sexta-feira, 18 de julho de 2025

Victor Hugo - Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - Os cemitérios aceitam o que lhes dão / VII - Onde se encontra a origem da frase: «não perder a carta»

Victor Hugo - Os Miseráveis


Segunda Parte - Cosette

Livro Oitavo — Os cemitérios aceitam o que lhes dão

VII - Onde se encontra a origem da frase: «não perder a carta»
     
      Eis o que se passava por cima do caixão em que Jean Valjean jazia.
      Depois que o carro mortuário se afastou e que o padre e o menino do coro tornaram a entrar para a carruagem e par ram, Fauchelevent, que não despregava os olhos do coveiro, ao vê-lo baixar-se e pegar na pá, que estava cravada a prumo no monte da terra que saíra da cova, tomou uma resolução suprema.
      Colocou-se entre o coveiro e a cova e disse, cruzando os braços:

 — Quem paga sou eu! 
 — Que é? — respondeu o coveiro olhando para ele com espanto. 
 — Quem paga sou eu. 
 — Paga o quê? 
 — O vinho. 
 — Que vinho? 
 — O Argenteuil. 
 — O Argenteuil aonde? 
 — No bom Marmelo. 
 — Ora! Vá para o diabo! — disse o coveiro.

     E atirou uma pazada de terra para dentro da cova. 
     O caixão produziu um som oco que fez cambalear Fauchelevent.

 — Antes que o bom Marmelo se feche, camarada — gritou o pobre homem, não longe de cair também na cova, com voz em que principiava a denotar-se o estertor da angústia.

     O coveiro, porém, enterrou outra vez a pá na terra e Fauchelevent continuou:

 — Pago eu. — E acrescentou logo, travando-lhe do braço: — Ouça-me, camarada. Eu sou o coveiro do convento e venho aqui para ajudá-lo. Isto é serviço que se pode fazer de noite, e por isso vamos beber uma pinga.

    E, ao mesmo tempo que falava, que se agarrava a esta insistência desesperada, fazia consigo esta lúgubre reflexão: «Mas mesmo que ele venha, serei capaz de o embebedar?».

— Homem de Deus — disse o coveiro — aceito, já que à viva força assim o quer. Beberemos, mas depois do serviço feito; antes, isso é que nunca.

    E deu o impulso à pá, porém, Fauchelevent, reteve-o. 

 — É do fino Argenteuil. 
 — Ai, que chaga! — disse o coveiro. 
— Você parece um relógio de repetição! Não sabe dizer outra coisa! 

    E atirou para a cova a segunda pá de terra. 
    Fauchelevent chegara ao momento em que já se não sabe o que se há 
de dizer.

 — Ora ande, venha daí beber, que quem paga sou eu! — gritou ele. 
 — Depois de deitarmos a criança — disse o coveiro.

     E atirou terceira pazada, após o que cravou a pá na terra e acrescentou: 

 — Você não vê que a noite vai-se pôr fria e que a defunta ficava aqui a gritar, depois que nós fôssemos embora, se a não deixássemos bem coberta?

     Neste momento, Fauchelevent deitou maquinalmente os desvairados olhos para o bolso da jaqueta do coveiro, que o movimento de estar curvado a encher a pá deixara entreabrir-se, e cravou-os logo nele com estranha fixidez.
     O sol, que não estava ainda de todo escondido no horizonte, derramara claridade suficiente para que no fundo daquele bolso aberto se pudesse distinguir um objeto branco.
     Pelas pupilas de Fauchelevent perpassou então todo o fulgor de que são susceptíveis os olhos de um aldeão picardo. É que acabava de ocorrer-lhe uma ideia.
     Sem o coveiro, todo embebido em encher a pá, dar fé, meteu-lhe a mão no bolso, pelo lado de trás e tirou para fora o objeto branco que ele continha.
      O coveiro atirou para dentro da cova a quarta pazada de terra e, na ocasião em que ele se voltava para tomar a quinta, Fauchelevent, encarando-o com profunda serenidade, disse-lhe:

 — É verdade, meu amigo, você tem a sua nomeação? 
 — Que nomeação? — atalhou o coveiro interrompendo-se na sua tarefa. 
 — O sol está a ir-se embora. 
 — Deixá-lo ir. Se não quiser ir, que fique. 
 — E a grade do cemitério fecha-se. 
 — E daí? 
 — Você tem aí a nomeação? 
 — Ah, a minha carta! — disse o coveiro, procurando no bolso.

      E procurou em todas as algibeiras, voltando sempre a procurar naquela em que não achava coisa nenhuma.

 — Não a tenho comigo. Tê-la-ei perdido? 
 — São quinze francos de multa — disse Fauchelevent.

      O coveiro tornou-se verde. A cor verde é a palidez dos rostos lívidos.

— Jesus, meu Deus! Lá vai tudo quanto Marta fiou! — exclamou ele. — Quinze francos de multa! — e deixou cair a pá no chão. 
     Tinha chegado a vez de Fauchelevent. 

 — Ora adeus! — disse o jardineiro. — Nada de desesperar. Não é agora coisa para que se mate e aproveite a cova aberta. Quinze francos são quinze francos; e depois ainda pode deixar de os pagar. Olhe que eu sou mais velho do que você, tenho visto mais; portanto dou-lhe um conselho de amigo. O que é claro é que o sol está quase a desaparecer por detrás do zimbório dos Inválidos, e o cemitério a fechar-se dentro de cinco minutos. 
 — É verdade — disse o coveiro. 
 — Em cinco minutos não tem você tempo de encher a cova, que é funda como o diabo, e chegar depois a tempo de sair antes de terem fechado a porta. 
 — É exato. 
 — Em tal caso são certos os quinze francos de multa. 
 — Quinze francos. 
 — Mas você ainda tem tempo... Onde mora? 
 — A dois passos da barreira, a um quarto de hora daqui; na rua de Vaugirard número 87. 
 — Então tem ainda tempo de sair. 
 — Tenho decerto. 
 — Depois de estar fora da grade corre até casa, pega na carta, volta do mesmo modo, e o porteiro do cemitério abre-lhe a porta. Tendo a carta não paga nada e enterrará depois o morto. Entretanto cá lhe tomo sentido nele para que se lhe não safe. 
 — Devo-lhe a vida, colega! 
 — Fuja daqui, não se demore — disse Fauchelevent.

     O coveiro, desorientado de reconhecimento, apertou-lhe a mão e partiu correndo. 
     Apenas Fauchelevent perdeu de vista o coveiro e deixou de lhe ouvir o ruído dos passos, inclinou-se para a cova e disse a meia-voz: 

 — Senhor Madelaine! 

     Não teve resposta.
     Fauchelevent estremeceu. 
     Saltou precipitadamente para a cova e lançou-se sobre o caixão do lado da cabeça, gritando: 

 — Senhor Madelaine! 

     Profundo silêncio no caixão. 
     Agitado por um tremor tão convulso, que quase lhe tirava a respiração, pegou então no martelo e fez saltar a tábua que cobria o caixão. 
     A luz baça do crepúsculo ressaltou de súbito aos olhos de Fauchelevent o rosto pálido de Jean Valjean, com os olhos cerrados pela gelidez da morte.
     À vista deste espetáculo, eriçaram-se os cabelos a Fauchelevent, que se pôs de pé, encostando-se à parede da cova, quase a ponto de cair sem alento sobre o caixão. 
     Olhou para Jean Valjean que jazia pálido e imóvel e murmurou em voz baixa como um sopro: 

 — Está morto! 

      E, endireitando-se novamente, cruzou os braços com tanta violência, que bateu com os dois punhos fechados nos ombros e exclamou: 

 — Aqui está como eu o salvei! 

     Então o pobre homem começou a soluçar, monologando; por que é um erro acreditar se que o monólogo não faz parte da natureza. As fortes agitações falam muitas vezes em voz alta. 

 — A culpa é do senhor Mestienne. Para que diabo havia de morrer aquele bruto, quando ninguém esperava semelhante coisa! A morte do senhor Madelaine foi causada por ele. Pobre senhor Madelaine, já está no caixão, e na cova. Não há mais nada a fazer. Mas pode a gente acomodar-se com uma coisa assim? Está morto, meu Deus! E a pequena, o que hei de eu fazer dela! Se pode ser que um homem destes morra por semelhante modo! Quando penso em que se meteu debaixo da minha carroça! Senhor Madelaine! Bem dizia eu que lhe faltaria o ar; mas não me quis dar atenção. Aqui está o resultado! Está morto este excelente homem, o melhor que eu conheci entre os filhos de Deus! E a pequenina! Eu é que não saio daqui. Fazer semelhante coisa! De que nos valia a nós sermos ambos velhos, se nenhum de nós tinha juízo? Mas como diabo fez ele para entrar no convento? Era já o começo. Não se devem fazer coisas assim. Senhor Madelaine! Senhor Madelaine! Senhor Madelaine! Senhor maire! Não me ouve. E hei de eu sair daqui!

      Falando deste modo arrancava os cabelos com o maior desespero. 
      De repente ouviu-se ao longe uma espécie de rangido agudo. Era a porta do cemitério que se fechava. Fauchelevent inclinou-se para Jean Valjean e deu no mesmo instante um salto, recuando quanto é possível fazê-lo numa cova. Valjean tinha os olhos abertos e olhava para ele. 
      Presenciar uma morte é medonho, ver uma ressurreição, não o deve ser menos. 
      Fauchelevent tornou-se de pedra, pálido, desvairado, transtornado pelo excesso de tantos abalos, não sabendo se estava diante de um morto ou de um vivo; e fitava Jean Valjean, que o encarava. 

 — Ia adormecendo — disse Jean Valjean.

     E sentou-se no caixão. 
     Fauchelevent ajoelhou. 

 — Valha-me Nossa Senhora! Que medo que me meteu! — e ato contínuo exclamou: — Obrigado, senhor Madelaine! 

     O contato do ar livre tinha feito voltar a si Jean Valjean, que apenas estava desmaiado. A alegria é o reflexo do terror. Fauchelevent tinha quase tanto custo em tornar a si como Jean Valjean. 

 — Então não está morto! Isto é que é ter juízo! Tanto chamei que me ouviu. Quando lhe vi os olhos fechados pensei que lhe tinha faltado o ar. Eu endoidecia de certo; tinham de me levar para as palhas de Bicetre[1]. O que queria que eu fizesse, se o senhor es vesse morto? E a pequenita! A velhita da fruta é que não perceberia nada. Punham lhe a criança nos braços e no fim diziam-lhe que o avô tinha morrido! Que história, santos do paraíso, que história! Ah! O senhor está vivo, por conseguinte chegámos ao desfecho 
 — Tenho frio — disse Jean Valjean.

     Estas palavras chamaram Fauchelevent completamente à realidade, que era urgente. Estes dois homens, mesmo depois de terem entrado em si mesmos e sem que o suspeitassem, tinham a alma perturbada e o que quer que era de estranho, que não podia deixar de ser o desvairamento sinistro próprio do lugar em que se encontravam. 

 — Vamo-nos depressa daqui — disse Fauchelevent. 

     Em seguida meteu a mão no bolso e tirou uma cabaça com que se prevenira. 

 — Mas primeiro vamos a uma pinga — disse ele. 

     A cabaça completou o que o ar livre começara. Jean Valjean bebeu um golo de aguardente e entrou em inteira posse de si mesmo. 
     Saiu do caixão e ajudou Fauchelevent a pregar-lhe novamente a tampa. Passados três minutos estavam fora da cova. 
     Fauchelevent sentia-se tranquilo, não precisava apressar-se. O cemitério estava fechado e não havia que recear a volta do coveiro Gribier. Este «recruta» estava em sua casa, ocupado a procurar a carta e muito longe de a encontrar ali, por isso que estava no bolso de Fauchelevent; e sem a carta não podia tornar a entrar no cemitério. 
     Fauchelevent pegou na pá, Jean Valjean na enxada e concluíram ambos o enterro do caixão vazio. Depois da cova estar cheia, Fauchelevent disse a Jean Valjean: 

 — Vamos embora. Traga a enxada que eu levo a pá. 

     Entretanto ia anoitecendo. 
     Jean Valjean sentiu alguma dificuldade em se mover, e andar. A permanência dentro do caixão tornara-o hirto e um tanto cadáver. Tinha-se apossado dele a ancilose da morte, entre aquelas quatro tábuas. Foi-lhe necessário, por assim dizer, desenregelar-se do sepulcro. 

 — O senhor está trôpego — disse Fauchelevent. — Se eu não fosse manco, batíamos a canela. 
 — Bastam quatro passos, para que as pernas se lembrem do andar.

      Sem mais demora seguiram pelas ruas onde tinha ido o carro. Chegando à porta fechada e à casa do porteiro, Fauchelevent, que levava na mão a carta do coveiro, deitou-a na caixa, puxou a corda, a porta abriu-se e eles saíram. 

 — Como tudo isto caminha bem! — disse Fauchelevent. — Que boa ideia teve o senhor Madelaine! 

     Entraram a barreira Vaugirard do modo mais simples que se pode imaginar. Nas proximidades de um cemitério, uma pá e uma enxada são dois passaportes. 
     A rua de Vaugirard estava deserta. 

 — Senhor Madelaine — disse Fauchelevent sem parar, e levantando os olhos para as casas. — O senhor tem melhor vista do que eu; veja se dá com o número 87. 
 — Ele aqui está — disse Jean Valjean. 
 — Não vejo ninguém — tornou Fauchelevent. — Dê-me a enxada e espere dois minutos. 

     Fauchelevent entrou na casa que Jean Valjean lhe indicara, subiu toda a escada, guiado pelo ins nto que conduz sempre o pobre à água furtada e bateu a uma porta escondida na sombra. 

 — Pode entrar — respondeu de dentro uma voz. 

     Era a voz de Gribier. 
     Fauchelevent empurrou a porta. 
     A habitação do coveiro como todas as tristes habitações da sua espécie, era um sótão sem mobília e ao mesmo tempo atravancado. 
     Um caixote que servira talvez de esquife desempenhava ali o papel de cómoda, um boião de manteiga servia de pote, a cama era uma enxerga, e as cadeiras e bancos imaginam-se no sobrado. A um canto, sobre um farrapo, resto de um tapete, formavam uma espécie de montão, uma mulher magra e muitas crianças. A pobre casa dava indícios de ter sido revolvida. Parecia que houvera um tremor de terra. Os farrapos achavam-se todos dispersos, o improvisado pote estava par do, a mãe tinha chorado, as crianças provavelmente tinham levado pancadas; viam-se em suma todos os indícios da mais colérica e minuciosa busca. Era evidente que o coveiro procurara loucamente a sua carta e tornara responsável pela perda tudo quanto tinha em casa, desde a bilha até à mulher. O seu aspecto era o do desespero. 
     Mas Fauchelevent encaminhava-se com demasiada pressa ao desfecho da aventura, para que notasse o lado triste do seu bom êxito. 
     Entrou e disse: 

 — Venho trazer-lhe a sua pá e a sua enxada. 

     Gribier olhou para ele estupefato. 

 — Ah! É você, homem? 
 — Amanhã achará a sua carta em casa do porteiro. 

     E pôs a um canto a enxada e a pá. 

 — O que quer isso dizer? — perguntou Gribier. 
 — Quer dizer que a deixou cair do bolso e que eu a achei no chão depois de você ter saído; que acabei o seu trabalho, que o porteiro lhe entregará a carta e que não pagará quinze francos. Percebeu? 
 — Obrigado, amigo! — exclamou Gribier, como que deslumbrado. 
 — Para a outra vez sou eu quem paga o vinho.

continua na página 427...
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Victor-Marie Hugo (1802—1885) foi um novelista, poeta, dramaturgo, ensaísta, artista, estadista e ativista pelos direitos humanos francês de grande atuação política em seu país. É autor de Les Misérables e de Notre-Dame de Paris, entre diversas outras obras clássicas de fama e renome mundial.
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Segunda Parte
Os Miseráveis: Cosette, Livro Oitavo - VII - Onde se encontra a origem da frase: «não perder a carta»
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Victor Hugo
OS MISERÁVEIS 
Título original: Les Misérables (1862)
Tradução: Francisco Ferreira da Silva Vieira 
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[1] Hospital de doidos.

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