sexta-feira, 11 de julho de 2025

Marcel Proust - O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Contrariamente à ordem habitual)

em busca do tempo perdido

volume III
O Caminho de Guermantes

Segunda Parte

Capítulo Segundo

     Contrariamente à ordem habitual de suas férias, naquele ano ela vinha diretamente de Balbec e ainda ficara lá bem menos tempo que de costume. Fazia muito tempo que não a via. E, como não conhecesse nem de nome as pessoas que ela frequentava em Paris, nada sabia dela nos períodos que permanecia sem me procurar. Tais períodos eram com frequência bem longos. Depois, um belo dia, Albertine surgia bruscamente, e suas róseas aparições e silenciosas visitas informavam-me bem pouco sobre o que pudesse ter feito no intervalo, que ficava mergulhado nessa obscuridade de sua vida que meus olhos pouco se preocupavam em romper. Entretanto, dessa vez alguns indícios pareciam mostrar que deveriam ter ocorrido coisas novas nessa vida. Mas talvez se devesse simplesmente deduzir deles que se muda muito depressa na idade que tinha Albertine. Por exemplo, sua inteligência mostrava-se melhorada, e, quando voltei a lhe falar do dia em que pusera tanto empenho em impor sua ideia de fazer com que Sófocles escrevesse:

"Meu caro Racine", ela foi a primeira a rir abertamente. - Andrée é quem tinha razão, eu era estúpida - disse ela -; seria necessário que Sófocles escrevesse: "Senhor". - Respondi que o "senhor" e o "caro senhor" de Andrée não eram menos engraçados que o "meu caro Racine" dela e o "meu caro amigo" de Gisele, mas que, no fundo, só os professores eram estúpidos ao mandarem endereçar por Sófocles uma carta a Racine. Aí, Albertine não me acompanhou. Não via o que aquilo apresentava de estúpido; sua inteligência se entreabrira, mas não se desenvolvera. Havia novidades mais atraentes nela; eu sentia, na mesma mocinha bonita que acabava de sentar-se junto à minha cama, algo diverso e, nas linhas que no olhar e nas feições do rosto expressam a vontade habitual, uma mudança de aspecto, uma semiconversão como se tivessem sido destruídas aquelas resistências contra as quais eu me chocara em Balbec, numa noite já longínqua em que formávamos um par simétrico porém inverso daquele da tarde atual, visto que então era ela que estava deitada e eu ao lado da cama. Querendo e não ousando assegurar-me se agora ela se deixaria beijar, de cada vez que ela se erguia para ir embora eu lhe pedia para ficar ainda. Isso não era fácil de conseguir, pois, embora ela não tivesse o que fazer (não fosse isso teria pulado fora), era uma pessoa pontual e aliás pouco amável comigo, não parecendo achar mais nenhum prazer na minha companhia. No entanto, de cada vez, após ter consultado o relógio de pulso, ela voltava a sentar-se a meu pedido, de modo que passara várias horas comigo e sem que eu lhe tivesse pedido nada; as frases que lhe dizia ligavam-se às que lhe dissera nas horas precedentes, e não se relacionavam em nada com o que eu pensava, com o que desejava, permaneciam-lhe indefinidamente paralelas. Não há nada como o desejo para impedir as coisas que dizemos de terem alguma semelhança com o que nos vai pelo pensamento. O tempo urge, e no entanto parece que queremos ganhar tempo falando sobre assuntos totalmente estranhos ao que nos preocupa. Conversamos, quando a frase que desejaríamos pronunciar já seria acompanhada de um gesto, supondo mesmo que para nos darmos o prazer do imediato e matar a curiosidade que experimentamos relativamente às reações que trouxer sem dizer palavra, sem pedir qualquer licença, não teríamos feito tal gesto. Certo, eu não amava Albertine de forma alguma: filha da bruma lá de fora, ela podia apenas contentar o desejo da imaginação que o tempo novo despertara em mim e que era intermediário entre os desejos que podem satisfazer, por um lado, as artes culinárias e as da escultura monumental, pois fazia-me sonhar ao mesmo tempo em mesclar à minha carne uma matéria diferente e cálida, e de ligar por algum ponto, a meu corpo estendido, um corpo divergente, como o corpo de Eva mal se ligava pelos pés aos quadris de Adão, a cujo corpo estava quase perpendicular naqueles baixos-relevos romanos da catedral de Balbec que representam de modo tão nobre e pacífico, ainda quase como um friso antigo, a criação da mulher; Deus ali está por toda parte seguido, como por dois ministros, de dois anjinhos nos quais se reconhecem como essas criaturas aladas e turbilhonantes do verão que o inverno surpreendeu e poupou os Amores de Herculanum ainda vivos em pleno século XIII, e arrastando o seu último voo, cansados mas sem faltar à graça que se pode esperar deles, sobre toda a fachada do pórtico. 

     Ora, esse prazer que, satisfazendo o meu desejo, me teria livrado daquele devaneio, e que eu buscaria de boa vontade em qualquer outra mulher bonita, se me tivessem perguntado em que no decurso daquela conversa interminável em que eu calava a Albertine a única coisa em que pensava se baseava a minha hipótese otimista acerca das possíveis complacências, teria talvez respondido que tal hipótese era devida (enquanto os traços esquecidos da voz de Albertine redesenhavam-me o contorno de sua personalidade) ao aparecimento de certas palavras que não faziam parte de seu vocabulário, ao menos na acepção que ela lhes dava agora. Como me dissesse que Elstir era bobo e eu protestasse, replicou sorrindo: 

- Você não me compreende; quero dizer que foi bobo nestas circunstâncias, mas sei perfeitamente que é uma pessoa bem distinta.

     Da mesma forma, para dizer do golfe de Fontainebleau que ele era elegante, declarou: 

- Trata-se de uma seleção de fato.

     A propósito de um duelo que eu tivera, disse-me a respeito de minhas testemunhas: 

- São testemunhas de elite e, olhando meu rosto, confessou que gostaria de me ver "usando bigodes". Chegou até, e minhas chances me pareceram então bem grandes, a dizer, termo que eu teria jurado que ela ignorava no ano anterior, que, desde que tinha visto Gisele, passara-se um certo "lapso de tempo". Não é que Albertine não possuísse, quando eu estivera em Balbec, um lote bem sortido dessas expressões que revelam de imediato que a gente saiu de uma família abastada, e que de ano em ano uma me abandona à filha, como lhe dá, à medida que esta cresce, suas próprias joias, nas ocasiões importantes. Sentira que Albertine deixara de ser uma menininha quando um dia, para agradecer um presente que uma estranha lhe dera, havia respondido: 

"Estou confusa." A Sra. Bontemps não pudera evitar olhar para o marido, que dissera: 

- Diabo, ela já tem quatorze anos.  

     A inabilidade mais acentuada se assinalara quando Albertine, falando de uma jovem de maus modos, dissera: 

"Nem se pode ver se ela é bonita, pois tem uma mão de rouge na cara."

     Enfim, embora ainda fosse mocinha, já assumia maneiras de mulher do seu meio e de sua classe ao dizer, se alguém fazia caretas: 

"Não posso vê-lo porque tenho vontade de fazer o mesmo", ou, se se divertiam com imitações: "O mais engraçado, quando você arremeda, é que fica parecido com ela." Tudo isso é extraído do tesouro social. Mas justamente o meio de Albertine não me parecia poder fornecer-lhe "distinto", no sentido em que meu pai falava de determinado colega que ainda não conhecia e de quem lhe gabavam a grande inteligência: "Parece que é alguém muito distinto." Mesmo para o golfe, "seleção" me pareceu tão incompatível com a família Simonet como o seria, acompanhado do adjetivo "natural", com um texto vários séculos anterior aos trabalhos de Darwin. "Lapso de tempo" pareceu-me ainda de melhor agouro. Por fim, surgiu-me a evidência de perturbações que eu não conhecia, mas próprias para autorizar-me todas as esperanças, quando Albertine me disse, com a satisfação de uma pessoa cuja opinião não é indiferente: 

-A meu ver, é o que poderia acontecer de melhor... Estimo que seja a melhor solução, a solução elegante.

     Aquilo era tão novo, tão visivelmente se tratava de um aluvião a deixar supor tão caprichosos desvios através de atalhos outrora desconhecidos dela, que, desde a expressão "A meu ver", puxei Albertine e, no "Estimo", sentei-a na minha cama.
     Ocorre, sem dúvida, que as mulheres pouco instruídas, que se casam com um homem altamente letrado, recebem tais expressões junto com seu dote. E, pouco depois da metamorfose que se segue à noite de núpcias, quando fazem suas visitas e se mostram reservadas com as antigas amigas, nota-se com espanto que se tornaram mulheres se, decretando que uma pessoa é inteligente, põem dois “LL” na palavra "inteligente". Mas isso é justamente o sinal de uma mudança, e me parecia que entre o vocabulário de Albertine que eu havia conhecido - aquele em que as maiores ousadias eram dizer de uma pessoa esquisita:

"É um tipo", ou, se lhe propunham um jogo: ''Não tenho dinheiro a perder", ou ainda, se determinada amiga lhe fazia uma censura que ela achasse injusta: "Ah, na verdade, acho-te magnífica!", frases ditadas nesses casos por uma espécie de tradição burguesa quase tão antiga como o próprio Magnificat e que uma moça um tanto encolerizada e certa de seus direitos emprega, como se diz, "muito naturalmente", ou seja, porque as aprendeu de sua mãe, como a dizer as orações e a cumprimentar. Todas essas frases, a Sra. Bontemps as aprendera ao mesmo tempo que o ódio aos judeus e a estima pelos negros, em que se é sempre conveniente e distinto, mesmo sem que a Sra. Bontemps lhes houvesse formalmente ensinado, mas como se modela no gorjeio dos pintassilgos pais o dos pintassilgos recém-nascidos, de modo que eles próprios se tornam verdadeiros pintassilgos. Apesar de tudo, "seleção" me pareceu alógeno, e "Estimo", animador. Albertine já não era a mesma, portanto não agiria, não reagiria talvez da mesma forma. Não somente não sentia mais amor por ela, como já não tinha a temer, como em Balbec, quebrar nela uma amizade por mim que não existia mais. Não havia dúvida alguma de que há tempos eu lhe era muito indiferente. Percebia que, para ela, eu já não fazia absolutamente parte do "pequeno grupo" a que antigamente tanto buscara, e ao qual depois ficara tão feliz por ter sido agregado. Além disso, como ela já nem sequer tinha, como em Balbec, um ar de franqueza e de bondade, não tive muitos escrúpulos. Entretanto, creio que o que me decidiu foi uma última descoberta filológica. Como continuasse a acrescentar novos elos à cadeia externa de frases sob a qual ocultava meu desejo íntimo, ia falando, tendo agora Albertine à beira da cama, de uma das meninas do pequeno grupo, mais miúda que as outras, mas que ainda assim achava bonita:

- Sim - respondeu Albertine -, ela parece uma pequena musmê. - Evidentemente, quando conhecera Albertine, a palavra "musmê" era-lhe ignorada. 

     Era verossímil que, se as coisas tivessem seguido seu curso normal, ela jamais a houvesse aprendido e eu, de minha parte, não teria visto nenhum inconveniente nisso, pois não há vocábulo mais horrendo. Ao ouvi-lo, sente-se a mesma dor de dentes de como se tivéssemos posto um pedaço muito grande de gelo na boca. Mas em Albertine, bonita como ela era, até "musmê" não podia me desagradar. Em compensação, pareceu-me que revelava, se não uma iniciação externa, pelo menos uma evolução interna.  
     Infelizmente, chegara a hora em que deveria dizer-lhe adeus se quisesse que ela voltasse a tempo para o seu jantar e também para que me levantasse logo para o meu. Era Françoise quem o preparava, não gostava que ele esperasse e já devia achar contrário a um dos artigos de seu código que Albertine, na ausência de meus pais, me tivesse feito uma visita tão prolongada e que iria atrasar tudo. Mas, diante de "musmê", essas razões caíram, e me apressei a dizer: 

- Sabe que absolutamente não sou coceguento? Você poderia me fazer cócegas durante uma hora que eu não sentiria nada. 
- Verdade? 
 - Juro.

     Claro que ela compreendeu que se tratava da expressão desajeitada de um desejo, pois, como alguém que nos oferta encomenda que não ousamos solicitar, mas que nossas palavras deram a entender que nos poderia ser útil: 

- Quer que eu tente? - disse ela com a humildade da mulher. - Se quiser, mas então seria mais cômodo que você se estendesse completamente na cama. 
- Assim? 
- Não, venha mais fundo. 
- Mas não sou pesada demais?

     Quando terminava a frase, a porta se abriu e Françoise entrou trazendo uma lâmpada. Albertine só teve tempo de se sentar de novo na cadeira. Talvez Françoise tivesse escolhido aquele instante para nos confundir, tendo estado a escutar à porta ou até a olhar pelo buraco da fechadura. Mas eu não precisava fazer tal suposição; Françoise poderia desdenhar certificar-se com os olhos daquilo que seu instinto já lhe deveria ter farejado bastante, pois, à força de viver comigo e meus pais, o receio, a prudência, a atenção e a astúcia tinham acabado por lhe dar, a nosso respeito, essa espécie de conhecimento instintivo e quase divinatório que o marinheiro possui do mar, o caçador da caça e, da doença, se não o médico, pelo menos muitas vezes o doente. Tudo o que ela assim chegava a saber poderia assombrar com tanta razão como o estágio avançado de certos conhecimentos entre os antigos, tendo em vista os meios quase nulos de informação que eles possuíam (os seus não eram muito numerosos: algumas frases, mal formando a vigésima parte de nossa conversa no jantar, recolhidas de passagem pelo mordomo e transmitidas inexatamente à copa). Ainda seus próprios erros eram devidos, como os dos antigos, como as fábulas em que Platão acreditava, antes a uma falsa concepção do mundo e às ideias preconcebidas do que à insuficiência de recursos materiais. Assim é que, nos nossos dias, as maiores descobertas sobre os costumes dos insetos ainda puderam ser feitas por um sábio que não dispunha de nenhum laboratório, de nenhum aparelho. Mas, se os constrangimentos resultantes de sua condição de doméstica não a tinham impedido de adquirir uma ciência indispensável à arte que era a sua finalidade e que consistia em nos confundir, comunicando-nos os resultados -, o constrangimento fizera mais: aqui, o obstáculo não se contentara em não paralisar o impulso, havia-o ajudado com todas as forças. Sem dúvida, Françoise não desdenhava nenhum auxiliar, por exemplo a dicção e a atitude. Como era que (se nunca acreditava no que lhe dizíamos e que desejávamos que ela acreditasse) admitia, sem qualquer sombra de dúvida, o que toda pessoa de sua condição lhe contasse de mais absurdo e que pudesse ao mesmo tempo chocar nossas ideias, de tal forma que sua maneira de ouvir as nossas asserções testemunhava lhe a incredulidade, e o tom com que contava (pois o discurso indireto lhe permitia dirigir-nos os piores insultos impunemente) a história de uma cozinheira que lhe dissera ter ameaçado os patrões e deles obtivera mil favores, chamando-os diante de todo mundo de "lixo", mostrava que, para ela, aquilo eram palavras do Evangelho. Françoise até acrescentava: 

- Se eu fosse patroa, me sentiria envergonhada. -

     Por mais que déssemos de ombros, apesar da pouca simpatia inicial pela senhora do quarto andar, como se tivéssemos ouvido uma fábula inverossímil, diante desse relato de tão mau exemplo, a narradora, ao fazê-lo, sabia adotar o tom cortante e peremptório da mais indiscutível e exasperante afirmação. Mas sobretudo, assim como os escritores alcançam muitas vezes um poder de concentração de que os teria dispensado o regime de liberdade política ou de anarquia literária, quando se acham atados de pés e mãos pela tirania de um monarca ou de uma poética, pela severidade das regras da prosódia ou de uma religião de Estado, da mesma forma Françoise, não podendo nos responder de um modo explícito, falava como Tirésias e teria escrito como Tácito. Sabia fazer com que tudo o que não podia exprimir diretamente coubesse numa frase que não podíamos incriminar sem nos acusarmos, até menos que numa só frase, num silêncio, na maneira como colocava um objeto.
     Assim, quando me ocorria deixar na mesa, por descuido, no meio de outras, uma determinada carta que não era necessário que ela visse, porque, por exemplo, ali se falava dela com uma malevolência que fazia supor outra igualmente grande tanto no destinatário como no remetente, de noite, se eu chegava inquieto e ia direto para o quarto, sobre minhas cartas arrumadas em ordem e numa pilha perfeita, o documento comprometedor era o primeiro a saltar me aos olhos, como não podia deixar de ter saltado aos olhos de Françoise, colocado por ela acima de todos, quase à parte, numa evidência que era uma linguagem, tinha a sua eloquência e, desde a porta, sobressaltava-me como um grito. Ela excedia em regular essas encenações destinadas a instruir tão bem o espectador, na sua ausência, que este ficava sabendo que ela já sabia de tudo quando depois fizesse a sua entrada. Para fazer falar desse modo um objeto inanimado, possuía ela a arte a um tempo genial e paciente de Irving e de Frédérick Lemaitre.
     Naquele momento, sustendo acima de mim e de Albertine a lâmpada acesa que não deixava na sombra nenhuma das depressões ainda visíveis que o corpo da moça cavara no cobertor, Françoise dava a impressão de ser A Justiça iluminando o Crime. O rosto de Albertine não saía perdendo com essa iluminação. Esta lhe revelava nas faces o mesmo verniz ensolarado que me encantara em Balbec. Esse rosto de Albertine, cujo conjunto, por fora, possuía às vezes uma espécie de palidez lívida, mostrava pelo contrário, à medida que a lâmpada as iluminava, superfícies tão brilhante e uniformemente coloridas, tão resistentes e lisas, que seria possível compara-las às firmes carnações de certas flores. No entanto, surpreso com a entrada imprevista de Françoise, exclamei: 

- Como, já a lâmpada? Meu Deus, como é intensa essa luz! Claro que meu objetivo era, com a segunda dessas frases, dissimular a perturbação e, com a primeira, desculpar o meu atraso. Françoise respondeu com uma ambiguidade cruel: 
- É pra mim apagar? 
- Para eu apagar? - murmurou Albertine ao meu ouvido, deixando-me encantado com a vivacidade familiar com que, tomando-me ao mesmo tempo por mestre e por cúmplice, insinuou essa afirmação psicológica no tom interrogativo de uma questão gramatical.

     Quando Françoise deixou o quarto e Albertine se assentou de novo na minha cama: 

- Sabe de que tenho medo - disse-lhe-; é que, se continuarmos desse jeito, não poderei evitar beijá-la. 
- Seria uma bela duma desgraça.

     Não obedeci de imediato a esse convite. Outro tê-lo-ia mesmo achado supérfluo, pois Albertine tinha uma pronúncia tão sensual e tão doce que, só de falar, parecia beijar a gente. Uma palavra dela era um favor, e sua conversa cobria a gente de beijos. Entretanto, era-me bem agradável aquele convite. Sê-lo-ia também mesmo se viesse de outra moça da mesma idade; mas que agora Albertine fosse tão fácil para mim, causava-me aquilo, mais que prazer, uma confrontação de imagens impregnadas de beleza. Lembrava-me de Albertine, primeiro diante da praia, quase pintada sobre o fundo do mar, não tendo para mim uma existência mais real do que essas visões de teatro, em que não se sabe se vemos a atriz que deve aparecer, uma figurante que a substitui nesse momento, ou uma simples projeção. Depois, a mulher verdadeira se destacara do feixe luminoso, viera até mim, mas simplesmente para que eu pudesse verificar que, no mundo real, não tinha de modo algum essa facilidade amorosa que lhe supunham no quadro mágico. Soubera eu que não era possível tocá-la, beijá-la, que se podia apenas conversar com ela, que para mim ela não era uma mulher, como não eram uvas os cachos de jade, decoração incomestível das mesas de antigamente. E eis que, no terceiro plano, ela me aparecia real, como no segundo conhecimento que dela tivera, mas fácil como no primeiro; fácil, e tanto mais deliciosa por haver eu acreditado por tanto tempo que não o era. Meu acréscimo de conhecimento da vida (a vida menos unida, menos simples do que julgara a princípio) ia redundar provisoriamente no agnosticismo. O que se pode afirmar, visto que o que se considera provável antes se mostrou a seguir como falso, surgindo de novo em terceiro lugar como verdade? (E infelizmente eu não estava terminando minhas descobertas acerca de Albertine.) Em todo caso, mesmo se não existisse a atração romanesca desse conhecimento de uma riqueza bem maior de planos desvelados um após outro pela vida (atração inversa à que sentia Saint-Loup, durante os jantares em Rivebelle, em redescobrir, entre as máscaras que a existência superpusera numa fisionomia tranquila, as feições que ele tivera outrora sob seus lábios), saber que beijar as faces de Albertine era uma coisa possível tornava-se para mim um prazer talvez maior ainda que o de beijá-las. Que diferença entre possuir uma mulher sobre a qual só o nosso corpo se gruda, porque não passa de um pedaço de carne, e possuir a moça que víamos na praia com as amigas em certos dias, sem mesmo saber por que tais dias, em vez de outros, o que nos fazia tremer com receio de não revê-la! A vida, complacentemente, nos revelara o romance todo daquela moça, emprestara-nos, para vê-la, um instrumento ótico, depois outro, e acrescentara ao desejo carnal o acompanhamento, que o centuplica e diferencia, desses desejos mais espirituais e menos saciáveis que não saem de seu torpor e o deixam ir sozinho quando não pretende mais que a busca de um pedaço de carne, mas que, para a posse de toda uma região de lembranças de que se sentiam nostalgicamente exilados, erguem-se tempestuosos a seu lado, aumentam-no, sem poder segui-lo até a consumação, até a assimilação, impossível sob a forma de uma realidade material em que é desejada, mas esperam esse desejo a meio caminho e, no momento da lembrança, do regresso, fazem-lhe escolta novamente; em vez das faces da primeira que viesse, por mais frescas que fossem, porém anônimas, sem segredo, sem prestígio, beijar aquelas com que há tanto tempo sonhara seria conhecer o gosto, o sabor de uma cor contemplada com muita frequência. Viu-se uma mulher, simples imagem no cenário da vida, como Albertine, de perfil diante do mar, e depois, essa imagem, pôde-se destacá-la, colocá-la junto a si, e ver-lhe aos poucos o volume e as cores, como se se tivesse feito passá-la por detrás dos vidros de um estetoscópio. É por isso que as mulheres um pouco difíceis, que não possuímos de imediato, e que não sabemos logo se algum dia as possuiremos, são as únicas interessantes. Pois conhecê-las, abordá-las, conquistá-las, é fazer variar de forma, de grandeza, de relevo, a imagem humana; é uma lição de relativismo na apreciação de um corpo, de uma mulher, que é lindo contemplar de novo quando ela retomou sua finura de silhueta no cenário da vida. As mulheres conhecidas antes nos bordéis não interessam porque permanecem invariáveis.

continua na página 162...
________________

Leia também:

Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Contrariamente à ordem habitual)
Volume 7

Nenhum comentário:

Postar um comentário