em busca do tempo perdido
volume IIIO Caminho de Guermantes
Segunda Parte
Segunda Parte
Contrariamente à ordem habitual de suas férias, naquele ano ela vinha diretamente de Balbec e ainda ficara lá bem menos tempo que de costume. Fazia muito tempo que não a via. E, como não conhecesse nem de nome as pessoas que ela frequentava em Paris, nada sabia dela nos períodos que permanecia sem me procurar. Tais períodos eram com frequência bem longos. Depois, um belo dia, Albertine surgia bruscamente, e suas róseas aparições e silenciosas visitas informavam-me bem pouco sobre o que pudesse ter feito no intervalo, que ficava mergulhado nessa obscuridade de sua vida que meus olhos pouco se preocupavam em romper. Entretanto, dessa vez alguns indícios pareciam mostrar que deveriam ter ocorrido coisas novas nessa vida. Mas talvez se devesse simplesmente deduzir deles que se muda muito depressa na idade que tinha Albertine. Por exemplo, sua inteligência mostrava-se melhorada, e, quando voltei a lhe falar do dia em que pusera tanto empenho em impor sua ideia de fazer com que Sófocles escrevesse:
"Meu caro Racine", ela foi a primeira a rir abertamente. - Andrée é quem tinha razão, eu
era estúpida - disse ela -; seria necessário que Sófocles escrevesse: "Senhor". - Respondi que o
"senhor" e o "caro senhor" de Andrée não eram menos engraçados que o "meu caro Racine" dela
e o "meu caro amigo" de Gisele, mas que, no fundo, só os professores eram estúpidos ao
mandarem endereçar por Sófocles uma carta a Racine. Aí, Albertine não me acompanhou. Não
via o que aquilo apresentava de estúpido; sua inteligência se entreabrira, mas não se
desenvolvera. Havia novidades mais atraentes nela; eu sentia, na mesma mocinha bonita que
acabava de sentar-se junto à minha cama, algo diverso e, nas linhas que no olhar e nas feições
do rosto expressam a vontade habitual, uma mudança de aspecto, uma semiconversão como se
tivessem sido destruídas aquelas resistências contra as quais eu me chocara em Balbec, numa
noite já longínqua em que formávamos um par simétrico porém inverso daquele da tarde atual,
visto que então era ela que estava deitada e eu ao lado da cama. Querendo e não ousando
assegurar-me se agora ela se deixaria beijar, de cada vez que ela se erguia para ir embora eu lhe
pedia para ficar ainda. Isso não era fácil de conseguir, pois, embora ela não tivesse o que fazer
(não fosse isso teria pulado fora), era uma pessoa pontual e aliás pouco amável comigo, não
parecendo achar mais nenhum prazer na minha companhia. No entanto, de cada vez, após ter
consultado o relógio de pulso, ela voltava a sentar-se a meu pedido, de modo que passara várias
horas comigo e sem que eu lhe tivesse pedido nada; as frases que lhe dizia ligavam-se às que lhe
dissera nas horas precedentes, e não se relacionavam em nada com o que eu pensava, com o
que desejava, permaneciam-lhe indefinidamente paralelas. Não há nada como o desejo para
impedir as coisas que dizemos de terem alguma semelhança com o que nos vai pelo pensamento.
O tempo urge, e no entanto parece que queremos ganhar tempo falando sobre assuntos
totalmente estranhos ao que nos preocupa. Conversamos, quando a frase que desejaríamos
pronunciar já seria acompanhada de um gesto, supondo mesmo que para nos darmos o prazer do
imediato e matar a curiosidade que experimentamos relativamente às reações que trouxer sem
dizer palavra, sem pedir qualquer licença, não teríamos feito tal gesto. Certo, eu não amava
Albertine de forma alguma: filha da bruma lá de fora, ela podia apenas contentar o desejo da
imaginação que o tempo novo despertara em mim e que era intermediário entre os desejos que
podem satisfazer, por um lado, as artes culinárias e as da escultura monumental, pois fazia-me
sonhar ao mesmo tempo em mesclar à minha carne uma matéria diferente e cálida, e de ligar por
algum ponto, a meu corpo estendido, um corpo divergente, como o corpo de Eva mal se ligava
pelos pés aos quadris de Adão, a cujo corpo estava quase perpendicular naqueles baixos-relevos
romanos da catedral de Balbec que representam de modo tão nobre e pacífico, ainda quase como
um friso antigo, a criação da mulher; Deus ali está por toda parte seguido, como por dois
ministros, de dois anjinhos nos quais se reconhecem como essas criaturas aladas e turbilhonantes
do verão que o inverno surpreendeu e poupou os Amores de Herculanum ainda vivos em pleno
século XIII, e arrastando o seu último voo, cansados mas sem faltar à graça que se pode esperar
deles, sobre toda a fachada do pórtico.
Ora, esse prazer que, satisfazendo o meu desejo, me teria livrado daquele devaneio, e que
eu buscaria de boa vontade em qualquer outra mulher bonita, se me tivessem perguntado em que
no decurso daquela conversa interminável em que eu calava a Albertine a única coisa em que
pensava se baseava a minha hipótese otimista acerca das possíveis complacências, teria talvez
respondido que tal hipótese era devida (enquanto os traços esquecidos da voz de Albertine
redesenhavam-me o contorno de sua personalidade) ao aparecimento de certas palavras que não
faziam parte de seu vocabulário, ao menos na acepção que ela lhes dava agora. Como me
dissesse que Elstir era bobo e eu protestasse, replicou sorrindo:
- Você não me compreende; quero dizer que foi bobo nestas circunstâncias, mas sei
perfeitamente que é uma pessoa bem distinta.
Da mesma forma, para dizer do golfe de Fontainebleau que ele era elegante, declarou:
- Trata-se de uma seleção de fato.
A propósito de um duelo que eu tivera, disse-me a respeito de minhas testemunhas:
- São testemunhas de elite e, olhando meu rosto, confessou que gostaria de me ver
"usando bigodes". Chegou até, e minhas chances me pareceram então bem grandes, a dizer,
termo que eu teria jurado que ela ignorava no ano anterior, que, desde que tinha visto Gisele,
passara-se um certo "lapso de tempo". Não é que Albertine não possuísse, quando eu estivera em
Balbec, um lote bem sortido dessas expressões que revelam de imediato que a gente saiu de uma
família abastada, e que de ano em ano uma me abandona à filha, como lhe dá, à medida que esta
cresce, suas próprias joias, nas ocasiões importantes. Sentira que Albertine deixara de ser uma
menininha quando um dia, para agradecer um presente que uma estranha lhe dera, havia
respondido:
"Estou confusa." A Sra. Bontemps não pudera evitar olhar para o marido, que dissera:
- Diabo, ela já tem quatorze anos.
A inabilidade mais acentuada se assinalara quando Albertine, falando de uma jovem de
maus modos, dissera:
"Nem se pode ver se ela é bonita, pois tem uma mão de rouge na cara."
Enfim, embora ainda fosse mocinha, já assumia maneiras de mulher do seu meio e de sua
classe ao dizer, se alguém fazia caretas:
"Não posso vê-lo porque tenho vontade de fazer o mesmo", ou, se se divertiam com
imitações: "O mais engraçado, quando você arremeda, é que fica parecido com ela." Tudo isso é
extraído do tesouro social. Mas justamente o meio de Albertine não me parecia poder fornecer-lhe
"distinto", no sentido em que meu pai falava de determinado colega que ainda não conhecia e de
quem lhe gabavam a grande inteligência: "Parece que é alguém muito distinto." Mesmo para o
golfe, "seleção" me pareceu tão incompatível com a família Simonet como o seria, acompanhado
do adjetivo "natural", com um texto vários séculos anterior aos trabalhos de Darwin. "Lapso de
tempo" pareceu-me ainda de melhor agouro. Por fim, surgiu-me a evidência de perturbações que
eu não conhecia, mas próprias para autorizar-me todas as esperanças, quando Albertine me
disse, com a satisfação de uma pessoa cuja opinião não é indiferente:
-A meu ver, é o que poderia acontecer de melhor... Estimo que seja a melhor solução, a
solução elegante.
Aquilo era tão novo, tão visivelmente se tratava de um aluvião a deixar supor tão
caprichosos desvios através de atalhos outrora desconhecidos dela, que, desde a expressão "A
meu ver", puxei Albertine e, no "Estimo", sentei-a na minha cama.
Ocorre, sem dúvida, que as mulheres pouco instruídas, que se casam com um homem
altamente letrado, recebem tais expressões junto com seu dote. E, pouco depois da metamorfose
que se segue à noite de núpcias, quando fazem suas visitas e se mostram reservadas com as
antigas amigas, nota-se com espanto que se tornaram mulheres se, decretando que uma pessoa
é inteligente, põem dois “LL” na palavra "inteligente". Mas isso é justamente o sinal de uma
mudança, e me parecia que entre o vocabulário de Albertine que eu havia conhecido - aquele em
que as maiores ousadias eram dizer de uma pessoa esquisita:
"É um tipo", ou, se lhe propunham um jogo: ''Não tenho dinheiro a perder", ou ainda, se
determinada amiga lhe fazia uma censura que ela achasse injusta: "Ah, na verdade, acho-te
magnífica!", frases ditadas nesses casos por uma espécie de tradição burguesa quase tão antiga
como o próprio Magnificat e que uma moça um tanto encolerizada e certa de seus direitos
emprega, como se diz, "muito naturalmente", ou seja, porque as aprendeu de sua mãe, como a
dizer as orações e a cumprimentar. Todas essas frases, a Sra. Bontemps as aprendera ao mesmo
tempo que o ódio aos judeus e a estima pelos negros, em que se é sempre conveniente e distinto,
mesmo sem que a Sra. Bontemps lhes houvesse formalmente ensinado, mas como se modela no
gorjeio dos pintassilgos pais o dos pintassilgos recém-nascidos, de modo que eles próprios se
tornam verdadeiros pintassilgos. Apesar de tudo, "seleção" me pareceu alógeno, e "Estimo",
animador. Albertine já não era a mesma, portanto não agiria, não reagiria talvez da mesma forma.
Não somente não sentia mais amor por ela, como já não tinha a temer, como em Balbec, quebrar
nela uma amizade por mim que não existia mais. Não havia dúvida alguma de que há tempos eu
lhe era muito indiferente. Percebia que, para ela, eu já não fazia absolutamente parte do "pequeno
grupo" a que antigamente tanto buscara, e ao qual depois ficara tão feliz por ter sido agregado.
Além disso, como ela já nem sequer tinha, como em Balbec, um ar de franqueza e de bondade,
não tive muitos escrúpulos. Entretanto, creio que o que me decidiu foi uma última descoberta
filológica. Como continuasse a acrescentar novos elos à cadeia externa de frases sob a qual
ocultava meu desejo íntimo, ia falando, tendo agora Albertine à beira da cama, de uma das
meninas do pequeno grupo, mais miúda que as outras, mas que ainda assim achava bonita:
- Sim - respondeu Albertine -, ela parece uma pequena musmê. - Evidentemente, quando
conhecera Albertine, a palavra "musmê" era-lhe ignorada.
Era verossímil que, se as coisas tivessem seguido seu curso normal, ela jamais a
houvesse aprendido e eu, de minha parte, não teria visto nenhum inconveniente nisso, pois não
há vocábulo mais horrendo. Ao ouvi-lo, sente-se a mesma dor de dentes de como se tivéssemos
posto um pedaço muito grande de gelo na boca. Mas em Albertine, bonita como ela era, até
"musmê" não podia me desagradar. Em compensação, pareceu-me que revelava, se não uma
iniciação externa, pelo menos uma evolução interna.
Infelizmente, chegara a hora em que deveria dizer-lhe adeus se quisesse que ela voltasse
a tempo para o seu jantar e também para que me levantasse logo para o meu. Era Françoise
quem o preparava, não gostava que ele esperasse e já devia achar contrário a um dos artigos de
seu código que Albertine, na ausência de meus pais, me tivesse feito uma visita tão prolongada e
que iria atrasar tudo. Mas, diante de "musmê", essas razões caíram, e me apressei a dizer:
- Sabe que absolutamente não sou coceguento? Você poderia me fazer cócegas durante
uma hora que eu não sentiria nada.
- Verdade?
- Juro.
Claro que ela compreendeu que se tratava da expressão desajeitada de um desejo, pois,
como alguém que nos oferta encomenda que não ousamos solicitar, mas que nossas palavras
deram a entender que nos poderia ser útil:
- Quer que eu tente? - disse ela com a humildade da mulher. - Se quiser, mas então seria
mais cômodo que você se estendesse completamente na cama.
- Assim?
- Não, venha mais fundo.
- Mas não sou pesada demais?
Quando terminava a frase, a porta se abriu e Françoise entrou trazendo uma lâmpada.
Albertine só teve tempo de se sentar de novo na cadeira. Talvez Françoise tivesse escolhido
aquele instante para nos confundir, tendo estado a escutar à porta ou até a olhar pelo buraco da
fechadura. Mas eu não precisava fazer tal suposição; Françoise poderia desdenhar certificar-se
com os olhos daquilo que seu instinto já lhe deveria ter farejado bastante, pois, à força de viver
comigo e meus pais, o receio, a prudência, a atenção e a astúcia tinham acabado por lhe dar, a
nosso respeito, essa espécie de conhecimento instintivo e quase divinatório que o marinheiro
possui do mar, o caçador da caça e, da doença, se não o médico, pelo menos muitas vezes o
doente. Tudo o que ela assim chegava a saber poderia assombrar com tanta razão como o
estágio avançado de certos conhecimentos entre os antigos, tendo em vista os meios quase nulos
de informação que eles possuíam (os seus não eram muito numerosos: algumas frases, mal
formando a vigésima parte de nossa conversa no jantar, recolhidas de passagem pelo mordomo e
transmitidas inexatamente à copa). Ainda seus próprios erros eram devidos, como os dos antigos,
como as fábulas em que Platão acreditava, antes a uma falsa concepção do mundo e às ideias
preconcebidas do que à insuficiência de recursos materiais. Assim é que, nos nossos dias, as
maiores descobertas sobre os costumes dos insetos ainda puderam ser feitas por um sábio que
não dispunha de nenhum laboratório, de nenhum aparelho. Mas, se os constrangimentos
resultantes de sua condição de doméstica não a tinham impedido de adquirir uma ciência
indispensável à arte que era a sua finalidade e que consistia em nos confundir, comunicando-nos
os resultados -, o constrangimento fizera mais: aqui, o obstáculo não se contentara em não
paralisar o impulso, havia-o ajudado com todas as forças. Sem dúvida, Françoise não desdenhava
nenhum auxiliar, por exemplo a dicção e a atitude. Como era que (se nunca acreditava no que lhe
dizíamos e que desejávamos que ela acreditasse) admitia, sem qualquer sombra de dúvida, o que
toda pessoa de sua condição lhe contasse de mais absurdo e que pudesse ao mesmo tempo
chocar nossas ideias, de tal forma que sua maneira de ouvir as nossas asserções testemunhava
lhe a incredulidade, e o tom com que contava (pois o discurso indireto lhe permitia dirigir-nos os
piores insultos impunemente) a história de uma cozinheira que lhe dissera ter ameaçado os
patrões e deles obtivera mil favores, chamando-os diante de todo mundo de "lixo", mostrava que,
para ela, aquilo eram palavras do Evangelho. Françoise até acrescentava:
- Se eu fosse patroa, me sentiria envergonhada. -
Por mais que déssemos de ombros, apesar da pouca simpatia inicial pela senhora do
quarto andar, como se tivéssemos ouvido uma fábula inverossímil, diante desse relato de tão mau
exemplo, a narradora, ao fazê-lo, sabia adotar o tom cortante e peremptório da mais indiscutível e
exasperante afirmação. Mas sobretudo, assim como os escritores alcançam muitas vezes um
poder de concentração de que os teria dispensado o regime de liberdade política ou de anarquia
literária, quando se acham atados de pés e mãos pela tirania de um monarca ou de uma poética,
pela severidade das regras da prosódia ou de uma religião de Estado, da mesma forma
Françoise, não podendo nos responder de um modo explícito, falava como Tirésias e teria escrito
como Tácito. Sabia fazer com que tudo o que não podia exprimir diretamente coubesse numa
frase que não podíamos incriminar sem nos acusarmos, até menos que numa só frase, num
silêncio, na maneira como colocava um objeto.
Assim, quando me ocorria deixar na mesa, por descuido, no meio de outras, uma
determinada carta que não era necessário que ela visse, porque, por exemplo, ali se falava dela
com uma malevolência que fazia supor outra igualmente grande tanto no destinatário como no
remetente, de noite, se eu chegava inquieto e ia direto para o quarto, sobre minhas cartas
arrumadas em ordem e numa pilha perfeita, o documento comprometedor era o primeiro a saltar
me aos olhos, como não podia deixar de ter saltado aos olhos de Françoise, colocado por ela
acima de todos, quase à parte, numa evidência que era uma linguagem, tinha a sua eloquência e,
desde a porta, sobressaltava-me como um grito. Ela excedia em regular essas encenações
destinadas a instruir tão bem o espectador, na sua ausência, que este ficava sabendo que ela já
sabia de tudo quando depois fizesse a sua entrada. Para fazer falar desse modo um objeto
inanimado, possuía ela a arte a um tempo genial e paciente de Irving e de Frédérick Lemaitre.
Naquele momento, sustendo acima de mim e de Albertine a lâmpada acesa que não
deixava na sombra nenhuma das depressões ainda visíveis que o corpo da moça cavara no
cobertor, Françoise dava a impressão de ser A Justiça iluminando o Crime. O rosto de Albertine
não saía perdendo com essa iluminação. Esta lhe revelava nas faces o mesmo verniz ensolarado
que me encantara em Balbec. Esse rosto de Albertine, cujo conjunto, por fora, possuía às vezes
uma espécie de palidez lívida, mostrava pelo contrário, à medida que a lâmpada as iluminava,
superfícies tão brilhante e uniformemente coloridas, tão resistentes e lisas, que seria possível
compara-las às firmes carnações de certas flores. No entanto, surpreso com a entrada imprevista
de Françoise, exclamei:
- Como, já a lâmpada? Meu Deus, como é intensa essa luz! Claro que meu objetivo era,
com a segunda dessas frases, dissimular a perturbação e, com a primeira, desculpar o meu
atraso. Françoise respondeu com uma ambiguidade cruel:
- É pra mim apagar?
- Para eu apagar? - murmurou Albertine ao meu ouvido, deixando-me encantado com a
vivacidade familiar com que, tomando-me ao mesmo tempo por mestre e por cúmplice, insinuou
essa afirmação psicológica no tom interrogativo de uma questão gramatical.
Quando Françoise deixou o quarto e Albertine se assentou de novo na minha cama:
- Sabe de que tenho medo - disse-lhe-; é que, se continuarmos desse jeito, não poderei
evitar beijá-la.
- Seria uma bela duma desgraça.
Não obedeci de imediato a esse convite. Outro tê-lo-ia mesmo achado supérfluo, pois
Albertine tinha uma pronúncia tão sensual e tão doce que, só de falar, parecia beijar a gente. Uma
palavra dela era um favor, e sua conversa cobria a gente de beijos. Entretanto, era-me bem
agradável aquele convite. Sê-lo-ia também mesmo se viesse de outra moça da mesma idade; mas
que agora Albertine fosse tão fácil para mim, causava-me aquilo, mais que prazer, uma
confrontação de imagens impregnadas de beleza. Lembrava-me de Albertine, primeiro diante da
praia, quase pintada sobre o fundo do mar, não tendo para mim uma existência mais real do que
essas visões de teatro, em que não se sabe se vemos a atriz que deve aparecer, uma figurante
que a substitui nesse momento, ou uma simples projeção. Depois, a mulher verdadeira se
destacara do feixe luminoso, viera até mim, mas simplesmente para que eu pudesse verificar que,
no mundo real, não tinha de modo algum essa facilidade amorosa que lhe supunham no quadro
mágico. Soubera eu que não era possível tocá-la, beijá-la, que se podia apenas conversar com
ela, que para mim ela não era uma mulher, como não eram uvas os cachos de jade, decoração
incomestível das mesas de antigamente. E eis que, no terceiro plano, ela me aparecia real, como
no segundo conhecimento que dela tivera, mas fácil como no primeiro; fácil, e tanto mais deliciosa
por haver eu acreditado por tanto tempo que não o era. Meu acréscimo de conhecimento da vida
(a vida menos unida, menos simples do que julgara a princípio) ia redundar provisoriamente no
agnosticismo. O que se pode afirmar, visto que o que se considera provável antes se mostrou a
seguir como falso, surgindo de novo em terceiro lugar como verdade? (E infelizmente eu não
estava terminando minhas descobertas acerca de Albertine.) Em todo caso, mesmo se não
existisse a atração romanesca desse conhecimento de uma riqueza bem maior de planos
desvelados um após outro pela vida (atração inversa à que sentia Saint-Loup, durante os jantares
em Rivebelle, em redescobrir, entre as máscaras que a existência superpusera numa fisionomia
tranquila, as feições que ele tivera outrora sob seus lábios), saber que beijar as faces de Albertine
era uma coisa possível tornava-se para mim um prazer talvez maior ainda que o de beijá-las. Que
diferença entre possuir uma mulher sobre a qual só o nosso corpo se gruda, porque não passa de
um pedaço de carne, e possuir a moça que víamos na praia com as amigas em certos dias, sem
mesmo saber por que tais dias, em vez de outros, o que nos fazia tremer com receio de não revê-la! A vida, complacentemente, nos revelara o romance todo daquela moça, emprestara-nos, para
vê-la, um instrumento ótico, depois outro, e acrescentara ao desejo carnal o acompanhamento,
que o centuplica e diferencia, desses desejos mais espirituais e menos saciáveis que não saem
de seu torpor e o deixam ir sozinho quando não pretende mais que a busca de um pedaço de
carne, mas que, para a posse de toda uma região de lembranças de que se sentiam
nostalgicamente exilados, erguem-se tempestuosos a seu lado, aumentam-no, sem poder segui-lo
até a consumação, até a assimilação, impossível sob a forma de uma realidade material em que é
desejada, mas esperam esse desejo a meio caminho e, no momento da lembrança, do regresso,
fazem-lhe escolta novamente; em vez das faces da primeira que viesse, por mais frescas que
fossem, porém anônimas, sem segredo, sem prestígio, beijar aquelas com que há tanto tempo
sonhara seria conhecer o gosto, o sabor de uma cor contemplada com muita frequência. Viu-se
uma mulher, simples imagem no cenário da vida, como Albertine, de perfil diante do mar, e
depois, essa imagem, pôde-se destacá-la, colocá-la junto a si, e ver-lhe aos poucos o volume e as
cores, como se se tivesse feito passá-la por detrás dos vidros de um estetoscópio. É por isso que
as mulheres um pouco difíceis, que não possuímos de imediato, e que não sabemos logo se
algum dia as possuiremos, são as únicas interessantes. Pois conhecê-las, abordá-las, conquistá-las, é fazer variar de forma, de grandeza, de relevo, a imagem humana; é uma lição de relativismo
na apreciação de um corpo, de uma mulher, que é lindo contemplar de novo quando ela retomou
sua finura de silhueta no cenário da vida. As mulheres conhecidas antes nos bordéis não
interessam porque permanecem invariáveis.
continua na página 162...
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Leia também:
Volume 1
Volume 2
Volume 3
O Caminho de Guermantes (2a.Parte - Contrariamente à ordem habitual)
Volume 7
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