domingo, 6 de julho de 2025

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (04)

Honoré de Balzac - A Comédia Humana / Vol 1

1
Estudos de Costumes 
- Cenas da Vida Privada



A bolsa

continuando...

     Hipólito balbuciou algumas palavras de agradecimento e tornou ao seu silêncio anterior, contentando-se em admirar com crescente entusiasmo a bela cabeça da moça pela qual estava fascinado. Pouco depois esqueceu-se nessa contemplação, sem mais pensar na miséria profunda do ambiente. Para ele, o semblante de Adelaide destacava-se sobre uma atmosfera luminosa. Respondeu concisamente às perguntas que lhe foram dirigidas e que felizmente ouviu, graças à singular faculdade de nosso espírito, cujo pensamento pode, de algum modo, desdobrar-se às vezes. A quem já não aconteceu ficar mergulhado numa meditação voluptuosa ou triste, ouvir-lhe a voz no íntimo, e ao mesmo tempo assistir a uma conversação ou a uma leitura? Dualismo admirável que muitas vezes ajuda a suportar com paciência os cacetes! Fecunda e risonha, a esperança derramou sobre ele mil pensamentos de felicidade, e ele nada mais quis observar em derredor de si: criança, cheia de confiança, parecia-lhe vergonhoso analisar um prazer. Depois de certo lapso de tempo, apercebeu-se que a velha dama e a moça jogavam com o velho gentil homem. Quanto ao satélite deste, fiel à sua condição de sombra, mantinha-se de pé, atrás do amigo cujo jogo o preocupava, respondendo às mudas perguntas que lhe fazia o jogador, por meio de pequenas caretas aprovativas, que repetiam os movimentos interrogadores da outra fisionomia.

 — Du Halga, estou perdendo sempre — dizia o gentil-homem. 
 — É que está cometendo erros — respondeu a baronesa de Rouville. 
 — Faz três meses que não lhe pude ganhar uma única partida. 
 — Tem os ases, senhor conde? — perguntou a velha dama. 
 — Sim. E marquei um — disse ele. 
 — Quer que eu lhe aconselhe? — perguntou Adelaide. 
 — Não, não, fica-te aí, na minha frente. Com os diabos! Seria o cúmulo, se além de perder, eu não te visse na minha frente.

     Por fim terminou a partida. O gentil-homem puxou da bolsa e, atirando dois luíses sobre o pano verde — não sem algum mau humor —, exclamou:

 — Quarenta francos, exatinhos como ouro — e acrescentou: — Demônios! Já são onze horas. 
 — Onze horas — repetiu a personagem muda, olhando o relógio.

     Ao ouvir essas palavras um pouco mais nitidamente do que as outras, o moço achou que já era tempo de se retirar. Voltando então para o mundo das ideias vulgares, recorreu a alguns lugares-comuns para dizer alguma coisa, cumprimentou a baronesa, a filha, os dois desconhecidos e saiu, entregue às primeiras alegrias do amor verdadeiro, sem tentar analisar os pequenos incidentes do serão.
      No dia seguinte, o jovem pintor sentiu o mais violento desejo de ver Adelaide. Se tivesse dado ouvidos à sua paixão, teria entrado em casa das vizinhas desde as seis horas da manhã, ao chegar ao seu ateliê. Teve, entretanto, suficiente bom-senso para esperar até a tarde. Mas logo que julgou poder apresentar-se no apartamento da sra. de Rouville, desceu, tocou a sineta, não sem algumas fortes pulsações do coração e, corando como uma donzela, pediu timidamente a Adelaide, que lhe viera abrir a porta, o retrato do barão de Rouville.

 — Mas queira entrar — disse a moça, que sem dúvida o ouvira descer.

     O pintor seguiu-a envergonhado, embaraçado, sem saber o que dizer, de tão estúpido que ficara com a felicidade. Ver Adelaide, ouvir o fru-fru de seu vestido, depois de ter desejado, durante toda a manhã, estar junto dela, de se ter levantado cem vezes dizendo: “Vou descer!” e não ter descido; isso, para ele, era viver tão exuberantemente, que tais sensações demasiado prolongadas lhe teriam gasto a alma. O coração tem o singular poder de dar um valor extraordinário a pequenos nadas. Que alegria para um viajante colher uma pequena haste de relva, uma folha qualquer, se nesta busca arriscou a vida! Os nadas do amor são assim. A velha dama não estava no salão. Quando a moça se viu ali só com o pintor, foi buscar uma cadeira para alcançar o retrato, mas vendo que o não podia tirar do prego onde estava pendurado sem pôr o pé na cômoda, virou-se para Hipólito e disse-lhe corando:

 — Não sou bastante alta. Quer o senhor tirá-lo dali?

      Um sentimento de pudor, de que davam testemunho a expressão de sua fisionomia e o tom de sua voz, foi o verdadeiro motivo de seu pedido, e o rapaz, que assim o compreendeu, dirigiu-lhe um desses olhares de inteligência que são a mais doce linguagem do amor. Vendo-se tão bem adivinhada pelo pintor, Adelaide baixou os olhos por um movimento de orgulho, cujo segredo pertence às virgens. Não achando o que dizer e quase intimidado, o pintor tirou o quadro do prego, examinou-o com toda a gravidade, expondo-o à luz, junto à janela, e retirou-se sem dizer à srta. Leseigneur mais do que: “Breve eu o restituirei”. Ambos, durante esse rápido momento, sentiram uma dessas intensas comoções cujos efeitos sobre a alma podem comparar-se aos produzidos por uma pedra atirada no fundo de um lago. Nascem daí as mais ternas reflexões, sucedendo-se umas às outras, indefiníveis, multiplicadas, sem alvo, agitando o coração como as ondas circulares que franzem a superfície das águas, durante muito tempo, a partir do ponto onde a pedra caiu. Hipólito voltou para o seu ateliê carregando aquele retrato. Já tinha tudo preparado, uma tela no cavalete, uma paleta carregada de tintas, os pincéis limpos, o lugar e a iluminação escolhidos. Trabalhou, pois, no retrato, até a hora do jantar com o ardor que os artistas empregam em seus caprichos. Voltou essa mesma noite à casa da baronesa de Rouville, lá ficando das nove às onze horas. Excetuando os vários assuntos da conversa, esse serão muito se assemelhou ao precedente. Os dois velhos chegaram à mesma hora, foi jogada a mesma partida de piquet, foram repetidas as mesmas frases pelos jogadores, a quantia perdida pelo amigo de Adelaide foi tão considerável como a perdida na véspera, a única diferença foi que Hipólito, um pouco mais ousado, atreveu-se a conversar com a moça.
     Passaram-se assim oito dias, durante os quais os sentimentos do pintor e os de Adelaide experimentavam essas deliciosas e lentas transformações, que levam as almas a um perfeito entendimento. Por isso, de dia para dia, o olhar com o qual Adelaide acolhia seu amigo se foi tornando mais íntimo, mais confiante, mais alegre e mais franco; sua voz, suas maneiras adquiriram qualquer coisa de mais untuoso, de mais familiar. Os dois riam, conversavam, diziam um ao outro seus pensamentos, falavam de si mesmos com a ingenuidade de duas crianças que, no decurso de um dia, travaram relações e procedem como se já se conhecessem há mais de três anos. Schinner aprendeu o piquet. Sendo ignorante e noviço, ele naturalmente cometeu erro após erro e, como o velho, perdeu quase todas as partidas. Sem ainda se terem confessado seu amor, os dois namorados sabiam que pertenciam um ao outro. Hipólito comprazia-se em exercer seu poder sobre a sua tímida amiguinha. Muitas concessões lhe foram feitas por Adelaide, a qual, medrosa e dedicada, se deixava ludibriar por esses falsos arrufos, que o menos hábil dos namorados ou a mais ingênua das moças inventam, deles se servindo continuamente, como as crianças mimadas abusam do poder que lhes confere o amor materno. Por esse motivo, bem depressa cessaram as familiaridades do velho conde com Adelaide. A moça compreendeu as tristezas do pintor e os pensamentos ocultos nas rugas de sua fronte, no acento brusco das poucas palavras que ele proferia, quando o velho beijava sem cerimônia as mãos ou o pescoço de Adelaide. Por sua vez, a srta. Leseigneur exigiu logo, do seu apaixonado, contas severas de todos os seus atos; mostrava-se tão infeliz, tão inquieta quando Hipólito não vinha, sabia tão bem ralhar com ele pelas suas ausências, que o pintor teve de renunciar a ver seus amigos e deixou de frequentar a sociedade. Adelaide deixou transparecer o ciúme natural nas mulheres, quando soube que, às vezes, ao sair de casa da sra. Rouville, às onze horas, o pintor fazia ainda visitas e percorria os mais brilhantes salões de Paris. Esse gênero de vida, dizia ela, era mau para a saúde; depois, com a convicção profunda à qual o tom, o gesto e o olhar de uma pessoa amada dão tanto poder, ela assegurou “que um homem forçado a prodigar seu tempo e as cintilações de seu espírito a várias mulheres ao mesmo tempo não podia ser objeto de uma afeição bastante intensa”. O pintor foi assim levado, tanto pelo despotismo da paixão como pelas exigências de uma moça enamorada, a viver unicamente naquele apartamento, onde tudo lhe agradava. Enfim, jamais amor foi mais puro nem mais ardente. Quer de um lado, quer do outro, a mesma fé, a mesma delicadeza fizeram crescer aquela paixão sem o recurso dos sacrifícios pelos quais muita gente procura demonstrar seu amor. Existia entre eles uma troca contínua de sensações tão doces que não sabiam qual dos dois dava ou recebia mais. Um pendor involuntário tornava sempre íntima a união de suas almas. O progresso desse sentimento verdadeiro foi tão rápido que, passados dois meses do acidente devido ao qual o pintor tivera a felicidade de conhecer Adelaide, as vidas de ambos se fundiam numa única vida. Desde pela manhã, ao ouvir caminhar no andar superior, a moça podia dizer a si mesma: “Ele está aí!”. Quando Hipólito voltava para a casa materna, à hora do jantar, nunca deixava de ir cumprimentar as vizinhas e, à noite, acorria à hora habitual com pontualidade de apaixonado. Assim é que a mais tirânica das mulheres e a mais exigente em amor não poderia fazer a mais leve censura ao jovem artista. Por isso, Adelaide saboreou uma felicidade sem nuvens nem limites, ao ver realizar-se em toda a sua extensão o ideal que é tão natural sonhar na sua idade. O velho gentil-homem compareceu menos frequentemente, o ciumento Hipólito o substituirá à noite, no pano verde, na sua constante pouca sorte no jogo. Entretanto, em meio à sua felicidade, ao pensar na triste situação da baronesa de Rouville, porquanto obtivera mais de uma prova de suas necessidades, invadiu-o um pensamento importuno. Já por várias vezes ao voltar para casa, dissera a si mesmo “Como! Vinte francos todas as noites?”. E não se animava a confessar a si mesmo suas odiosas suspeitas.
      Levou dois meses a fazer o retrato, que ele próprio, depois de o terminar, envernizar e emoldurar, olhou como um de seus melhores trabalhos. A sra. baronesa de Rouville não lhe tocara mais no assunto. Seria pouco-caso ou orgulho? O pintor não quis procurar a explicação desse silêncio. Conspirou alegremente com Adelaide para colocarem o retrato no lugar, durante uma ausência da sra. de Rouville. Um dia, pois, durante o passeio que sua mãe dava habitualmente pelas Tulherias, Adelaide subiu sozinha, pela primeira vez, ao ateliê de Hipólito, alegando o pretexto de ver o retrato na luz favorável em que tinha sido pintado. Ficou muda e imóvel, mergulhada numa contemplação deliciosa, na qual todos os sentimentos da mulher se fundiam num único. Não se resumem eles numa admiração sem limites pelo homem amado? Quando o pintor, inquieto por aquele silêncio, se voltou para olhar a moça, ela estendeu-lhe a mão, sem poder articular uma palavra; mas duas lágrimas lhe corriam dos olhos. Hipólito tomou aquela mão, cobriu-a de beijos, e durante um momento os dois se olharam em silêncio, querendo ambos confessar seu amor, mas sem se arriscarem a isso. O pintor conservou a mão de Adelaide presa nas suas, e um mesmo calor e um mesmo movimento lhes fizeram saber que seus corações pulsavam tão forte um como o outro. Demasiado comovida, a jovem afastou-se suavemente de Hipólito e disse, dirigindo-lhe um olhar cheio de ingenuidade:

 — Vai dar uma grande felicidade à minha mãe. 
 — Como! Só à sua mãe? — perguntou ele. 
 — Oh! Eu sinto-me demasiado feliz.

continua pág 408...
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A Comédia Humana / Cenas da Vida Privada: A bolsa (04)
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Honoré de Balzac (Tours, 20 de maio de 1799 — Paris, 18 de agosto de 1850) foi um produtivo escritor francês, notável por suas agudas observações psicológicas. É considerado o fundador do Realismo na literatura moderna.[1][2] Sua magnum opus, A Comédia Humana, consiste de 95 romances, novelas e contos que procuram retratar todos os níveis da sociedade francesa da época, em particular a florescente burguesia após a queda de Napoleão Bonaparte em 1815.
Entre seus romances mais famosos destacam-se A Mulher de Trinta Anos (1831-32), Eugènie Grandet (1833), O Pai Goriot (1834), O Lírio do Vale (1835), As Ilusões Perdidas (1839), A Prima Bette (1846) e O Primo Pons (1847). Desde Le Dernier Chouan (1829), que depois se transformaria em Les Chouans (1829, na tradução brasileira A Bretanha), Balzac denunciou ou abordou os problemas do dinheiro, da usura, da hipocrisia familiar, da constituição dos verdadeiros poderes na França liberal burguesa e, ainda que o meio operário não apareça diretamente em suas obras, discorreu sobre fenômenos sociais a partir da pintura dos ambientes rurais, como em Os Camponeses, de 1844. Além de romances, escreveu também "estudos filosóficos" (como A Procura do Absoluto, 1834) e estudos analíticos (como a Fisiologia do Casamento, que causou escândalo ao ser publicado em 1829).
Balzac tinha uma enorme capacidade de trabalho, usada sobretudo para cobrir as dívidas que acumulava. De certo modo, suas despesas foram a razão pela qual, desde 1832 até sua morte, se dedicou incansavelmente à literatura. Sua extensa obra influenciou nomes como Proust, Zola, Dickens, Dostoyevsky, Flaubert, Henry James, Machado de Assis, Castelo Branco e Ítalo Calvino, e é constantemente adaptada para o cinema. Participante da vida mundana parisiense, teve vários relacionamentos, entre eles um célebre caso amoroso, desde 1832, com a polonesa Ewelina Hańska, com quem veio a se casar pouco antes de morrer.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip)
(Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil)

Balzac, Honoré de, 1799-1850.
A comédia humana: estudos de costumes: cenas da vida privada / Honoré de Balzac; orientação, introduções e notas de Paulo Rónai; tradução de Vidal de Oliveira; 3. ed. – São Paulo: Globo, 2012.

(A comédia humana; v. 1) Título original: La comédie humaine ISBN 978-85-250-5333-1 0.000 kb; ePUB
1. Romance francês i. Rónai, Paulo. ii. Título. iii. Série.
12-13086 cdd-843
Índices para catálogo sistemático:
1. Romances: Literatura francesa 843

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