sexta-feira, 13 de junho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (1a.Parte - Bloch enrubesceu)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Primeira Parte

continuando...

     Bloch enrubesceu; o Sr. de Argencourt sorriu, olhando a seu redor, e se esse sorriso, enquanto dirigia aos demais convivas, foi maldoso para Bloch, ele o temperou de cordialidade detendo-o finalmente sobre o meu amigo, a fim de lhe tirar o pretexto para se aborrecer com as palavras que os outros acabavam de ouvir e que nem por isso eram menos cruéis. A Sra. de Guermantes disse ao ouvido do Sr. de Argencourt algo que não ouvi, mas que deveria se relacionar com a religião de Bloch, pois nesse momento passou pelo rosto da duquesa essa expressão a que o medo de ser observado pela pessoa de quem se fala confere algo de hesitante e falso, e na qual se mistura a alegria curiosa e malévola que inspira um agrupamento humano, ao qual nos sentimos radicalmente estranhos. Para se desforrar, Bloch voltou-se para o duque de Châtellerault: 

- O senhor, cavalheiro, visto que é francês, certamente sabe que no estrangeiro são dreyfusistas, embora na França se finja nunca saber o que se passa no exterior. Além do mais, sei que se pode conversar com o senhor, Saint-Loup me afirmou.

     Porém o jovem duque, que percebia que todos se colocavam contra Bloch e que era covarde como se é muitas vezes na sociedade, empregando, de resto, um espírito afetado e mordaz que, por atavismo, parecia herdar do Sr. de Charlus: 

- Desculpe-me, senhor, não discutir contigo o Caso Dreyfus, mas trata-se de um assunto que tenho por norma discutir apenas entre jaféticos.

     Todos sorriram, menos Bloch, não que não tivesse o costume de dizer frases irônicas acerca de suas origens judaicas, sobre o seu lado que se prendia um pouco ao Sinai. Mas em vez de uma dessas frases, as quais sem dúvida não estavam prontas, o gatilho da máquina interior fez disparar uma outra na boca de Bloch. E só se pôde recolher isto: 

- Mas como foi que o senhor pôde saber? Quem lhe contou? como se ele fosse filho de um condenado a trabalhos forçados. Por outro lado, tendo em vista o seu nome, que não passa precisamente por ser cristão, e seu rosto, o seu espanto demonstrava uma certa ingenuidade.

     Não ficando totalmente satisfeito com o que lhe dissera o Sr. de Norpois, Bloch se aproximou do arquivista e lhe perguntou se não se via às vezes, na casa da Sra. de Villeparisis, o Sr. Du Paty de Clam ou o Sr. Joseph Reinach. O arquivista não respondeu; era nacionalista e não deixava de pregar à marquesa que em breve haveria uma guerra social, e que ela deveria ser mais prudente na escolha de suas relações. Perguntava a si mesmo se Bloch não seria um emissário secreto do Sindicato, que tivesse vindo para obter informações dele, e foi imediatamente repetir à Sra. de Villeparisis as perguntas que Bloch acabara de lhe fazer. Ela achou que Bloch era pelo menos mal-educado, talvez perigoso para a situação do Sr. de Norpois. Por fim, quis dar uma satisfação ao arquivista, a única pessoa que lhe inspirava algum temor, e por quem era doutrinada sem muito sucesso. (Todas as manhãs ele lia para ela o artigo do Sr. Judet no Le Petit Journal.) Logo, quis indicar a Bloch que ele não deveria voltar e achou naturalmente, em seu repertório mundano, a cena pela qual uma grande dama põe alguém porta afora, cena que não comporta de maneira nenhuma o dedo em riste e os olhos flamejantes que as pessoas imaginam. Como Bloch se aproximasse dela para se despedir, afundada em sua grande poltrona, a marquesa pareceu meio imersa em vaga sonolência. Seus olhos afogados só apresentavam o clarão débil e encantador de uma pérola. As despedidas de Bloch, mal abrindo no rosto da marquesa um sorriso de langor, não lhe arrancaram uma palavra sequer, e ela não lhe estendeu a mão. Tal cena levou Bloch ao auge do espanto, mas, como um grupo de pessoas a estava testemunhando, julgou que não poderia prolongar-se sem inconveniente para ele, e, para forçar a marquesa, estendeu espontaneamente a mão que não lhe apertavam. A Sra. de Villeparisis ficou chocada. Mas sem dúvida, tendo que dar uma satisfação imediata ao arquivista e ao clã antidreyfusista, queria também resguardar o futuro, e contentou-se em abaixar as pálpebras e entrecerrar os olhos.

- Creio que ela dorme - disse Bloch ao arquivista, o qual, sentindo-se apoiado pela marquesa, assumiu um ar de indignação. 
- Adeus, senhora - exclamou ele. 

     A marquesa fez um leve movimento de lábios de criatura agonizante que desejaria abrir a boca, mas cujo olhar já não reconhece ninguém. Depois se voltou, transbordante de vida reencontrada, para o marquês de Argencourt, enquanto Bloch se afastava, persuadido de que ela estava de "miolo mole". Cheio de curiosidade e desejoso de esclarecer um incidente tão estranho, ele retornou para vê-la alguns dias depois. Ela o recebeu muito bem, pois era uma mulher bondosa, porque o arquivista não se achava presente, porque fazia questão do sainete que Bloch deveria representar em sua casa, e, por fim, porque desempenhara o papel de grande dama que desejava fazer, o qual foi universalmente admirado e comentado naquela mesma noite nos diversos salões, mas segundo uma versão que já não tinha qualquer relação com a verdade. 

- A senhora falava das Sete Princesas, duquesa; sabe que o autor desse... como direi, desse memorial, é um de meus compatriotas (e nem por isso me sinto mais orgulhoso) - disse o Sr. de Argencourt, com uma ironia mesclada pela satisfação de conhecer melhor que os outros o autor de uma obra da qual se acabava de falar. - Sim, ele é de nacionalidade belga - acrescentou. 
- Verdade? Não, não o estamos acusando de qualquer conivência em As Sete Princesas. Felizmente para o senhor e seus compatriotas, o senhor não se parece em nada com o autor de semelhante inépcia. Conheço belgas muito gentis, o senhor, o seu rei, que é um pouco tímido mas cheio de verve, meus primos Ligne e muitos outros, mas felizmente o senhor não fala a mesma linguagem do autor das Sete Princesas. Aliás, se quer que lhe diga, já é demais falar nisso, pois não vale coisa nenhuma. Trata-se de pessoas que procuram parecer obscuras e até ridículas conseguem ficar, para ocultar o fato de não terem ideias. Se existisse algo em tudo isso, eu lhe diria não temer certas audácias - acrescentou ela em tom sério desde que houvesse pensamento. Não sei se o senhor viu a peça de Borrelli. Pessoas houve que se sentiram chocadas; quanto a mim, mesmo que me apedrejassem - acrescentou, sem se dar conta de que não corria muitos riscos -, confesso que a achei infinitamente curiosa. Mas As Sete Princesas! Por mais que uma delas seja boazinha para o meu sobrinho, não posso levar os sentimentos de família...

     A duquesa parou de repente, pois entrava uma dama que era a viscondessa de Marsantes, a mãe de Robert. A Sra. de Marsantes era considerada, no faubourg Saint-Germain, como um ser superior, de uma bondade e de uma resignação angélicas. Era o que me haviam dito e eu não tinha nenhum motivo especial para surpreender-me de tal fato, não sabendo, naquele momento, que ela era a própria irmã do duque de Guermantes. Mais tarde, sempre me espantava a cada vez que tomava conhecimento, naquela sociedade, de que mulheres melancólicas, puras, sacrificadas, veneradas como ideais santas de vitral, tinham florescido no mesmo tronco genealógico dos irmãos brutais, depravados e vis. Irmãos e irmãs, quando são muito parecidos de rosto, como o eram o duque de Guermantes e a Sra. de Marsantes, pareciam-me dever ter em comum uma única inteligência, um mesmo coração, como no caso de uma pessoa que pode ter bons e maus momentos, mas de quem, afinal, não se pode esperar grande discernimento se tem espírito limitado, e uma abnegação sublime se é de coração duro.
     A Sra. de Marsantes seguia as aulas de Brunetiere. Entusiasmava o faubourg Saint Germain e, por sua vida de santa, também o edificava. Porém a conexão morfológica do belo nariz e do olhar penetrante levava-me, entretanto, a classificar a Sra. de Marsantes na mesma família intelectual e moral de seu irmão, o duque. Eu não podia crer que só pelo fato de ser mulher e, talvez, por ter sido infeliz e desfrutar da opinião de todos a seu favor, ela pudesse ser tão diferente dos seus, como nas canções de gesta, onde todas as virtudes e as graças estão reunidas na irmã de irmãos ferozes. Parecia-me que a natureza, menos livre que os antigos poetas, devia se servir quase que exclusivamente dos elementos comuns à família, e não podia atribuir-lhe tal poder de inovação que fizesse, com os materiais análogos aos que compõem um tolo e um rústico, um grande espírito sem qualquer tara de imbecilidade, uma santa sem mancha nenhuma de brutalidade. A Sra. de Marsantes trajava um vestido de surah branco, de grandes palmas, sobre as quais se destacavam flores negras de pano. É que ela perdera, havia três semanas, seu primo, o Sr. de Montmorency, o que no entanto não a impedia de fazer visitas, de comparecer a jantares íntimos, mas de luto. Era uma grande dama. Por atavismo, sua alma estava repleta da frivolidade das existências da corte, com tudo o que elas têm de superficial e rigoroso. A Sra. de Marsantes não tivera forças para lastimar por muito tempo seu pai e sua mãe, mas por nada no mundo teria usado trajes coloridos antes do mês seguinte à morte do primo. Foi mais do que gentil comigo, pois eu era o amigo de Robert, e porque não pertencia ao mesmo mundo dele. Esta bondade era acompanhada de uma timidez fingida, dessa espécie de intermitente movimento de perda da voz, do olhar, do pensamento que é recolhido como uma sala indiscreta, para não ocupar muito espaço, para ficar bem aprumada, mesmo na flexibilidade, como exige a boa educação. Boa educação que, aliás, não é preciso tomar ao pé da letra, pois várias dessas damas recaem depressa na sem-vergonhice dos costumes sem jamais perder a correção quase infantil de maneiras. A Sra. de Marsantes irritava um pouco ao conversar, porque, de cada vez que se tratava de um plebeu, por exemplo Bergotte ou Elstir, ela dizia, destacando a palavra, valorizando e salmodiando-a em dois tons diferentes, numa modulação que era particular aos Guermantes: 

- Tive a honra, a grande honra de encontrar o Senhor Bergotte, de conhecer o Senhor Elstir -, seja para fazer admirada a sua humildade, seja pelo mesmo gosto do Sr. de Guermantes de regressar às formas em desuso, para protestar contra os costumes da má educação de hoje, quando já não se diz bastantes vezes "honrado". Fosse qual fosse o verdadeiro desses dois motivos, de qualquer modo sentia-se que, quando a Sra. de Marsantes dizia: 

"Tive a honra, a grande hon-ra", ela julgava preencher um grande papel e mostrar que sabia acolher os nomes dos homens de valor como os teria recebido a eles próprios em seu castelo, se eles se encontrassem nas vizinhanças. De outra parte, como sua família era numerosa, e ela a apreciasse muito, e, de palavra lenta e amiga de explicações, quisesse fazer compreender os parentescos, ocorria-lhe (sem nenhum desejo de espantar e sinceramente gostando apenas de falar de camponeses comoventes e sublimes guardas florestais) citar a todo instante todas as famílias da alta aristocracia da Europa, o que as pessoas menos brilhantes não lhe perdoavam e, se eram um tanto intelectuais, troçavam como se se tratasse de uma estupidez.

     No campo, a Sra. de Marsantes era adorada pelo bem que fazia, mas principalmente porque a pureza de um sangue, onde, há várias gerações, só se encontrava o que há de mais grandioso na história da França, retirara à sua maneira de ser tudo aquilo que as pessoas do povo chamam de "maneiras", e lhe concedera a simplicidade perfeita. Ela não temia abraçar uma pobre mulher infeliz, e lhe dizer que fosse buscar uma carrada de lenha no castelo. Era, diziam, a perfeita cristã. Fazia questão de obter um casamento formidavelmente rico para Robert. Ser grande dama é posar de grande dama, ou seja, por um lado, representar simplicidade. É um jogo que custa muito caro, tanto mais que a simplicidade só deslumbra com a condição de que os outros saibam que a pessoa possa não ser simples, isto é, que seja muitíssimo rica. Disseram-me depois, quando contei que a tinha visto: 

- Deve ter percebido que ela foi deslumbrante. -

     Porém, a verdadeira beleza é tão particular, tão nova, que não é reconhecida como tal. Naquele dia, disse apenas, de mim para mim, que ela possuía um nariz bem pequeno, olhos muito azuis, pescoço comprido e ar triste. 

- Escuta - disse a Sra. de Villeparisis à duquesa de Guermantes -, creio que daqui a pouco terei a visita de uma mulher que não desejas conhecer; prefiro que estejas prevenida para que isso não te aborreça. Além do mais, podes ficar tranquila, nunca a terei de novo em casa futuramente, mas ela deve vir hoje pela única vez. É a mulher de Swann.

     A Sra. Swann, vendo as proporções que assumia o Caso Dreyfus, e temendo que as origens de seu marido se voltassem contra ela, rogara-lhe que nunca mais falasse na inocência do condenado. Quando ele não estava presente, ia mais longe e fazia profissão do mais ardente nacionalismo; aliás, nisso só fazia seguir a Sra. Verdurin, em cuja casa despertara e atingira uma verdadeira exasperação, um antissemitismo burguês e latente. A Sra. Swann obtivera, com essa atitude, a entrada em algumas das ligas de senhoras da sociedade antissemitas, que principiavam a se formar, e travara relações com diversas pessoas da aristocracia. Pode parecer estranho que, longe de imitá-las, a duquesa de Guermantes, tão amiga de Swann, ao contrário, sempre resistisse ao desejo, que ele não lhe ocultara, de lhe apresentar sua esposa.
     No entanto, veremos mais tarde que isso era um efeito do caráter especial da duquesa, que julgava não ter de fazer essa ou aquela coisa, e impunha, com despotismo, o que havia decidido o seu "livre-arbítrio" mundano, extremamente arbitrário. 

- Agradeço que tenha-me prevenido - respondeu a duquesa. - De fato, isto me seria muito desagradável. Mas, como a conheço de vista, levantar-me-ei a tempo. 
- Asseguro-te, Oriane, que ela é muito agradável, é uma mulher excelente - disse a Sra. de Marsantes. 
- Não duvido, mas não tenho necessidade alguma de certificar-me por mim mesma. 
- Foste convidada à casa de Lady Israels? - perguntou a Sra. de Villeparisis à duquesa, para mudar de assunto. 
- Graças a Deus não a conheço - respondeu a Sra. de Guermantes. É à Marie-Aynard que é preciso fazer tal pergunta. Ela a conhece, e eu sempre me pergunto por quê. 
- De fato, conheci-a - respondeu a Sra. de Marsantes -, confesso os meus erros. Mas estou resolvida a não mais ter relações com ela. Parece que é das piores e não o esconde. Aliás, todos nós fomos muito confiantes, muito hospitaleiros. Não frequentarei mais ninguém dessa raça. Enquanto tínhamos velhos primos de província, a quem fechávamos a porta, nós a abríamos para os judeus. Agora vemos a sua gratidão. Ai de mim, nada tenho a dizer, tenho um filho adorável e que declama, jovem doido que é, todas as insanidades possíveis - acrescentou, percebendo que o Sr. de Argencourt fizera alusão a Robert. - Mas, a propósito de Robert, por acaso a senhora não o viu? - perguntou ela à Sra. de Villeparisis -; como hoje é sábado, eu achava que ele poderia passar vinte e quatro horas em Paris e, nesse caso, certamente viria visitar-nos. 
- Robert aqui! Mas eu nem sequer recebi uma palavra dele; creio que não o vejo desde Balbec. 
- Está tão ocupado, tem tantas coisas para fazer - disse a Sra. de Marsantes.

     Um imperceptível sorriso fez ondular os cílios da Sra. de Guermantes, que contemplava o círculo que, com a ponta da sombrinha, ia traçando no tapete. A cada vez que o duque deixava por demais abertamente a esposa, a Sra. de Marsantes tomava, contra o próprio irmão, as dores da cunhada. Esta guardava de semelhante proteção uma lembrança reconhecida e rancorosa, e não se aborrecia muito com as estroinices de Robert. Nesse momento, a porta se abriu de novo e o próprio Robert entrou. 

- Ora vejam, quando se fala de Saint-Loup - disse a Sra. de Guermantes.

     A Sra. de Marsantes, que estava de costas para a porta, não vira o filho entrar. Quando o viu, a alegria, nessa mãe, bateu verdadeiramente como se tivesse asas; o corpo da Sra. de Marsantes se ergueu a meio, seu rosto palpitou e ela fitou Robert com um olhar maravilhado: 

- Como, então vieste?! Que felicidade! Que surpresa! 
- Ah, quando se fala de Saint-Loup! Compreendo - disse o diplomata belga, rindo às gargalhadas. 
- É delicioso - replicou secamente a Sra. de Guermantes, que detestava os trocadilhos e só arriscara aquele dando a impressão de zombar de si mesma. - Boa-noite, Robert disse ela -; ora, ora, assim é que se esquece da sua tia.

     Conversaram por um instante e sem dúvida a meu respeito, pois, enquanto Saint-Loup se aproximava da mãe, a Sra. de Guermantes voltou-se para mim. 

- Boa-noite, como vai? - disse ela.

     Deixou chover sobre mim a luz do seu olhar azul, hesitou por um instante, desdobrou e estendeu a haste de seu braço, inclinou para diante o corpo, que se endireitou rapidamente para trás, como um arbusto que foi vergado e que, deixado livre, retorna à posição natural. Assim agia sob o fogo dos olhares de Saint-Loup, que a observava e fazia esforços desesperados para obter ainda um pouco mais de sua tia. Receando que a conversa caísse no vazio, veio alimentá-la e respondeu por mim: 

- Não passa muito bem, está um tanto cansado; além disso, ele se sentiria melhor se te visse mais vezes, pois não te escondo que gosta muito de te ver. 
- Ah, mas ele é muito amável - disse a Sra. de Guermantes com um ar deliberadamente banal, como se eu lhe tivesse entregado a sua capa. - Fico muito lisonjeada. 
- Olha, vou ficar um pouco junto de minha mãe, fica na minha cadeira - disse-me Saint Loup, forçando-me assim a sentar ao lado da tia. Nós dois nos calamos. 
- Vejo-o às vezes de manhã - disse ela, como se fosse uma notícia que me desse e como se eu não a visse. 
- Isso faz muito bem à saúde. - Oriane disse a meia voz a Sra. de Marsantes -, você dizia que ia ver a Sra. de Saint-Ferréol; será que poderia ter a gentileza de lhe dizer que não me espere para jantar? Ficarei em casa porque estou com Robert. Se não fosse abuso, pediria também a você que dissesse, ao passar em casa, que mandem logo comprar os charutos que Robert aprecia, chamados "Corona". Ele já não tem mais.

     Robert se aproximou; apenas ouvira pronunciar o nome da Sra. de Saint-Ferréol.

- Quem é essa tal de Sra. de Saint-Ferréol? - perguntou em tom de espanto e decisão, pois afetava ignorar tudo o que dissesse respeito à sociedade. 
- Ora, meu querido, sabes muito bem disse sua mãe -; é a irmã de Vermandois; foi ela quem te deu aquele belo jogo de bilhar de que tanto gostavas. 
- Como, é a irmã de Vermandois?! Não fazia a menor ideia. Ah, a minha família é espantosa - disse ele, voltando-se a meio para mim e assumindo, sem o perceber, a entonação de Bloch, assim como tomava de empréstimo as suas ideias. - Conhece pessoas incríveis, pessoas que se chamam mais ou menos Saint-Ferréol (destacando a última consoante de cada palavra), ela vai a um baile, passeia numa vitória, leva uma existência fabulosa. É prodigioso. 

     A Sra. de Guermantes fez com a garganta esse leve ruído, breve e intenso, como o de um sorriso forçado que se corta de imediato, e que se destinava a mostrar que ela participava, na medida em que o parentesco a obrigava, do espírito do sobrinho. Vieram anunciar que o príncipe de Faffenheim-Munsterburg-Weiningen mandava dizer ao Sr. de Norpois que acabava de chegar. 

- Vá procurá-lo, senhor - disse a Sra. de Villeparisis ao antigo embaixador, que foi ao encontro do primeiro-ministro alemão.

     Mas a marquesa o chamou de novo. 

- Espere, senhor; é preciso que eu lhe mostre a miniatura da imperatriz Carlota? 
- Ah, creio que ele ficaria encantado - disse o embaixador num tom convicto e como se invejasse o ministro venturoso pelo favor que o esperava. 
- Ah, sei que ele é muito bem pensante - observou a Sra. de Marsantes -; e isso é tão raro entre os estrangeiros. Mas estou informada. É o anti-semitismo em pessoa.

     O nome do príncipe conservava, na franqueza com que suas primeiras sílabas eram como se diz em música atacadas, e na balbuciante repetição com que as escondia, o impulso, a ingenuidade amaneirada, as pesadas "delicadezas" germânicas, projetadas como ramagens esverdeadas sobre o "Heim" de esmalte azul-escuro, que desdobrava o misticismo de um vitral renano por detrás dos ouros pálidos e finamente burilados do século XVIII alemão. Esse nome continha, por entre os diversos nomes de que se formava, o de uma pequena estação de águas alemã, onde, bem pequenino, eu estivera com minha avó, ao sopé de uma montanha honrada pelos passeios de Goethe, e de cujos vinhedos bebíamos no Kurhof a ilustre produção, de nome composto e retumbante como os epítetos que Homero confere a seus heróis. Assim, mal ouvi pronunciar o nome do príncipe, quando, antes de me lembrar das águas termais, pareceu-me que diminuía, que se impregnava de humanidade, que encontrava um lugar suficiente em minha memória, à qual aderiu, familiar, terra-a-terra, pitoresco, saboroso, leve, com algo de autorizado, de prescrito. Bem mais; o Sr. de Guermantes, explicando quem era o príncipe, citou diversas vezes os seus títulos, e reconheci o nome de uma aldeia atravessada pelo rio onde, todas as tardes, terminado o tratamento, eu ia de barca em meio aos mosquitos; e o de uma floresta bastante afastada para que o médico me permitisse alcançá-la a passeio. E, de fato, era compreensível que a suserania do senhor se estendesse aos lugares circunvizinhos e associasse de novo, na enumeração de seus títulos, os nomes que se podem ler, uns ao lado dos outros, num cartão de visitas. Assim, sob a viseira do príncipe do Sacro-lmpério e do escudeiro da Francônia, o que vi foi a fisionomia de uma terra querida onde haviam se detido para mim, com frequência, os raios do sol das seis horas, pelo menos antes que entrasse o príncipe, governador do Reno e eleitor palatino. Pois, em poucos instantes, fiquei sabendo que os rendimentos que ele obtinha da floresta e do rio povoados de gnomos e ondinas, onde se ergue o velho castelo que mantém a lembrança de Lutero e de Luís o Germânico, ele os empregava para possuir cinco automóveis Charron, um palacete em Paris e outro em Londres, um camarote às segundas-feiras na ópera, e outro às "terças" nos "Franceses". Não me parecia, e ele próprio não dava a impressão de acreditar nisso, um homem diferente dos outros de igual fortuna e da mesma idade que tinham uma origem menos poética. Possuía a sua cultura, o seu ideal, alegrava-se da sua linhagem, mas apenas devido às vantagens que esta lhe conferia, e só demonstrava uma ambição na vida a de ser eleito membro correspondente da Academia de Ciências Morais e Políticas, razão pela qual tinha vindo à casa da Sra. de Villeparisis. Se ele, cuja esposa liderava um dos círculos mais fechados de Berlim, solicitara ser apresentado em casa da marquesa, não era porque anteriormente desejara tal coisa. Roído há muitos anos por essa ambição de entrar para o Instituto, infelizmente nunca pudera contar com mais de cinco acadêmicos que parecessem dispostos a votar nele. Sabia que o Sr. de Norpois dispunha, por si só, de pelo menos uma dezena de votos, aos quais seria capaz de acrescentar alguns outros, graças a transações hábeis. Assim, o príncipe, que o havia conhecido na Rússia, quando ambos eram embaixadores, fora vê lo e fizera de tudo para conseguir o seu apoio. Porém, por mais que multiplicasse as gentilezas e conseguisse condecorações russas para o marquês, e o citasse em artigos sobre política estrangeira, tinha diante de si um ingrato, um homem para quem todas essas delicadezas pareciam não contar, que não fizera sua candidatura avançar um passo e nem sequer lhe prometera seu voto! É claro que o Sr. de Norpois o recebia com extrema polidez, e nem queria que ele se incomodasse e "tivesse o trabalho de vir até a sua porta", e ia ele próprio ao palacete do príncipe e, quando o cavalheiro teutônico dizia:

"Bem que eu gostaria de ser seu colega", respondia num tom esperançoso: "Eu ficaria muito feliz!" E sem dúvida um ingênuo, um doutor Cottard, diria consigo: "Ora, aí está ele na minha casa, foi ele quem se deu o trabalho de vir, porque me considera uma pessoa mais importante que ele, disse que ficaria feliz se eu pertencesse à Academia, as palavras ainda assim têm um sentido, que diabo! Sem dúvida, se ele não se propõe a votar em mim, é que não pensa nisso. Ele fala muito do meu grande poder, com certeza julga que as cotovias já me caem assadas do céu, que disponho de tantos votos quantos queira, e é por isso que não me oferece o seu, mas basta-me colocá-lo entre a espada e a parede, cá entre nós, e lhe dizer: 'Muito bem! Vote em mim' e ele será obrigado a fazê-lo."

     Mas o príncipe de Faffenheim não era um ingênuo; era o que o doutor Cottard teria chamado "um fino diplomata", e sabia que o Sr. de Norpois não era menos fino, nem um homem que não descobrisse por si mesmo que poderia ser agradável a um candidato votando nele. O príncipe, em suas embaixadas e como ministro das Relações Exteriores, mantivera, por seu país, em vez de agora para proveito próprio, dessas conversações em que se sabe, por antecipação, até onde se deseja ir e o que não nos farão dizer. Não ignorava que, na linguagem diplomática, conversar significa oferecer. E para tanto é que obtivera para o Sr. de Norpois a insígnia de Santo André. Mas se comunicasse a seu governo a entrevista que tivera depois disso com o Sr. de Norpois, teria podido enunciar em seu despacho: "Compreendi que tomara pelo caminho errado." Pois, desde o momento em que voltara a pronunciar a palavra Instituto, o Sr. de Norpois lhe repetira: 

- Eu gostaria muito disso, por meus colegas. Creio que eles devem se sentir verdadeiramente honrados pelo fato de o senhor ter pensado neles. É uma candidatura bem interessante, um pouco fora de nossos hábitos. O senhor sabe, a Academia é muito rotineira, ela se apavora com tudo o que lhe saiba a novidade. Pessoalmente, censuro-a por isto. Quantas vezes aconteceu-me dá-lo a entender aos meus colegas. Nem sei mesmo, Deus me perdoe, se alguma vez a palavra "rançosos" não me saiu da boca - acrescentou com um sorriso escandalizado, a meia voz, quase à parte, como num efeito teatral e lançando ao príncipe uma olhadela rápida e oblíqua de seu olho azul, como um velho ator que deseja apreciar o seu efeito. - Príncipe, o senhor compreende que não gostaria de deixar que uma personalidade tão eminente como a sua se metesse numa jogada de antemão perdida. Enquanto as idéias de meus colegas permanecerem tão atrasadas, creio que seria sábio se se abstivesse. Aliás, queira acreditar que, se algum dia visse um espírito um pouco mais novo, um pouco mais vivo, desenhar-se nesse colégio que tende a se tornar uma necrópole, se vislumbrasse uma oportunidade possível para o senhor, seria o primeiro a avisá-lo. 

"A insígnia de Santo André é um erro", pensou o príncipe; "as negociações não adiantaram um passo; não era isto o que ele queria. Não peguei a chave adequada."  

continua na página 115...
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Volume 2
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