sexta-feira, 18 de julho de 2025

Émile Zola - Germinal: Primeira Parte - (II) No meio dos campos de trigo e beterraba

Germinal

Émile Zola

Tradução de Francisco Bittencourt

Primeira Parte

II

     No meio dos campos de trigo e beterraba, o conjunto habitacional dos Deux-Cent-Quarante dormia sob a noite negra. Distinguiam-se vagamente os quatro imensos corpos de pequenas casas encostadas umas às outras, corpos de caserna ou de hospital, geométricos, paralelos, que separavam as três largas avenidas divididas em jardins iguais. E, no planalto deserto, ouvia-se apenas a queixa do vento por entre as sebes arrancadas.
     Em casa dos Maheu, no número dezesseis do segundo grupo de casas, tudo era sossego. O único quarto do primeiro andar estava imerso nas trevas, como se estas quisessem esmagar com seu peso o sono das pessoas que se pressentiam lá, amontoadas, boca aberta, mortas de cansaço. Apesar do frio mordente do exterior, o ar pesado desse quarto tinha um calor vivo, esse calor rançoso dos dormitórios, que, mesmo asseados, cheiram a gado humano.
     O cuco da sala do térreo deu quatro horas, mas ninguém se moveu. As respirações fracas continuaram a soprar, acompanhadas de dois roncos sonoros. Bruscamente, Catherine levantou-se. No seu cansaço, tinha ela, pela força do hábito, contado as quatro badaladas que atravessaram o soalho, mas continuara sem o ânimo necessário para acordar de todo. Depois, com as pernas para fora das cobertas, apalpou, riscou um fósforo e acendeu a vela. Mas continuou sentada, a cabeça tão pesada que tombava nos ombros, cedendo ao desejo invencível de voltar ao travesseiro.
     Agora, a vela iluminava o quarto, quadrado, com duas janelas, atravancado com três camas. Havia um armário, uma mesa e duas cadeiras de nogueira velha, cujo tom escuro manchava duramente as paredes pintadas de amarelo-claro. E nada mais, a não ser roupa de uso diário pendurada em pregos, uma moringa no chão ao lado de um tacho vermelho que servia de bacia. Na cama da esquerda, Zacharie, o mais velho, um rapaz de vinte e um anos, estava deitado com o irmão, Jeanlin, com quase doze anos; na da direita, dois pequenos, Lénore e Henri, a primeira de seis anos, o segundo de quatro, dormiam abraçados; Catherine partilhava a terceira cama com a irmã Alzire, tão fraca para os seus nove anos, que ela nem a sentiria ao seu lado, não fosse a corcunda que deformava as costas da pequena enferma. A porta envidraçada estava aberta, podiam-se ver o corredor do patamar e o cubículo onde pai e mãe ocupavam uma quarta cama, contra a qual tiveram de instalar o berço da recém-nascida, Estelle, de apenas três meses.
     Entretanto, Catherine fez um esforço desesperado. Espreguiçava-se, crispava as mãos nos cabelos ruivos que se emaranhavam na testa e na nuca. Franzina para os seus quinze anos, não mostrava dos membros senão uns pés azulados, como tatuados com carvão, que saíam da bainha da camisola estreita, e braços delicados, alvos como leite, contrastando com a cor pálida do rosto, já estragado pelas contínuas lavagens com sabão preto. Um último bocejo abriu-lhe a boca um pouco grande, com dentes magníficos incrustados na palidez clorótica das gengivas, enquanto seus olhos cinzentos choravam de tanto combater o sono. Era uma expressão dolorosa e abatida que parecia encher de cansaço toda a sua nudez.
     Mas um grunhido veio do patamar; era a voz de Maheu que gaguejava, empastada:

 — Raio! Já está na hora... Foste tu que acendeste a luz, Catherine? 
 — Fui, sim, senhor... O relógio acaba de dar horas. 
 — Então apressa-te, vagabunda! Se tivesses dançado menos ontem, domingo, ter-nos-ias acordado mais cedo. Que vida de malandros!

      Continuou a ralhar, mas foi vencido pelo sono, suas repreensões embaralharam-se, extinguindo-se em novo ressonar.
     A moça, de camisola, descalça, andava no quarto de um lado para outro. Ao passar pela cama de Henri e Lénore, cobriu-os novamente. As crianças não acordaram, mergulhadas no pesado sono da infância. Alzire, de olhos abertos, sem dizer palavra, pusera-se do outro lado, tomando o lugar aquecido pela irmã mais velha.

 — Vamos, Zacharie! Vamos, Jeanlin! Levantem! — repetia Catherine, em pé diante dos dois irmãos, que continuavam refocilados, o nariz enfiado no travesseiro.

      Teve de agarrar o mais velho pelos ombros e sacudi-lo; e, enquanto ele a injuriava com voz pastosa, ela resolveu descobri-los, arrancando o lençol. Isto divertiu-a, e pôs-se a rir, vendo os dois rapazes debater-se, pernas nuas.

 — Idiota! Deixa-me em paz! — grunhiu Zacharie, mal-humorado, ao sentar-se. — Não gosto de brincadeiras... Porcaria! Já tenho que levantar...

     Era magro, desengonçado, rosto comprido, barba rala, louro e com a palidez anêmica de toda a família. A camisola estava enrolada até a altura da barriga; baixou-a, não por pudor, mas por estar com frio.

— Vamos, de pé, o relógio já bateu — repetia Catherine. — Assim o pai se zanga.

     Jeanlin, que se havia enroscado, fechou novamente os olhos, dizendo:

— Não chateies, estou dormindo.

      Ela riu outra vez, um riso de coração aberto. O irmão era tão pequeno, de membros franzinos e articulações enormes, deformadas por escrófulas, que ela o pegou no colo. Mas o rapaz esperneou e sua cara de macaco desbotado e cabeludo, esburacada por dois olhos verdes e alargada pelas orelhas grandes, empalideceu de raiva por ser fraco. Sem dizer palavra, mordeu-a no seio direito.

— Animal malvado! — murmurou ela, contendo um grito e colocando-o no chão.

     Alzire, silenciosa, com o lençol até o queixo, não voltara a dormir; seguia com seus olhos inteligentes de inválida a irmã e os dois irmãos que se vestiam. Outra discussão teve lugar em volta do tacho, e os rapazes começaram a empurrar a moça porque esta levava muito tempo lavando-se. As camisolas voavam, enquanto eles, ainda cheios de sono, urinavam sem vergonha, com a sem-cerimônia tranquila de uma ninhada de cachorros criada junta. Em todo caso, Catherine foi a primeira a ficar pronta; enfiou as calças de mineiro, vestiu a jaqueta de algodão, amarrou a coifa azul em torno do cabelo preso na nuca; nessa roupa limpa de segunda-feira, mais parecia um homenzinho. Do seu sexo ficava apenas o ligeiro meneio dos quadris. 

— Quando o velho voltar — disse maldosamente Zacharie —, ficará contente de encontrar a cama desarrumada... E vou dizer a ele que foste tu.

      O velho era o avô, Boa-Morte, que trabalhava de noite e dormia de dia. Para que a cama não esfriasse, havia sempre nela alguém a roncar.
      Sem responder, Catherine começou a alisar as cobertas, pondo as pontas para baixo do colchão. Há um momento que se ouviam ruídos do outro lado da parede, na casa vizinha. Essas construções de tijolos, feitas o mais economicamente possível pela companhia, tinham paredes tão finas que a respiração mais delicada as atravessava. As pessoas viviam tão chegadas, de um extremo a outro, que nenhuma parcela de vida íntima se conservava oculta, mesmo para as crianças. Um passo mais pesado sacudiu uma escada, depois houve como que uma queda suave, seguida de um suspiro de satisfação.

 — Bem — disse Catherine —, Levaque desce, e lá vai Bouteloup para a cama da mulher dele. Jeanlin deu uma risada de escárnio, os próprios olhos de Alzire brilharam. Toda manhã eles troçavam assim daquele triângulo de vizinhos, um cortador que hospedava um operário do desaterro, o que dava à mulher dois homens, um de noite, outro de dia.
 — Philomène está tossindo — continuou Catherine, após ter apurado o ouvido.

      Falava da filha mais velha dos Levaque, moça alta de dezenove anos, amante de Zacharie, de quem já tinha dois filhos. Era tão fraca do peito que nunca pudera trabalhar no fundo da mina, permanecendo como separadora do carvão.

 — Ora, Philomène! — respondeu Zacharie. — Ela nem se importa com isso; e depois, tem sorte, pode dormir até às seis horas...

     Enquanto vestia as calças, tomado de um pensamento repentino, foi abrir uma janela. Lá fora, nas trevas, o conjunto habitacional acordava; réstias de luz escapavam por entre as frinchas das persianas. E outra contenda teve lugar: o rapaz debruçava-se à janela para espreitar a casa dos Pierron, que ficava em frente, para ver se não sairia de lá o capataz da Voreux, que era acusado de dormir com a mulher de Pierron; enquanto a irmã lhe gritava que o marido desta voltara, desde a véspera, ao seu trabalho diurno na embocadura de uma das galerias com o poço de extração, e que portanto Dansaert não podia ter dormido lá naquela noite. Rajadas glaciais entravam pela janela aberta; os irmãos, exaltados, sustentavam a exatidão de suas próprias informações. Nesse momento, Estelle, de seu berço, incomodada pelo frio, começou a chorar em altos brados.
      Com isso Maheu acordou de vez. Será que já não tinha mais tutano nos ossos, para voltar a dormir assim, como um vagabundo? E começou a praguejar tão alto, que os filhos, ao lado, nem ousavam respirar. Zacharie e Jeanlin acabaram de se lavar com uma lentidão que já era cansaço. Alzire, com os olhos bem abertos, continuava a observar. Os dois pequenos, Lénore e Henri, abraçados, continuavam imóveis, a respiração leve, apesar de toda a gritaria.

 — Catherine, traz a vela! — gritou Maheu.

     Tendo acabado de abotoar a jaqueta, ela levou a vela para a outra peça, deixando os irmãos à procura das roupas, apenas com a escassa claridade que vinha da porta. O pai saltou da cama; ela, porém, não parou; desceu, às apalpadelas, calçando apenas grossas meias de lã, para acender na sala uma outra vela e preparar o café. Todos os tamancos da família estavam debaixo do armário.

 — Cala, porcaria! — gritou Maheu, exasperado com o choro contínuo de Estelle.

     Era baixo como o velho Boa-Morte e parecia-se com ele, só que mais gordo, cabeça grande, rosto chato e lívido sob o cabelo louro, cortado bem curto. A criança berrava cada vez mais, assustada com aqueles grandes braços nodosos que gesticulavam por cima dela.

 — Deixa, tu sabes bem que ela não quer calar-se — disse a mulher, estendendo-se no meio da cama.

     Também ela acabava de acordar e lamentava-se. Era estúpido, nunca dormia uma noite completa. Por que eles não saíam em silêncio? Enfiada entre as cobertas, só se lhe via o rosto comprido, de traços graúdos, de uma beleza pesada, já disforme aos trinta e nove anos por uma vida de miséria e os sete filhos que tivera. Olhos no teto, começou a falar lentamente, enquanto seu homem se vestia.

 — Sabe? Estou sem vintém, e hoje é apenas segunda-feira... Seis dias ainda para a quinzena... O dinheiro não dura nada. Todos vocês juntos trazem nove francos. Somos dez na casa, como é que vai dar?
 — Nove francos? — protestou Maheu. — Eu e Zacharie, cada um três, são seis; Catherine e o pai, dois, são quatro; quatro e seis, dez... E Jeanlin, um, que faz onze.
 — Sim, onze, mas há os domingos e feriados. Nunca mais de nove, compreende?

     Ele não respondeu, procurava no chão o cinto de couro. Levantando-se, disse:

 — Não devemos queixar-nos, ainda tenho saúde. Aos quarenta e dois anos muita gente já não presta para mais nada. 
 — É possível, meu velho, mas nem por isso temos mais pão. O que é que vou fazer? Não tens nada, mesmo? 
 — Tenho dois soldos [1]. 
 — Pois podes tomar uma cerveja com eles... Meu Deus! O que é que vou fazer? Esses seis dias não vão terminar nunca! Devemos sessenta francos a Maigrat; anteontem ele me pôs na rua, mas isso não me impede de voltar lá. O caso é se ele continuar recusando...

     E a mulher de Maheu continuou a lamentar-se, cabeça imóvel, fechando os olhos de vez em quando, à triste claridade da vela. Falou do guarda-comida vazio, das crianças que pediam pão, do café que faltava, da água que dava cólica e dos longos dias passados a enganar a fome com folhas de couve cozidas. Pouco a pouco foi elevando a voz, já que o berreiro de Estelle cobria suas palavras; seus gritos estavam ficando insuportáveis. De repente, Maheu pareceu ouvi-los e, fora de si, agarrou a criança no berço e atirou-a para junto da mãe, gaguejando de ódio:

 — Toma! Pega-a, sou capaz de esmagá-la... Maldita criança... Não lhe falta nada, mama à vontade e queixa-se mais alto que os outros...

     Realmente, Estelle pusera-se a mamar. Sumida debaixo das cobertas, sossegada pela tepidez da cama, agora só fazia um ruído guloso com os lábios.

 — Os burgueses da Piolaine não disseram que fosses vê-los? — tornou o pai depois de uma pausa.

     A mãe franziu a boca numa expressão de dúvida e desânimo.

 — Sim, encontraram-me, andam distribuindo roupas às crianças pobres. Enfim, vou até lá esta manhã com Lénore e Henri. Se pelo menos eles me dessem uns cem soldos...

     Novo silêncio, Maheu estava pronto; ficou imóvel um momento para, em seguida, encerrar a conversa com sua voz profunda:

 — Que queres? Não há outro jeito, arranja a sopa como puderes. Melhor é ir trabalhar do que ficar aqui conversando. 
 — Claro — respondeu a mulher. — Apaga a vela, não quero ver a cor dos meus pensamentos. 

     O homem apagou a vela e seguiu Zacharie e Jeanlin, que já estavam descendo. A escada de madeira rangeu sob o peso de seus pés enfiados em meias de lã. O quarto e o cubículo do corredor voltaram às trevas. As crianças dormiam, a própria Alzire fechara novamente as pálpebras. A mãe, no entanto, permanecia de olhos abertos na escuridão, enquanto Estelle sorvia no seu seio murcho de mulher exausta e ronronava como um gatinho.
     Embaixo Catherine tratara, em primeiro lugar, de reavivar o fogo no fogão de ferro que tinha uma grelha no centro e dois fornos nos lados e onde a hulha ardia constantemente. A companhia distribuía por mês, a cada família, oito hectolitros de lascas de carvão duro, sobras dos sacos, carvão esse difícil de acender. Toda noite a moça deixava o fogo aceso e coberto de cinzas; pela manhã apenas o reavivava com pedacinhos de carvão tenro, escolhidos com cuidado. Após ter colocado uma vasilha com água sobre a grelha, agachou-se diante do guarda-comida.
     Era uma sala bastante grande, ocupando todo o térreo, pintada de verde claro, de um asseio flamengo, com suas lajes muito bem lavadas e espargidas de areia branca. Além do guarda-comida de pinho envernizado, a mobília consistia de uma mesa e cadeiras da mesma madeira. Colados às paredes, reproduções de cores vivas, retratos do imperador e da imperatriz dados pela companhia, figuras de soldados e santos onde o dourado predominava, ressaltavam violentamente na nudez clara da peça, onde não havia outros ornamentos além de uma caixa de cartão cor-de-rosa em cima do guarda-comida e do relógio de cuco, de mostrador sarapintado, cujo tique-taque parecia encher o vazio da sala. Perto da porta da escada, outra porta conduzia ao portão.
     Apesar do asseio, um cheiro de cebola cozida e guardada desde a véspera empestava o ar aquecido e pesado, sempre carregado de um cheiro forte de hulha.
     Catherine refletia diante do guarda-comida aberto. Só havia um pedaço de pão, suficiente queijo fresco e apenas uma migalha de manteiga. E com isso teria de preparar comida para os quatro. Por fim decidiu-se: cortou o pão, cobriu uma fatia com queijo, a outra untou com manteiga e depois colou-as; era o "engana a fome" do mineiro, a fatia dupla que é levada pela manhã para a mina. Num instante os quatro sanduíches estavam enfileirados sobre a mesa, preparados com severa justiça, desde o grande para o pai até o pequeno para Jeanlin.
     Catherine, que parecia toda entregue a seu trabalho, devia, contudo, estar pensando nas histórias que Zacharie contava a respeito do capataz com a mulher de Pierron, já que entreabriu a porta da rua e espiou para fora. O vento continuava a soprar, e, nas fachadas baixas do casario do conjunto habitacional, de onde subia uma vaga trepidação de despertar, as luzes eram cada vez mais numerosas. Portas batiam, grupos escuros de operários desapareciam dentro da noite. Era tolice ficar ali, apanhando frio, seguramente Pierron ainda dormia, seu trabalho começava às seis horas. Mas mesmo assim ela ficou olhando a casa do outro lado dos jardins. Tendo alguém aberto a porta, sua curiosidade aumentou. Mas só podia ser a filha dos Pierron, Lydie, que partia para a mina.
      Nisto, um assobio de vapor fez que se voltasse; fechou a porta e correu: a água fervia e transbordava, apagando o fogo. Não havia mais café; teve de se contentar em passar a água pela borra da véspera para depois adoçá-la na cafeteira com açúcar preto. Nesse momento o pai e os dois irmãos desceram.

 — Puxa! — exclamou Zacharie, enfiando o nariz na tigela. — Com um café deste não há perigo de ficar com dor de cabeça.

     Maheu encolheu os ombros com ar resignado.

 — Tanto faz! Está quente e até gostoso.

      Jeanlin juntara as migalhas do pão e fizera uma papa. Depois de beber, Catherine despejou o que sobrara na cafeteira em cantis de lata. Os quatro em pé, mal iluminados pela vela fumacenta, engoliam às pressas.

 — Como é, terminamos? — reclamou o pai. — Até parece que somos ricos!

     Nisto uma voz veio da escada, cuja porta tinha deixado aberta; era a mãe que gritava:

 — Levem todo o pão, ainda tenho um pouco de aletria para as crianças. 
 — Sim, sim! — respondeu Catherine. 

     Havia coberto novamente o fogo e colocado numa ponta da grelha um resto de sopa que o avô encontraria quente ao voltar do trabalho, às seis horas.
     Cada um deles apanhou seu par de tamancos debaixo do guarda comida, passou o cordão do cantil pelo ombro e enfiou o sanduíche nas costas, entre a camisa e a jaqueta. E saíram todos, homens na frente, a moça atrás, depois de soprar a vela e dar uma volta na chave. A casa voltou à escuridão.

 — Muito bem, vamos juntos! — disse um homem que fechava a porta da casa vizinha.

     Era Levaque com o filho Bébert, menino de doze anos, grande amigo de Jeanlin. Catherine, admirada, sufocou uma risada no ouvido de Zacharie: com que então Bouteloup nem esperava mais que o marido saísse?!
     No conjunto habitacional, agora, as luzes se apagavam. Uma última porta bateu, tudo dormia novamente, mulheres e crianças voltavam ao sono em camas mais largas. E do vilarejo no escuro à Voreux que resfolegava houve um lento desfilar de sombras sob o vento impiedoso: a partida dos carvoeiros para o trabalho. Caminhavam balançando os ombros, sem saber o que fazer com os braços, que cruzavam no peito, enquanto, atrás, o farnel se transformara numa corcunda. Vestindo roupas leves, tiritavam de frio, mas nem por isso caminhavam mais depressa, dispersos ao longo da estrada, num tropear de rebanho.

continua na página 13...
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Primeira Parte - (II) No meio dos campos de trigo e beterraba
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O pai de Zola tinha 44 anos quando conheceu Émilie-Aurélie Aubert, numa de suas viagens a Paris. Apesar da grande diferença de idade — a moça não chegara aos vinte anos —, acabaram casando — se. O resultado dessa união foi Émile Zola, nascido em 12 de abril de 1840, durante uma estada do casal em Paris. O menino mal conheceu o pai: em 1847, François faleceu. 
As coisas ficaram difíceis. Sozinha e com grandes esforços, a mãe procurou equilibrar o orçamento doméstico e fazer que o filho estudasse. De certa forma, ela teve sucesso: Zola foi aluno do Colégio Notre-Dame e do Colégio de Aix. Quando o rapaz atingiu a maioridade, partiu com Émilie para Paris e, graças a um amigo da família, conseguiu um emprego na Alfândega.
Em dezembro de 1859, concluía sua primeira obra em prosa, Les Grisettes de Provence (As Costureirinhas de Provença). Continuava, porém, desconhecido e insatisfeito. Ele mesmo costumava dizer: "Ser sempre desconhecido é chegar a duvidar de si; nada engrandece os pensamentos de um autor como o sucesso".
Assim, no início de 1866, deixou o emprego para dedicar-se à literatura. 
Abandonou o romantismo de seus anos de adolescência e passou a admirar outros autores: Balzac (1799-1850), Stendhal (1783-1842), Flaubert (1821-1880). Essa guinada para o realismo devia-se principalmente às suas últimas leituras: das teorias evolucionistas de Darwin (1809-1882) até o Tratado da Hereditariedade Natural do Dr. Lucas, passando pela Filosofia da Arte de Taine (1328-1893). No entanto, o que parece tê-lo feito decidir-se pelo realismo foi a Introdução ao Estudo da Medicina Experimental (1865), de Claude Bernard (1813-1878). Essa obra foi importante para o rumo que Zola imprimiria a toda a sua obra: o rigor científico no romance, cujo objetivo, diria ele, é o mesmo das experiências de laboratório, isto é, o conhecimento da realidade. O que Claude Bernard havia feito com o corpo humano Zola faria com as paixões e os meios sociais.
Para fazer Germinal, Zola não se satisfez com a simples busca de documentos. Foi passar alguns meses numa região mineira. Morou em cortiços, bebeu cerveja e genebra nos botequins e desceu ao fundo dos poços para observar de perto o trabalho dos operários. Aos poucos foi se familiarizando com o meio onde viviam aqueles homens. Descobriu quais as principais doenças causadas pela mineração. Sentiu o problema dos baixos salários, os sacrifícios dos mineiros, a gota que cai com uma regularidade incrível sobre seus rostos, a dificuldade de empurrar um vagonete por um corredor estreito, o drama do salto na escuridão que eles têm de dar para poderem sobreviver. Numa passagem admirável, descreve a emoção de uma greve de operários. Mostra seu ódio animal. Um ódio que destrói tudo à sua passagem. Uma violência viva nos corpos que querem libertar-se, mesmo à custa da total destruição. Mostra também o amor feito sobre o carvão, os pequenos dramas das dívidas, as brigas no cortiço, a promiscuidade de pais e filhos em casas muito pequenas. A obra obteve enorme repercussão.
Em 29 de setembro de 1901, em Paris, Émile Zola morre asfixiado pelo gás do aquecedor.
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[1] Soldo: moeda francesa, correspondente a um vigésimo do franco. (N. do T.).

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