantes, como um nome que se assemelhasse a outros. Além disso, todos asseguravam que se tratava de uma mulher muito inteligente, de conversação espirituosa, vivendo num grupinho dos mais interessantes: palavras que se faziam cúmplices do meu sonho. Pois, quando diziam "grupo inteligente", "conversação espirituosa", o que imaginava não era, de modo algum, a inteligência tal como eu a conhecia, mesmo que fosse a dos maiores espíritos, não era de forma alguma de pessoas como Bergotte que eu compunha aquele grupo. Não; por inteligência, eu entendia uma faculdade inefável, dourada, impregnada de um frescor silvestre. Mesmo enunciando as coisas mais inteligentes (no sentido em que empregava o vocábulo "inteligente", quando se tratava de um filósofo ou de um crítico), a Sra. de Guermantes teria talvez decepcionado ainda mais a minha expectativa de uma faculdade tão especial, do que se, numa conversação insignificante, ela se limitasse a falar de receitas culinárias ou do mobiliário do castelo, se restringisse a citar nomes de vizinhos ou de parentes seus, que me tivessem evocado a sua vida.

- Pensava encontrar Basin aqui, ele planejava vir vê-la. - disse a Sra. de Guermantes à tia. 
- Não vejo o seu marido há vários dias. - respondeu a Sra. de Villeparisis num tom suscetível e amuado. - Não o vi, ou melhor, quem sabe uma vez, desde aquela graçola encantadora de se fazer anunciar como a rainha da Suécia.

     Para sorrir, a Sra. de Guermantes apertou os cantos da boca feito se tivesse mordido o véu. 

- Jantamos ontem com ela na casa de Blanche Leroi, a senhora não a reconheceria; ela se tornou enorme, tenho certeza de que está doente. 
- Estava justamente dizendo a estes senhores que você achava que ela se parecia com uma rã.

     A Sra. de Guermantes fez ouvir uma espécie de som rouco, o que indicava que ela troçava por desencargo de consciência.

- Não sabia que tinha feito esta linda comparação, mas, nesse caso, agora foi a rã que conseguiu tornar-se tão grande como o boi. Ou melhor, não é precisamente isto, porquanto toda a sua corpulência se acumulou no ventre; é antes uma rã em estado interessante. 
- Ah, acho engraçada a sua imagem. - disse a Sra. de Villeparisis, que, no fundo, diante dos visitantes, tinha muito orgulho do espírito da sobrinha. 
- Ela é principalmente arbitrária. - replicou a Sra. de Guermantes, destacando com ironia o epíteto escolhido, como o teria feito Swann -, pois confesso jamais ter visto uma rã grávida. Em todo caso, essa rã, que aliás não pede rei, pois nunca a vi tão brincalhona como depois da morte do marido, deve ir jantar lá em casa um dia, na próxima semana. Eu disse que, de qualquer modo, avisaria a senhora. 

     A Sra. de Villeparisis deixou ouvir uma espécie de resmungo indistinto. 

- Sei que ela jantou anteontem na casa da Sra. de Mecklembourg. - acrescentou. - Lá estava Hannibal de Bréauté. Ele veio contar-me tudo, devo dizer, aliás, que com muita graça. 
- Nesse jantar havia alguém ainda mais espirituoso que Babal. - disse a Sra. de Guermantes, que, por mais íntima que fosse do Sr. de Bréauté-Consalvi, fazia questão de mostrá lo chamando-o por esse diminutivo. - Era o Sr. Bergotte.

     Eu não imaginara que Bergotte pudesse ser tido como espirituoso; ademais, ele me parecia como que mesclado à humanidade inteligente, quer dizer, infinitamente distante daquele reino misterioso que eu havia percebido sob os véus de púrpura de uma frisa, e onde o Sr. de Bréauté, fazendo rir a duquesa, mantinha com ela, na língua dos deuses, esta coisa inimaginável: uma conversação entre pessoas do faubourg Saint-Germain. Fiquei aflito ao ver romper-se o equilíbrio e Bergotte passar por cima do Sr. de Bréauté. Sobretudo, porém, o que me desesperou foi ter evitado Bergotte na noite da Fedra, não ter ido ao seu encontro, quando ouvi a Sra. de Guermantes dizer à Sra. de Villeparisis: 

- É a única pessoa que tenho vontade de conhecer. - acrescentou a duquesa, em quem sempre se podia ver, como no momento de uma maré espiritual, o fluxo de uma curiosidade em relação a intelectuais famosos cruzando-se com o reflexo do esnobismo aristocrático. - Isso me daria muito prazer!

     A presença de Bergotte a meu lado, presença que me teria sido tão fácil de conseguir, mas que eu pensara pudesse dar má ideia de mim à Sra. de Guermantes, teria sem dúvida tido como resultado, ao contrário, que a duquesa me chamasse ao seu camarote para me pedir que levasse um dia o grande escritor para almoçar. 

- Parece que ele não tem sido muito amável; apresentaram-no ao Sr. de Cobourg e ele não lhe disse uma só palavra. - acrescentou a Sra. de Guermantes, assinalando esse traço curioso como se contasse que um chinês se assoara com papel. - Não lhe disse uma só vez "Monsenhor" continuou, divertida por esse detalhe, tão importante para ela como a recusa, por um protestante, durante uma audiência do Papa, de se pôr de joelhos diante de Sua Santidade.

     Interessada por essas particularidades de Bergotte, não dava, aliás, a impressão de achá-las censuráveis, parecendo antes considerá-las um mérito, sem que soubesse exatamente de que tipo. Apesar desse modo estranho de compreender a originalidade de Bergotte, sucedeu-me posteriormente não julgar de todo desprezível o fato de que a Sra. de Guermantes, para grande espanto de muitos, achasse Bergotte mais espirituoso que o Sr. de Bréauté. Tais julgamentos subversivos, isolados e, apesar de tudo, justos, são assim levados à sociedade por algumas raras pessoas superiores às outras. E nela desenham os primeiros delineamentos da hierarquia de valores tal como será estabelecida pela geração seguinte, em vez de prender-se eternamente à antiga.
     O conde de Argencourt, encarregado dos Negócios da Bélgica e primo em terceiro grau por casamento da Sra. de Villeparisis, entrou coxeando, seguido logo de dois rapazes, o barão de Guermantes e Sua Alteza o duque de Châtellerault, a quem a Sra. de Guermantes disse:

- Bom-dia, meu pequeno Châtellerault. - com um ar distante e sem se erguer do tamborete, pois era uma grande amiga da mãe do jovem duque, o qual, por causa disso e desde a infância, sentia enorme respeito por ela. Altos e esguios, de pele e cabelos dourados, inteiramente do tipo Guermantes, esses dois rapazes davam a ideia de uma condensação da luz primaveril e vesperal que inundava o grande salão. Conforme um hábito que estava na moda na ocasião, puseram a cartola no chão, a seu lado. O historiador da Fronda pensou que estivessem constrangidos, como um camponês quando entra na Prefeitura e não sabe o que fazer do chapéu. Julgando dever vir caridosamente em auxílio do jeito canhestro e da timidez que lhes atribuía, disse-lhes: 
- Não, não as coloquem no chão; assim vão estragá-las.

     Um olhar do barão de Guermantes, tornando oblíquo o plano de suas pupilas, derramou lhes de súbito uma cor de um tom azul cru e cortante que gelou o benévolo historiador. 
- Como se chama este senhor? - perguntou-me o barão, que acabara de ser-me apresentado pela Sra. de Villeparisis. 
- Sr. Pierre. - respondi a meia voz. 
- Pierre de quê? 
- Pierre é o seu sobrenome; é um historiador de muito mérito. 
- Bem, se o senhor o diz... 
- Não, é um hábito novo que têm estes senhores de pôr os chapéus no chão. - explicou a Sra. de Villeparisis -; sou como o senhor, não consigo habituar-me. Mas prefiro assim do que o que faz o meu sobrinho Robert, que sempre deixa o seu na antecâmara. Quando o vejo entrar assim, digo-lhe que parece o relojoeiro e pergunto se veio acertar os pêndulos. 
- Falava_ há pouco, senhora marquesa, do chapéu do Sr. Molé; em breve chegaremos a fazer, como Aristóteles, um capítulo sobre os chapéus disse o historiador da Fronda, um tanto sossegado pela intervenção da Sra. de Villeparisis, mas com voz ainda tão fraca que ninguém, a não ser eu, o ouviu. 
- Ela é verdadeiramente espantosa, a duquesinha. - disse o Sr. de Argencourt, mostrando a Sra. de Guermantes que conversava com G. - Desde que haja um homem em evidência no salão, está sempre a seu lado. É claro que quem se acha ali só pode ser o sumo pontífice. Não pode ser todos os dias o Sr. de Borelli, Schlumberger ou d'Avenel. Mas então será o Sr. Pierre Loti ou o Sr. Edmond Rostand. Ontem à tarde, na casa dos Doudeauvilles, onde, de passagem, ela estava esplêndida sob um diadema de esmeraldas, num longo vestido rosado de cauda, tinha de um lado o Sr. Deschanel e do outro o embaixador da Alemanha: discutia com eles sobre a China; o grosso do público, a distância respeitosa, e que não ouvia o que eles estavam dizendo, se perguntava se haveria guerra. Na verdade, dir-se-ia uma rainha que se dirigisse a seus cortesãos.

continua na página 89...
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