A Montanha Mágica
Capítulo V
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continuando...
Pouco depois do Natal morreu o aristocrata austríaco... Mas antes celebrou-se ainda o
Natal, esses dois dias de festa, ou mais exatamente esses três dias, se se incluir o Ano-Novo, que
Hans Castorp aguardara com certo pavor, perguntando-se com cética curiosidade como
passariam, e que então tinham chegado e decorrido como dias normais, com uma manhã, uma
tarde e uma noite, e com um tempo nada extraordinário, de leve degelo, não se diferenciando de
outros exemplares da sua espécie. Exteriormente haviam recebido certas distinções e certos
adornos, e durante o prazo que lhes era outorgado tinham exercido o seu domínio sobre os
cérebros e os corações dos homens, antes de se tornarem passado, próximo e cada vez mais
distante, deixando atrás um sedimento de impressões destacadas da vida cotidiana...
O filho do Dr. Behrens, de nome Knut, veio passar as férias em Davos e se alojou com o
pai na ala do sanatório. Era um rapaz bonito, mas cuja nuca também já começava a salientar-se
em demasia. A presença do jovem Behrens fazia-se sentir no ambiente. As senhoras mostravam
se risonhas, faceiras e irritadiças, e as suas conversas tratavam de encontros com Knut no jardim,
no bosque ou na estância balneária. Ele também recebeu visitas: certo número de colegas da
universidade subiram ao vale, seis ou sete estudantes, alojados na aldeia, mas que tomavam as
refeições em companhia do conselheiro e, reunidos com outros membros do seu grêmio,
percorriam em grupos toda a região. Hans Castorp procurava não encontrá-los. Evitava esses
jovens, e tanto ele como Joachim esquivavam-se ao contato com eles, pois não tinham nenhuma
vontade de conhecê-los. Todo um mundo separava os que viviam ali em cima desses rapazes que
cantavam, caminhavam e brandiam bengalas. Hans Castorp nada queria saber nem ouvir a
respeito deles. Além disso, a maioria dos visitantes parecia natural do norte da Alemanha; talvez
até houvesse entre eles alguns concidadãos, e Hans Castorp experimentava alguma aversão pelos
seus conterrâneos. Frequentemente ventilava, com antipatia, a possibilidade da chegada de
hamburgueses ao Berghof, tanto mais que Behrens dissera que essa cidade fornecia ao
estabelecimento um considerável contingente de clientes. Era possível que algum patrício seu se
encontrasse entre os doentes graves ou moribundos que ninguém via. Visível era apenas um
comerciante de faces cavas, que se instalara, fazia algumas semanas, à mesa da Srª. Iltis, e do qual
diziam que era natural de Cuxhaven. Ao pensar nessa vizinhança, Hans Castorp regozijava-se
com a dificuldade de estabelecer, ali em cima, contato com as pessoas de outras mesas, e com o
fato de ser a sua terra natal muito extensa e dividida em diversas esferas. A presença indiferente
desse comerciante tranquilizava em grande parte as preocupações que despertara nele a ideia de
topar com outros hamburgueses no recinto do sanatório.
Aproximava-se, pois, o Ano-Novo. Certo dia já estava iminente, e no seguinte tornou-se
realidade... Naquela ocasião, quando Hans Castorp se admirara de já ouvir falar do Natal, pelo
menos seis semanas o haviam separado da festa, tanto tempo, por conseguinte, quanto deviam
durar toda a sua permanência segundo o plano primitivo e mais as três semanas que passara na
cama. Mas, as seis semanas de então tinham representado um tempo enorme, sobretudo a sua
primeira metade, tal qual se afigurava à retrospectiva de Hans Castorp, ao passo que agora um
período teoricamente igual significava quase nada: parecia-lhe que os comensais tinham razão
quando faziam tão pouco caso desse lapso de tempo. Seis semanas, nem sequer tantas quantos
dias tem a semana – que importância tinham elas, quando se ventilava a outra questão de saber o
que era uma dessas semanas, um desses pequenos circuitos de segunda-feira até domingo e até a
nova segunda-feira? Bastava considerar o valor e a significação da unidade menor, mais próxima,
para compreender que o resultado da adição não podia ser grande coisa, resultado esse que, além
do mais e ao mesmo tempo, intensificava sensivelmente o processo de contração, obliteração,
encolhimento e destruição. Que era um dia, contado, por exemplo, a partir do momento em que
a gente se sentava para almoçar, até a volta desse instante, vinte e quatro horas depois? Nada –
apesar de serem vinte e quatro horas. Mas, que era, afinal, uma hora, gasta, por exemplo, no
repouso obrigatório, num passeio ou numa refeição – enumeração que esgotava,
aproximadamente, as possibilidades de se passar essa unidade de tempo? Outra vez nada. O total
desses nadas pesava pouco. O caso tornava-se, todavia, mais sério, quando a escala descia até as
unidades menores: esses sete vezes sessenta segundos, durante os quais se mantinha o
termômetro entre os lábios, a fim de poder-se prolongar a curva da temperatura, tinham uma
vida tenaz e o seu peso era considerável; dilatavam-se até formar uma pequena eternidade,
insertavam períodos de extrema solidez na fuga fantasmagórica do tempo graúdo...
O dia de festa mal fora capaz de perturbar o regime habitual dos habitantes do Berghof.
Um belo pinheiro já fora erguido, alguns dias antes, ao lado direito da sala de refeições, junto à
mesa dos “russos ordinários”, e seu aroma que, através do cheiro dos pratos abundantes, chegava
às vezes até os comensais, acendia um quê pensativo nos olhos de algumas pessoas agrupadas em
torno das sete mesas. Na hora do jantar do dia 24 de dezembro, a árvore ostentava enfeites
variegados de fios de prata, bolas de vidro, pinhões dourados, pequenas maçãs, suspensas em
redes, e toda espécie de bombons. As velas de cera multicor brilharam durante e após a refeição.
Segundo se dizia, achavam-se arvorezinhas de velas acesas também nos quartos dos doentes
acamados; cada qual tinha a sua. E nos últimos dias, o correio trouxera encomendas em
abundância. Também Joachim Ziemssen e Hans Castorp haviam recebido remessas da sua terra
na longínqua planície, mimos empacotados com carinho, que agora se achavam espalhados pelos
seus quartos: roupas engenhosamente escolhidas, gravatas, objetos de luxo, executados em couro
e níquel, bem como muitos doces próprios para a festa, nozes, maçãs e maçapão – provisões que
os primos contemplavam com um ar incerto, perguntando-se quando chegaria o momento de
comer tudo isso. Como Hans Castorp sabia, o seu pacote fora feito por Schalleen, que também
comprara os presentes, após uma ponderada deliberação com os tios. A remessa vinha
acompanhada de uma carta de James Tienappel, redigida a máquina, mas em seu grosso papel
particular. O tio transmitia as felicitações de Natal e os votos por um rápido restabelecimento, os
do tio-avô tanto como os seus próprios, e com muito senso prático acrescentava logo as
felicitações pelo Ano-Novo, já quase que vencidas, assim como também fizera Hans Castorp,
quando, em tempo, escrevera deitado na espreguiçadeira a carta de Natal ao Cônsul Tienappel,
comunicando ainda alguns pormenores acerca do seu estado de saúde.
Na sala de refeições, a árvore resplandecia, crepitava, exalava o seu perfume e mantinha
viva nos corações e nos espíritos a consciência da hora. Todos se haviam engalanado; os senhores
trajavam smoking, e as senhoras exibiam joias que lhes tinham enviado as mãos carinhosas dos
maridos, de todas as zonas da planície. Também Clávdia Chauchat substituíra o costumeiro
suéter de lã por um vestido de gala, que tinha, todavia, algo de extravagante, ou melhor, de
nacional: era um costume claro, cinturado e bordado, de caráter rústico, russo ou pelo menos
balcânico, talvez búlgaro, guarnecido de lantejoulas de ouro, e cujas amplas pregas faziam-lhe a
silhueta parecer mais cheia do que normalmente, o que correspondia muito bem àquilo que
Settembrini chamava a sua “fisionomia tártara” e sobretudo a seus “olhos de lobo da estepe”.
Reinava grande alegria na mesa dos “russos distintos”; foi ali que espocou a primeira rolha de
champanha, que então surgiu em quase todas as mesas. Na dos primos, a velha tia pediu-o para a
sua sobrinha e para Marusja, e logo se pôs a regalar todo mundo. O cardápio era seleto e
terminava com pastéis de queijo e bombons finos, sendo completado por café e licores. De vez
em quando, um ramo de pinheiro que se incendiara e tinha de ser apagado depressa provocava
um pânico barulhento e exagerado. Settembrini, vestido como sempre, e com um palito na mão,
sentou-se um instante, ao fim do banquete, à mesa dos primos. Caçoou com a Srª. Stöhr e passou
então a comemorar, em algumas frases, o Filho do Carpinteiro e o Rabino da Humanidade, cujo
aniversário se simulava nesse dia. Não se sabia com certeza se ele vivera verdadeiramente. Mas o
que nascera naquela época e começava a sua marcha vitoriosa, ininterrompida até hoje, era a ideia
do valor da alma individual, junto com a ideia da igualdade – numa palavra, a democracia
individualista. A ela brindava, ao esvaziar a taça que lhe haviam oferecido. A Srª. Stöhr achou essa
maneira de falar “equívoca e desalmada”. Levantou-se sob protesto, e como, de qualquer modo,
os demais já estavam abandonando a sala de refeições, os companheiros de mesa imitaram-lhe o
exemplo.
A reunião noturna tornou-se solene e animada pela entrega dos presentes ao Dr. Behrens,
que chegou, acompanhado de Knut e da Mylendonk, para passar meia hora com seus pacientes.
O ato teve lugar na saleta dos aparelhos ópticos. O presente que os russos ofertavam em
separado consistia num objeto de prata, uma bandeja redonda, muito grande, em cujo centro se
achava gravado o monograma do conselheiro, e que, evidentemente, não podia ter a menor
serventia. Em compensação, o divã, com o qual os demais pensionistas haviam presenteado o
médico, servia ao menos para a gente se deitar, conquanto ainda não tivesse nem colcha nem
almofadas e fosse simplesmente forrado de pano. Mas, a cabeceira era graduável, e Behrens logo
experimentou a comodidade do móvel, estendendo-se ao comprido, com a bandeja inútil sob o
braço, cerrando os olhos e pondo-se a roncar qual uma serraria; pretendia ser o dragão Fafnir ao
lado do seu tesouro. A hilaridade foi grande. Também Mme. Chauchat riu-se dessa cena; seus
olhos estreitaram-se, a boca estava muito aberta, exatamente – assim pareceu a Hans Castorp –
como a de Pribislav Hippe quando se ria.
Imediatamente após a saída do diretor, foram ocupadas as mesas de jogo. O grupo russo
instalou-se, como sempre, no pequeno salão. Na sala de refeições, alguns pensionistas
permaneceram de pé, em torno da árvore de Natal, observando como os tocos de vela se
apagavam nos suportes, e saboreando os bombons suspensos dos ramos. Às mesas, já postas
para o café da manhã, achavam-se sentadas diversas pessoas, distantes umas das outras, num
isolamento silencioso; havia quem apoiasse a cabeça nas mãos.
O primeiro dia de Natal foi úmido e brumoso. Tratava-se apenas de nuvens, segundo
afirmava Behrens, nuvens que envolviam o vale. Nunca havia cerração ali em cima. Mas, nuvens
ou cerração – em todo caso a umidade era penetrante. A neve caída ia se derretendo na
superfície, tornando-se porosa e pegajenta. Durante o repouso obrigatório, o rosto e as mãos
enregelavam-se de maneira muito mais penosa do que em dias de frio seco.
O dia distinguiu-se por um sarau musical, um verdadeiro concerto com cadeiras
enfileiradas e programas impressos, oferecido aos “dali de cima” pela direção do Berghof. Era um
recital de canções, executado por uma cantora profissional que vivia em Davos e dava aulas.
Levava ela duas medalhas junto ao decote do vestido de gala. Tinha uns braços que se pareciam
com bengalas, e uma voz cujo timbre estranhamente surdo revelava de modo lastimável os
motivos da sua permanência nessas alturas. Cantava:
“Eu levo comigoO meu amor...”
O pianista que a acompanhava residia igualmente na aldeia. Mme. Chauchat estava
sentada na primeira fila, mas aproveitou o intervalo para se retirar, de forma que Hans Castorp, a
partir desse momento, teve ensejo para escutar a música – de qualquer modo tratava-se de música – com o coração tranquilo, seguindo a letra das canções que se achava impressa nos programas.
Durante algum tempo, Settembrini quedou-se a seu lado, antes que desaparecesse também, após
ter feito algumas observações incisivas e plásticas acerca do bel canto surdo da cantora do lugar e
de ter observado, com alguma satisfação satírica, que mesmo nessa noite estavam “em família”.
Para falar a verdade, Hans Castorp sentiu-se aliviado quando ambos saíram, a mulher dos olhos
estreitos e o pedagogo, permitindo-lhe devotar livremente a sua atenção às canções. Julgou
acertado que no mundo inteiro se fizesse música, até sob as circunstâncias mais especiais,
inclusive nas expedições polares.
O segundo dia de Natal já não se distinguiu em nada, a não ser pela ligeira consciência da
sua presença, de um domingo ou mesmo de um simples dia útil. Quando chegou a seu fim,
pertencia a festa de Natal ao passado ou, como poderíamos dizer com igual exatidão, ficava
relegada ao longínquo porvir, à distância de um ano; haveria novamente doze meses até a época
em que o Natal se renovaria no ciclo do ano – afinal de contas apenas sete meses a mais do que
Hans Castorp já acabava de passar ali em cima.
Mas, logo após o Natal desse ano, ainda antes do Ano-Novo, morreu o aristocrata
austríaco. Os primos souberam por intermédio de Alfreda Schildknecht, a chamada Irmã Berta,
enfermeira do pobre Fritz Rotbein, a qual lhes comunicou no corredor o acontecimento, que
exigia discrição. Hans Castorp interessou-se vivamente pelo assunto, já que as manifestações de
vida do aristocrata haviam formado parte das primeiras impressões que recebera ali – daquelas
impressões que, segundo lhe parecia, tinham provocado a sensação de calor no seu rosto, a qual
persistia desde então – e também por motivos morais, de natureza quase religiosa. Hans Castorp
obrigou Joachim a uma prolongada conversa com a diaconisa, que apreciava com gratidão e
tenacidade o diálogo e a troca de opiniões. Era um milagre – dizia ela – que o austríaco houvesse
chegado a ver os dias de festa. Desde muito, o cavalheiro mostrara grande resistência, mas
ninguém podia explicar com o que conseguira respirar nos últimos tempos. Verdade era que
desde alguns dias só se sustentara graças a imensas quantidades de oxigênio; ainda ontem
consumira quarenta balões, a seis francos cada um. Isso devia ter custado um dinheirão, como os
senhores podiam calcular. Era preciso considerar, além do resto, que a esposa, em cujos braços
expirara, ficava completamente sem recursos. Joachim desaprovou esse desperdício. Para que
aquela tortura e aquela demora artificial e custosa num caso totalmente desesperado? Não se
podia censurar o homem por ter engolido cegamente o precioso gás vivificante, já que o tinham
forçado a isso. Porém os que o tratavam deveriam ter procedido com mais siso, deixando-o
trilhar com Deus o seu caminho inevitável, independentemente da situação financeira, e ainda
mais em consideração a esta. Os vivos também tinham algum direito. E ainda outras coisas nesse
tom. Mas Hans Castorp replicou-lhe com ênfase. Censurou o primo por falar quase como
Settembrini, sem respeito nem pejo diante do sofrimento. O aristocrata austríaco morrera, afinal,
e em face desse fato deviam cessar quaisquer brincadeiras. Era só isso que lhes restava fazer para
demonstrarem a sua seriedade, e um agonizante tinha direito a toda a reverência e a todas as
honras. Hans Castorp insistia em defender essa opinião. Esperava ao menos que Behrens não
tivesse ralhado com o aristocrata, ainda in extremis, fazendo-lhe reprimendas naquela sua maneira
ímpia. Não havia sido necessário, declarou a Schildknecht. O moribundo fizera, na verdade, no
último momento, uma pequena e inconsiderada tentativa de fuga, procurando saltar da cama.
Mas uma simples observação a respeito da inutilidade de tal intento bastara para fazê-lo desistir
de uma vez por todas.
Hans Castorp foi ver o defunto. Fê-lo por antipatizar com o sistema estabelecido, que
consistia em ocultar tais acontecimentos. Desprezava essa atitude egoísta dos outros, que não
queriam saber nem ver nem ouvir essas coisas, e desejava contrariá-la ativamente. À mesa fizera
uma tentativa no sentido de mencionar o óbito, mas houvera em face do assunto uma repulsa tão
unânime e tão obstinada que Hans Castorp sentira vergonha e indignação. A Srª. Stöhr até se
mostrara agressiva. Que ideia era essa de falar daquelas coisas?, perguntara. Que espécie de
educação recebera ele? O regulamento da casa protegia os pensionistas cuidadosamente contra o
contato com tais histórias, e agora vinha um novato e se metia a falar disso em voz alta,
justamente na hora do assado, e ainda em presença do Dr. Blumenkohl, que a qualquer instante
podia ter a mesma sorte. (Essas últimas palavras foram tapadas com a mão.) Se isso se repetisse,
ela ia queixar-se ao diretor. Em consequência dessa atitude, decidira Hans Castorp – e também
expressara a sua decisão – prestar a derradeira homenagem ao companheiro falecido, indo visitá-lo no seu leito de morte e rezando uma tácita oração. Convencera Joachim a que o
acompanhasse.
Por intermédio da Irmã Berta conseguiram penetrar na câmara mortuária, que se achava
no primeiro andar, debaixo dos seus próprios quartos. Recebeu-os a viúva, uma lourinha
desgrenhada, exausta pelas vigílias, de nariz vermelho, com um lenço diante da boca; trajava um
grosso sobretudo, com a gola levantada, pois fazia muito frio no recinto. Haviam desligado a
calefação, e a porta da sacada estava aberta. Em voz abafada, os jovens murmuraram algumas
palavras adequadas. A seguir, melancolicamente convidados por um gesto de mão, atravessaram
o quarto em direção à cama, avançando nas pontas dos pés, com passo reverencioso e
cadenciado, e permaneceram em contemplação diante do leito do morto, cada qual à sua maneira:
Joachim, numa posição militar, com os tacões unidos, saudando com uma leve mesura; Hans
Castorp, relaxado e pensativo, com as mãos cruzadas sobre o peito, e com a cabeça inclinada para
o ombro, exibindo uma fisionomia semelhante àquela com que costumava ouvir música. A
cabeça do aristocrata achava-se colocada muito alto, de maneira que o corpo, esse conjunto
comprido, berço dos múltiplos processos da vida, com os pés erguidos sob a extremidade da
colcha, aparecia tanto mais plano, lembrando uma tábua. Uma grinalda de flores jazia na região
dos joelhos, e o ramo de palmas que saía dela tocava as grandes mãos amarelas e ósseas, que
repousavam entrelaçadas sobre o peito afundado. Amarelo e ósseo era também o rosto, com o
crânio calvo, o nariz adunco, as maçãs acentuadas e o basto bigode ruivo, cuja espessura ainda
contribuía para intensificar a concavidade cinzenta das faces hirtas. Os olhos estavam fechados
com uma firmeza pouco natural. “Não se fecharam, foram fechados”, pensou Hans Castorp.
Chamava-se isso o último tributo, apesar de ser rendido antes em consideração aos vivos do que
ao morto. Era preciso fazê-lo a tempo, imediatamente depois da morte; pois, uma vez formada a
miosina nos músculos, tornava-se impossível; então o cadáver permanecia estendido, olhando
fixamente, e já não se podia manter a doce ilusão do “adormecimento”.
Como perito, sentindo-se no seu elemento sob mais de um aspecto, Hans Castorp
detinha-se ao lado da cama, cheio de competência, mas também de piedade. – Parece dormir –
disse por compaixão, se bem que houvesse grandes diferenças. A seguir, numa voz
convenientemente abafada, entabulou uma conversa com a viúva do aristocrata, informando-se
sobre o martírio do marido, sobre os últimos dias e instantes, e sobre o futuro transporte do
corpo para a Caríntia. A simpatia e a compreensão que suas perguntas demonstravam tinham um
caráter ao mesmo tempo médico e sacerdotal. A viúva expressava-se no seu dialeto austríaco,
numa fala arrastada e fanhosa, às vezes interrompida por soluços. Pareceu-lhe notável que dois
jovens manifestassem tanta disposição para participar da mágoa alheia; ao que Hans Castorp
respondeu que seu primo e ele também estavam enfermos; quanto à sua própria pessoa, já se
achara, em idade muito tenra, junto ao leito de morte de parentes próximos; era órfão de pai e
mãe, e por conseguinte familiarizado com a morte havia muito tempo. Ela indagou pela profissão
que Hans Castorp escolhera. Ele explicou que “fora” engenheiro. Fora? Sim, no sentido de que
agora a enfermidade e a duração bastante incerta da sua permanência ali em cima lhe haviam
estorvado os planos, o que, indubitavelmente, representava um marco importante e talvez um
novo rumo para a sua existência. Isso não se podia prever. (Joachim lançou-lhe um olhar
observador e espantado.) – E o senhor seu primo? – perguntou ela.
– Ele deseja ser soldado, lá embaixo. É aspirante.
– Ah! – disse a viúva, e acrescentou que a profissão militar era, com efeito, apropriada
para induzir à seriedade. Um soldado devia andar preparado para certas circunstâncias que o
pusessem em contato direto com a morte. Talvez lhe fizesse bem habituar-se desde cedo ao seu
aspecto. E ela despediu os jovens, expressando gratidão com uma calma amável que não podia
deixar de causar respeito a quem considerasse a sua situação angustiosa e, sobretudo, a elevada
conta de oxigênio que lhe legara o marido. Os primos voltaram aos seus quartos. Hans Castorp
mostrou-se satisfeito com a visita e piedosamente inspirado pelas impressões que acabava de
receber.
– Requiescat in pace – disse. – Sit tibi terra levis. Requiem aeternam dona ei, Domine. Você está
vendo, quando se trata da morte, ou quando a gente se dirige a um morto ou se refere a ele, o
latim entra novamente nos seus direitos. É a língua oficial para esses casos. Vê-se que a norte é
coisa bem especial. Mas não é por mera cortesia humanística que se fala latim em sua honra. A
língua dos mortos não é o latim que se aprende na escola, sabe? Tem um espírito muito diferente,
um espírito completamente oposto, pode-se dizer. É o latim sacro, o dialeto monacal, é a Idade
Média, em certo sentido, um canto surdo, monótono, que sai de baixo da terra. Settembrini não
gostaria dele; isso não agrada a humanistas e republicanos e a esse tipo de pedagogos; nasceu de
outra mentalidade, da outra das duas que existem. Acho que devemos adquirir clareza a respeito
das diferentes tendências do espírito, ou talvez seja melhor dizer: a respeito dos seus diferentes
estados. Há duas atitudes: a livre e a piedosa. Ambas têm as suas vantagens, mas o que me faz
antipatizar com a atitude livre, quero dizer, a de Settembrini, é que ela pretende ter o monopólio
da dignidade. Isso é exagerado. A outra atitude encerra também, a seu modo, muita dignidade
humana e resulta num vasto conjunto de decência, de procedimento correto e de nobre
cerimonial, muito mais do que a atitude livre, embora vise especialmente à fraqueza e à
instabilidade dos homens e nela desempenhe um papel importante o pensamento da morte e da
decomposição. Você já viu no teatro o Dom Carlos e as coisas que se passam na corte espanhola,
quando entra o Rei Filipe todo vestido de preto, com a Ordem da Jarreteira e a do Tosão de
Ouro, e tira lentamente o chapéu, que se parece muito com os nossos chapéus-coco. Levanta-o e
diz: “Cobri-vos, meus grandes!” ou qualquer coisa nesse sentido. Não se pode negar que isso é
um comportamento sumamente comedido. Nele nada nos lembra relaxamento e costumes
descuidados. Pelo contrário, a própria rainha diz: “Na minha França tudo era diferente”. Claro,
ela acha que tudo isso é excessivamente complicado e meticuloso; desejaria um ambiente mais
alegre, mais humano. Mas que quer dizer humano? Tudo é humano. O elemento devoto,
humildemente solene, rigorosamente regulado, que é peculiar aos espanhóis, é um gênero muito
digno da humanidade, penso eu, e por outro lado essa palavra “humano” pode encobrir qualquer
desordem e negligência. Não está de acordo?
– Nesse ponto concordo com você – disse Joachim. – Eu também não suporto a
negligência e a moleza. A disciplina é indispensável.
– Pois é. Vocês têm o uniforme que é limpo e justo e requer um colarinho
engomado. Essas coisas dão às pessoas um certo decoro. E existem ainda a hierarquia e a
obediência, e um soldado presta honra ao outro, cerimoniosamente. Tudo isso se faz dentro do
espírito espanhol, por devoção, e no fundo me agrada bastante. Entre nós, os civis, deveria haver
muito mais desse espírito, nos nossos costumes e na nossa atitude. É o que eu prefiro e que julgo
conveniente. Parece-me que o mundo e a vida foram feitos de tal sorte que deveríamos sempre
andar de preto, com uma golilha engomada em lugar do colarinho, e manter uns com os outros
relações graves, reservadas e formais, recordando-nos da morte. Eu gostaria que fosse assim.
Acho que isso corresponde à moral. Olhe, aí temos mais um desses erros e dessas presunções de
Settembrini. É ótimo que a nossa conversa me proporcione uma oportunidade para falar sobre
isso. Ele imagina ter monopolizado não somente a dignidade humana, mas também a moral, por
causa da sua “atividade prática” e das suas solenidades domingueiras em prol do progresso –
como se precisamente nos domingos não se pensasse em coisas bem alheias ao progresso – e
com o seu extermínio sistemático dos males; é esse um assunto de que você não está inteirado,
mas do qual ele me falou para me instruir. O homem quer exterminá-los sistematicamente, por
meio de uma enciclopédia. E se justamente isso me parece imoral?... Claro que não o digo a ele,
porque logo me esmagaria com a sua lábia plástica e diria: “Eu o estou prevenindo, engenheiro!”
Mas pelo menos tenho o direito de pensar o que quero. “Majestade, conceda-nos liberdade de
pensamento!” Vou lhe dizer uma coisa – acrescentou. Nesse meio tempo haviam chegado ao
quarto de Joachim, e este se preparava para o repouso. – Vou lhe dizer o que tenho a intenção de
fazer. Vivemos aqui lado a lado com pessoas agonizantes e com o mais grave sofrimento e
martírio, mas essa gente não só se comporta como se nada tivesse que ver com isso, mas também
é protegida e abrigada contra o mínimo contato com essas coisas e contra o seu aspecto. Tenho
certeza de que farão desaparecer o aristocrata austríaco, clandestinamente, enquanto estivermos
almoçando ou tomando o chá da tarde. Acho isso contrário à moral. A Stöhr já ficou furiosa,
quando apenas mencionei o falecimento. Não suporto tamanha estupidez. Que ela não tenha a
mínima cultura e pense que “Leise, leise, fromme Weise” é do Tannhäuser, como afirmou há poucos
dias à mesa, vá lá; mas, com tudo isso, poderia ter sentimentos um pouco mais morais, e os
outros também. Por isso me propus ocupar-me no futuro dos enfermos graves e dos moribundos
da casa. Isso me fará bem. Essa visita que acabamos de fazer também me animou, em certo
sentido. O coitado do Reuter, do número 25, aquele rapaz que eu vi através de uma frincha da
porta, logo nos primeiros dias da minha estadia aqui, provavelmente se encaminhou ad penates, há
muito tempo, e foi escamoteado discretamente. Já naquela ocasião tinha os olhos exageradamente
dilatados. Mas restam muitos outros; a casa está cheia, e nunca faltam entradas novas. A Irmã
Berta ou a Superiora, ou talvez o próprio Behrens nos ajudarão certamente a entrar em relações
com algumas dessas pessoas. Isso não pode ser difícil. Supondo que um moribundo esteja
fazendo anos, e a gente fique sabendo da data... São coisas que se podem descobrir. Pois bem,
enviaremos ao quarto desse homem, ou dessa senhora – a ele ou a ela, segundo o caso –, um vaso
com flores, como atenção de dois companheiros anônimos, com os nossos melhores votos para
o seu restabelecimento – a palavra “restabelecimento”, por pura cortesia, nunca deixa de ser
adequada. Naturalmente acabarão por revelar os nossos nomes às referidas pessoas, e ele ou ela,
no seu estado de fraqueza, manda-nos, através da porta, uns cumprimentos amáveis, e talvez nos
convide para entrarmos um instante no seu quarto. Então trocaremos algumas palavras humanas
com essa pessoa, antes de ela se desagregar. É assim que eu imagino a coisa. Você está de acordo?
Quanto a mim, estou resolvido.
continua pág 193...
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Leia também:
Capítulo II
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Da pia batismal e dos dois aspectos do avô
Capítulo III
Capítulo IV
Dança macabra (a)
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A Montanha Mágica (Der Zauberberg, no original alemão) é um romance de Thomas Mann que foi publicado em 1924. É considerado o romance mais importante de seu autor e um clássico da literatura de língua alemã do século XX que foi traduzido para inúmeros idiomas, sendo de domínio público em países como Estados Unidos, Espanha, Brasil, entre outros.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Thomas Mann começou a escrever o romance em 1912, após uma visita à sua esposa no Wald Sanatorium em Davos, onde ela foi hospitalizada. Ele inicialmente o concebeu como um romance curto, mas o projeto cresceu ao longo do tempo para se tornar um trabalho muito maior. A obra narra a permanência de seu personagem principal, o jovem Hans Castorp, em um sanatório nos Alpes suíços, onde inicialmente vinha apenas como visitante. A obra tem sido descrita como um romance filosófico, pois, embora se enquadre no molde genérico do Bildungsroman ou romance de aprendizagem, introduz reflexões sobre os mais variados temas, tanto pelo narrador quanto pelos personagens (especialmente Nafta e Settembrini, aqueles encarregados da educação do protagonista). Entre esses temas, o do "tempo" ocupa um lugar preponderante, a ponto de o próprio autor o descrever como um "romance do tempo" (Zeitroman), mas muitas páginas também são dedicadas a discutir a doença, a morte, a estética ou a política.
O romance tem sido visto como um vasto afresco do modo de vida decadente da burguesia europeia nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
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