quinta-feira, 10 de julho de 2025

Massa e Poder - A Malta: A Comunhão

Elias Canetti

A MALTA

      A Comunhão

     Um ato de multiplicação de natureza particular é a refeição conjunta. Num rito próprio, entrega-se a cada um dos participantes um pedaço do animal abatido. Come-se junto o que se conseguiu junto. A malta inteira incorpora porções do mesmo animal. Algo de um único corpo penetra neles todos. Todos pegam, mordem, mastigam e engolem a mesma coisa. E todos os que desfrutaram de um pedaço do animal encontram-se agora atrelados por esse mesmo animal: ele está contido em todos eles juntos.
     Esse rito da incorporação conjunta é a comunhão. Dá-se lhe um sentido próprio: ela deve ocorrer de forma que o animal de que se desfrutou sinta-se honrado. Ele deve retornar e trazer muitos de seus irmãos. Não se lhe quebram os ossos, ao contrário, são guardados cuidadosamente. Se se faz tudo direito, como se deve, os ossos revestem-se novamente de carne, o animal se levanta e deixa-se caçar mais uma vez. Mas se se procede erradamente e o animal se sente ofendido, ele se retrairá. Fugirá, então, na companhia de todos os seus irmãos, e não mais se verá um único deles: os homens morrem de fome.
     Em certas festas, imagina-se que o animal do qual se está comendo encontra-se ele próprio presente. Assim, alguns povos siberianos tratam o urso que estão comendo como convidado. Homenageia-se esse convidado servindo-lhe os melhores pedaços de seu próprio corpo. Palavras convincentes e solenes são-lhe ditas, e pede-se-lhe que interceda pelos presentes junto a seus irmãos. Quando se sabe conquistar-lhe a amizade, ele, de muito bom grado, se deixa até mesmo caçar novamente. Tais comunhões podem conduzir a uma ampliação da malta de caça. Delas participam, então, mulheres e homens que não tomaram parte na caçada. Mas podem igualmente restringir-se a um pequeno grupo, correspondente ao dos próprios caçadores. No que se refere ao caráter da malta, o processo interior é sempre o mesmo: a malta de caça transforma-se em malta de multiplicação. Uma caçada em particular pode ter sido bem-sucedida; desfruta-se, então, de sua presa, mas, no momento solene da comunhão, o pensamento se volta para todas as caçadas futuras. A imagem da massa invisível de animais que se deseja paira diante de todos os que participam da refeição, e cuida-se muito bem para que ela se torne realidade.
     Essa antiga comunhão dos caçadores preservou-se até mesmo onde o que interessa são anseios de multiplicação de natureza assaz diversa. Entre camponeses, por exemplo, preocupados com a multiplicação de seu trigo, com seu pão de cada dia: eles decerto desfrutarão conjunta e solenemente do corpo de um animal, como nos velhos tempos em que eram exclusivamente caçadores.
     Nas religiões superiores, um elemento novo intervém na comunhão: a ideia da multiplicação dos fiéis. Permanecendo intacta a comunhão, transcorrendo ela corretamente, a crença seguirá propagando-se, e mais e mais adeptos aderirão a ela. Contudo, importância muito maior tem, como se sabe, a promessa de uma nova vida e da ressurreição. O animal do qual os caçadores cerimoniosamente saborearam vai viver novamente: vai ressuscitar e deixar-se caçar mais uma vez. Nas comunhões superiores, tal ressurreição torna-se a meta fundamental; em vez de um animal, porém, desfruta-se do corpo de um deus, e a ressurreição deste é relacionada pelos fiéis à sua própria.
     Voltaremos ainda a falar desse aspecto da comunhão quando tratarmos das religiões de lamentação. O que nos interessa no momento é a passagem da malta de caça a malta de multiplicação: um certo tipo de alimentação assegura a multiplicação do alimento. Este último é, originalmente, imaginado como algo vivo. — Verifica-se aí a tendência a se preservar a valorosa substância psíquica da malta transformando-a em algo novo. Qualquer que seja essa substância — e é, talvez, discutível se a palavra substância se aplica aqui —, faz-se de tudo para que ela não se desintegre e se disperse.
     O vínculo entre a alimentação conjunta e a multiplicação do alimento pode ser imediato, mesmo na ausência da reanimação e da ressurreição. Basta lembrar o milagre do Novo Testamento, onde cinco pães e dois peixes saciam muitos milhares de famintos.

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ELIAS CANETTI nasceu em 1905 em Ruschuk, na Bulgária, filho de judeus sefardins. Sua família estabeleceu-se na Inglaterra em 1911 e em Viena em 1913. Aí ele obteve, em 1929, um doutorado em química. Em 1938, fugindo do nazismo, trocou Viena por Londres e Zurique. Recebeu em 1972 o prêmio Büchner, em 1975 o prêmio Nelly-Sachs, em 1977 o prêmio Gottfried-Keller e, em 1981, o prêmio Nobel de literatura. Morreu em Zurique, em 1994. 
Além da trilogia autobiográfica composta por A língua absolvida (em A língua absolvida Elias Canetti, Prêmio Nobel de Literatura de 1981, narra sua infância e adolescência na Bulgária, seu país de origem, e em outros países da Europa para onde foi obrigado a se deslocar, seja por razões familiares, seja pelas vicissitudes da Primeira Guerra Mundial. No entanto, mais do que um simples livro de memórias, A língua absolvida é a descrição do descobrimento do mundo, através da linguagem e da literatura, por um dos maiores escritores contemporâneos), Uma luz em meu ouvido (mas talvez seja na autobiografia que seu gênio se evidencie com maior clareza. Com este segundo volume, Uma luz em meu ouvido, Canetti nos oferece um retrato espantosamente rico de Viena e Berlim nos anos 20, do qual fazem parte não só familiares do escritor, como sua mãe ou sua primeira mulher, Veza, mas também personagens famosos como Karl Kraus, Bertolt Brecht, Geoge Grosz e Isaak Babel, além da multidão de desconhecidos que povoam toda metrópole) O jogo dos olhos (em O jogo dos olhos, Elias Canetti aborda o período de sua vida em que assistiu à ascensão de Hitler e à Guerra Civil espanhola, à fama literária de Musil e Joyce e à gestação de suas próprias obras-primas, Auto de fé e Massa e poder. Terceiro volume de uma autobiografia escrita com vigor literário e rigor intelectual, O jogo dos olhos é também o jogo das vaidades literárias exposto com impiedade, o jogo das descobertas intelectuais narrado com paixão e o confronto decisivo entre mãe e filho traçado com amargo distanciamento), já foram publicados no Brasil, entre outros, seu romance Auto de fé e os relatos As vozes de MarrakechFesta sob as bombas e Sobre a morte.
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Copyright @ 1960 by Claassen Verlag GmbH, Hamburg
Copyright @ 1992 by Claassen Verlag GmbH, Hildescheim
Título original Masse und Macht

"Não há nada que o homem mais tema do que o contato com o desconhecido."

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